Diabo, demônio. Asmodeu, Belzebu, Lúcifer. Satanás. Mefistófeles. Talvez poucas divisões culturais no mundo moderno sejam tão profundas quanto as existem em torno do referente exato dessas palavras: dependendo das alianças e compromissos religiosos, ideológicos, estéticos ou científicos da pessoa a quem se pergunta, elas se referem a absolutamente nada, ou a abstrações poéticas, ou a fenômenos psicológicos, ou a personagens ficcionais – ou a forças sobrenaturais radicalmente reais, anjos caídos, incansáveis arquitetos da perdição humana.
As trincheiras culturais que separam os diversos significados são tão profundas e antigas que, paradoxalmente, tendem a passar despercebidas. Quando a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro disse que “o Planalto estava consagrado a demônios”, parte do público ouviu metáfora, mas outra parte visualizou algo muito literal, talvez uma cena lúrida de filme B.
O escopo da palavra cria uma ilusão de inteligibilidade mútua que, sendo ilusória, é também muito perigosa: o que alguns relevam como arroubo retórico pode soar, para tantos outros, como grave denúncia e chamado à ação.
Quem não leva a realidade sobrenatural de diabos e demônios a sério tende a subestimar o papel motivador e manipulador que a crença pode exercer sobre outros – ainda mais nestes tempos em que parcela significativa da sociedade se deixa seduzir por versões reducionistas e literalistas de suas mitologias preferidas. Os efeitos disso podem ser tanto coletivos quanto individuais.
Prevalência
Pesquisa publicada nos Estados Unidos em 2020 mostrava que a maioria dos cristãos (67% dos protestantes, 60% dos mórmons, 57% dos católicos) e dos muçulmanos (62%) acreditam que “com certeza ou muito provavelmente” demônios existem. Para efeito de comparação, quando a pergunta é sobre fantasmas, as taxas são de 45% (protestantes), 57% (católicos), 57% (mórmons) e 51% (muçulmanos). Curiosamente, entre os ateus, 10% acreditam em demônios e 18%, em fantasmas. Outra pesquisa, esta de 2022, aponta que 10% dos americanos dizem já ter encontrado pessoalmente um demônio, e 37% já sentiram “uma presença ou energia desconhecida”.
Desconheço levantamentos semelhantes a respeito da realidade brasileira, mas artigo publicado em 2019 no periódico Horizontes Antropológicos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) chamava atenção para o papel central que um diabo real, literal, ativo, tem no quadro ideológico das curas pela fé e da teologia da prosperidade, ambas expressões populares nas maiores denominações neopentecostais do Brasil. Destaco os trechos:
“(...) Teologia da Prosperidade, que tem como essência a ideia básica de que Jesus Cristo já redimiu a Humanidade, de modo que todo seguidor tem o legítimo direito a riqueza, saúde e sucesso no mundo hoje, em vez de apenas no além. Se tal êxito não ocorre é porque a pessoa supostamente está em falta com Deus e entregue às ações do Diabo. Para reverter tal situação o adepto da igreja deve fazer a ela doações financeiras e materiais, contribuindo então, concretamente, com o trabalho de evangelização em execução. Quanto maiores são as ofertas mais “direito” tem a pessoa de ‘exigir’ de Deus o cumprimento de sua parte do acordo, ou ‘contrato de fé’”.
“(...) o pentecostalismo de cura divina (...) já apontava como fator crucial no alívio das doenças a luta contra o oponente divino, identificado com as entidades espirituais do candomblé e da umbanda (...). Ocorre que as denominações neopentecostais levaram ao extremo a ênfase na figura do Diabo”.
Efeitos
Essa identificação entre as “forças do mal” e o panteão afro-brasileiro está registrada, de forma explícita, em obras como o livro “Orixás, Caboclos e Guias”, de Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, onde se lê (grifos meus):
“Pessoas bem-intencionadas e religiosas passam anos e anos acreditando de todo o coração nos poderes dos orixás e dos pretos-velhos. O que veem, no entanto, nunca realmente as satisfaz. O diabo, organizador de tudo isso, engana a Humanidade. Com rituais, danças e oferendas, ele induz o ser humano a abrir sua vida às forças do inferno, de modo que a pessoa fica escrava dos espíritos, pagando um preço incrivelmente alto pelos pequenos favores recebidos”.
O tom geral de Macedo ao longo da obra é conciliatório, ainda que condescendente – ele se refere aos praticantes de umbanda e candomblé não como inimigos, e sim como irmãos desencaminhados –, mas a identificação, somada à crença literal em demônios, gera consequências trágicas, com o aumento da violência e da intolerância religiosa no país.
Outro efeito, menos visível mas não menos dramático, é o que o psicólogo britânico Christopher E.M. Lloyd batizou, em artigo publicado em 2021, de “reducionismo espiritual”, quando problemas emocionais e psiquiátricos são reinterpretados como “males espirituais”, causados por demônios, levando à estigmatização de quem sofre.
“A crença de que o sofrimento mental é causado por demônios, pecados ou maldições na família é lugar-comum em muitas comunidades cristãs evangélicas”, escreve Lloyd, que cita estudos indicando que de 30% a 40% de fiéis evangélicos reportam “interações negativas” com suas igrejas por causa de problemas mentais, “incluindo rejeição pela igreja, ensinamentos de que o sofrimento mental é causado exclusivamente pela ação de demônios, e que o sofrimento mental é consequência de pecado pessoal”.
Origens
A maioria das mitologias anteriores ou externas à matriz judaico-cristã-islâmica tende a povoar seus mundos sobrenaturais com entidades que não são necessariamente boas ou más, mas inconstantes, talvez travessas, e amorais – com desejos, inclinações e necessidades que podem levá-las a prejudicar ou ajudar este ou aquele ser humano, dependendo das circunstâncias. Pazuzu, por exemplo, um “demônio” mesopotâmico que ficou famoso, no mundo moderno, depois de receber o papel de temível adversário do clero católico no filme “O Exorcista”, era um espírito dos ventos, às vezes destruidor, mas também evocado como proteção contra Lamshtu, um espírito especialmente perigoso para mulheres grávidas e recém-nascidos.
A ideia de um espírito dedicado ao mal em tempo integral vem do zoroastrismo, religião persa que influenciou o judaísmo e em que o deus supremo Ahura Mazda tem um adversário maligno, Ahriman (provável origem do demoníaco nome Asmodeu, aliás). A ideia de um Príncipe das Trevas empenhado em seduzir a Humanidade consolidou-se no cristianismo como tentativa (uma, dentre várias, todas mais ou menos frustradas) de compatibilizar a teórica bondade divina absoluta e perfeita com o fato empírico, bruto, do mal que grassa num mundo imperfeito.
“Não havia ideia de uma personificação única do mal nas antigas religiões greco-romanas, por exemplo, e não há nenhuma no hinduísmo ou no budismo. A maioria das religiões – do budismo ao marxismo – tem seus demônios, mas apenas quatro grandes religiões têm mantido um Diabo real. Essas são o mazdaísmo (zoroastrismo), a antiga religião hebraica (mas não o judaísmo moderno), cristianismo e islã”, escreve o historiador Jeffrey Burton Russell, autor de uma monumental “biografia” em quatro volumes da ideia de “Diabo”, em seu livro “The Prince of Darkness”. “A tensão que opõe o poder de Deus à existência do mal é a fonte original do conceito do Diabo”, acrescenta ele.
Em qualquer outro papel que não o de personagem ficcional – mesmo como metáfora –, o demônio, no fim, é mais um elemento do enorme conjunto de explicações ilusórias criadas pela Humanidade para fugir de questões cruciais e seguir escorando o insustentável. O verdadeiro poder das trevas é essa capacidade das palavras de dar substância ao inexistente: preencher uma lacuna com um nome dá a impressão de que ela não existe, mesmo se o nome for vazio de significado ou remeter a uma fantasia.
Dia desses, assistindo ao documentário “Aliens and Demons”, do serviço de streaming cristão FaithlifeTV, vi um teólogo mencionar (corretamente) que muitos relatos de abdução alienígena se assemelham a histórias de abuso satânico, para concluir não que os dois fenômenos são interpretações culturalmente divergentes de sintomas causados pelo mesmo tipo de pressão psicológica e social (o que o levaria a considerar que a mitologia do "abuso satânico" é apenas isso, uma mitologia), mas sim que os alienígenas são demônios disfarçados.
Do conjunto infinito das explicações ilusórias, sempre é possível extrair uma perfeitamente compatível com aquilo em que você quer acreditar.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)