“O Exorcista” faz 50 anos

Apocalipse Now
10 abr 2021
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Descobri que, neste ano, completa-se meio século da publicação de dois dos romances que mais me impressionaram na adolescência: “O Exorcista”, de William Peter Blatty (1928-2017), e “O Dia do Chacal”, de Frederick Forsyth. Pode-se argumentar que “Chacal” talvez seja mais relevante para a situação brasileira imediata, mas levando em conta o tipo de assunto que geralmente abordo neste espaço — as relações entre racionalidade e crença, ciência e saúde —, o livro de Blatty traz muito mais material para discussão.

Com isso em vista, fui reler o livro, pegando desta vez não a tradução brasileira dos anos 1970, mas o original em inglês ou, mais precisamente, a reedição comemorativa de 40 anos, lançada em 2011 e que, segundo o próprio autor, é o livro como “deveria ser”. No press release que acompanhou o lançamento da edição comemorativa, Blatty diz:

“Por boa parte dos últimos quarenta anos eu lamentei não ter feito um segundo rascunho, melhorando os diálogos e a prosa. Mas agora, como em resposta a uma prece, este quadragésimo aniversário do livro me dá não apenas a oportunidade de fazer uma nova versão, mas num ponto da vida — farei 84 anos em janeiro — onde talvez não seja de todo irracional imaginar que minhas habilidades, sejam quais forem, tenham melhorado um pouco”.

Num depoimento anterior do mesmo Blatty, publicado no ensaio autobiográfico de 1998 “If There Were Demons, Then Perhaps There Were Angels” (“Se Existissem Demônios, Então Talvez Também Houvesse Anjos”), o autor afirma que o original de 1971 havia sofrido somente uma mudança extensiva antes de ser publicado: uma reforma do epílogo.

 

O livro

Imagino que mesmo quem nunca leu o livro ou assistiu ao filme de 1973, dirigido por William Friedkin (com roteiro de Blatty, que recebeu o Oscar pelo trabalho), conhece o resumo da história: uma menina pré-adolescente, Regan Teresa McNeil, filha de uma atriz famosa, começa a se comportar de modo estranho, e fenômenos aparentemente sobrenaturais passam a ocorrer a seu redor.

Depois de exaurir todas as opções médicas e científicas para socorrer Regan, a mãe apela para um padre jesuíta que, com a ajuda de outro membro da Companhia de Jesus, mais velho e com experiência prévia no embate com as forças do mal, procede um exorcismo.

Tanto o livro quanto o filme (principalmente o filme) ficaram famosos pela linguagem chula e pelas descrições vívidas (no caso do filme, imagens explícitas e efeitos especiais chocantes, incluindo maquiagem) das interações entre personagens humanos e o espírito possessor. Essa notoriedade, embora merecida, é injusta com a sobriedade e o estilo naturalista das cenas em que o demônio não se faz presente.

No romance, preocupações teológicas e metafísicas abundam — o jesuíta mais velho, padre Lankester Merrin, é claramente calcado na figura do teólogo Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955).

Embora tenha se divorciado e casado mais de uma vez, William Peter Blatty sempre se considerou um fiel da Igreja Católica e um autor católico. Como bem notou o crítico ST Joshi em sua apreciação geral da obra de Blatty, “The Catholic Weird Tale” (“O Conto Bizarro Católico”), “O Exorcista” busca ser “um trabalho que indiretamente afirma a existência do bem ao retratar a existência do mal. Tudo no romance é calculado para levar a essa conclusão”.

 

Ciência, 1971

O protagonista do livro é o padre jesuíta Damien Karras. Médico psiquiatra, Karras faz questão de que todas as alternativas naturais à hipótese da possessão demoníaca sejam eliminadas, antes de concordar em pedir a seu bispo a autorização para conduzir o exorcismo.

É difícil saber até que ponto o romance reflete o estado da ciência sobre comportamento humano e transtornos mentais entre o fim dos anos 1960 e o início da década de 1970, mas se o que se descreve no livro for um retrato fiel (e há indícios de que Blatty pesquisou o assunto a fundo), só posso concluir que o campo era uma verdadeira zona.

Há alguma discussão sobre eletroencefalogramas, exames de imagem (na “versão do diretor” do filme, lançada em 2000, as cenas em que a menina Regan é submetida a radiografias e exames de contraste são quase tão aterrorizantes quanto as de abuso pelo demônio) e epilepsia, mas a coisa toda logo degenera em hipnose e psicanálise.

Padre Karras lê Freud e Jung, e ao que tudo indica leva os dois a sério, e tanto ele quanto outros profissionais de saúde mental tendem a ver as “manifestações” de Regan como a expressão de uma suposta “culpa inconsciente” pelo divórcio dos pais. Até parapsicologia entra na jogada: quando a influência do demônio começa a gerar fenômenos observáveis, inegáveis e mensuráveis para os quais não há explicação natural possível (a cama de Regan levita, por exemplo), a ideia de energia mental (atiçada pela tal da culpa inconsciente) vem à tona como explicação “plausível”. A menina endemoninhada fala latim fluente? Está captando a língua morta da mente do padre, por telepatia!

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Praticamente toda história de terror clássica tem um personagem no papel de “cético irracional”, aquele mala que fecha os olhos para as evidências e que não vai acreditar que vampiros existem nem mesmo quando Drácula vira pó ao ter a estaca cravada no peito, e que em geral cumpre a função de esticar a história mais do que seria razoável – e de deixar o público com raiva dos céticos em geral. Damien Karras desempenha bem esse papel, e o fato de ele ser um padre traz alguma originalidade ao clichê.

 

Exorcismos

Ao longo de todo o romance, Blatty busca dar a impressão de que o ritual do exorcismo e a própria ideia de possessão demoníaca seriam meras relíquias preservadas, até com certo embaraço, pela Igreja Católica. Quando Chris McNeil, mãe de Regan, pergunta ao padre Karras o que seria necessário para conduzir um exorcismo, a resposta inicial do sacerdote é: “retornar ao século 16”, e que nunca havia conhecido um exorcista em pessoa.

Isso contrasta com o cenário mais recente. Até pouco antes da pandemia, a demanda por exorcismos católicos estava em alta, com o Vaticano treinando cada vez mais sacerdotes para realizar a tarefa. Um curso específico, aberto em 2005, teve mais de 250 inscritos para sua edição de 2018. A doutrina católica, aliás, sempre foi clara a respeito, afirmando tanto a existência real — isto é, não apenas poética ou metafórica — de demônios (“Catecismo da Igreja Católica”, item 391) quanto a possibilidade de possessão (item 1.673).

Do ponto de vista científico-secular, isso não faz o menor sentido. Crucialmente, o exorcismo — ao menos em casos como o que inspirou o filme “O Exorcista” (que, como veremos, é “baseado numa história real”) — é um daqueles pontos nevrálgicos onde religião e ciência divergem, de modo irreconciliável, a respeito das causas eficientes de fatos concretos, palpáveis e observáveis. O catecismo católico tenta contornar o fato apontando que “é importante, pois, assegurar-se, antes de celebrar o exorcismo, se se trata de uma presença do maligno ou de uma doença”.

Em “O Exorcista”, a atitude do padre Karras é de ceticismo renitente: a hipótese de “presença do maligno” só é considerada in extremis. Será que o catolicismo apresentava-se mais “cientificista” nos anos 1970 do que agora? É uma questão curiosa. Em seu livro “Um Exorcista Conta Sua História”, o padre italiano Gabriele Amorth (1925-2016) afirma que seu mentor na arte de expulsar demônios, padre Candido Amontini (1914-1992), “desempenhou seu grande serviço, como exorcista, por trinta e seis anos” e que Amontini “atendia de sessenta a oitenta pessoas toda manhã”.

Mesmo, como é provável, que nem todo atendimento levasse a um diagnóstico de possessão demoníaca, o total bruto — mais de 800 mil ao longo da carreira! — é espantoso. Se apenas 0,1% das entrevistas acabasse dando margem a um exorcismo, isso representa 800 exorcismos na carreira, ou mais de 20 ao ano, quase dois ao mês.

De qualquer modo, é possível encarar a prática do exorcismo como inseparável não só do catolicismo, mas do cristianismo em geral: como o historiador Darren Oldridge aponta em seu livro “The Devil: A Very Short Introduction”, os Evangelhos registram nada menos do que sete exorcismos realizados pessoalmente por Jesus. Ele era um exorcista.

 

O caso real

William Peter Blatty nunca escondeu que seu romance teve, como ponto de partida, um caso real. Em “If There Were Demons, Then Perhaps There Were Angels”, ele reproduz sua fonte de inspiração, uma nota publicada na edição de 20 de agosto de 1949 do jornal The Washington Post, sobre um menino de 14 anos que teria sido libertado do demônio após “20 ou 30 performances do antigo ritual de exorcismo”.

Após a publicação do romance, uma verdadeira caçada jornalística ao “menino endemoninhado” (que acabou recebendo o pseudônimo de “Roland Doe”) teve início.

Uma série de detalhes curiosos foi emergindo ao longo do tempo, como o fato de que o primeiro religioso a lidar com o caso havia sido um pastor luterano, padres católicos entrando na história apenas mais tarde; e que o próprio fundador da parapsicologia, J.B. Rhine (1895-1980), havia escrito um artigo a respeito, depois de informado dos fatos pelo pastor, Luther Miles Schultze. O artigo, formalmente anônimo mas usualmente atribuído a Rhine, saiu na edição de agosto de 1949 do Parapsychology Bulletin.

Em 1993, o jornalista Thomas Allen publicou um livro (“Possessed”) baseado numa versão editada do diário de um dos padres envolvidos no exorcismo, com os nomes do garoto possuído e da família trocados. Nesse trabalho, fica claro que os eventos descritos no romance e no filme foram largamente exagerados (o que não deve surpreender ninguém, já que são obras de ficção). Uma segunda edição do livro, lançada em 2000, incluía o diário, mas com nomes e certos detalhes omitidos.

Em 1998, outro jornalista, Mark Opsasnik, conduziu uma longa investigação sobre o caso, chegando a identificar e entrevistar amigos de infância de “Roland” e testemunhas dos eventos. Opsasnik conclui que o menino tinha problemas psicológicos e provavelmente forjara as manifestações “sobrenaturais” (objetos voando, móveis virados) que acompanharam sua suposta possessão.

O parapsicólogo Sergio A. Rueda, que teve acesso à correspondência completa de Rhine sobre o caso e defendeu uma tese de doutorado a respeito, também põe o garoto como fonte original dos eventos. O menino adaptava seu comportamento de acordo com a percepção e as expectativas dos adultos ao redor: “É inteiramente possível que se [Roland] nunca tivesse sido exorcizado (…) o caso não teria se tornado uma possessão demoníaca”, escreve ele na versão em livro da tese, “Diabolical Possession and the Case Behind The Exorcist”. Rueda também aponta que os sacerdotes envolvidos no exorcismo real foram muito pouco céticos ao entrar no caso — certamente, muito menos do que o fictício padre Damien Karras.

Falando em ceticismo, Rueda atribui parte dos eventos a poltergeists, definidos como o uso inconsciente de poderes paranormais pelo jovem, e fecha seu livro com uma típica diatribe contra o “dogmatismo” da ciência. O argumento a favor da realidade dos poltergeists, no entanto, depende de aceitar-se, pelo valor de face, relatos de testemunhas que podem estar enganadas ou cometendo exageros (deliberados ou inconscientes), e que estavam envolvidas no que o historiador Oldridge chama de “teatro social” do exorcismo, onde “todos os participantes (...) reconhecem e atuam em papéis socialmente sancionados”.

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Com o tempo, a verdadeira identidade do garoto acabou sendo revelada: Ronald E. Hunkeler, nascido em 1o de junho de 1935.

Livro e filme tiveram impacto considerável na cultura popular, desencadeando uma década de interesse em demônios e satanismos, intensificando uma tendência que já se desenhava desde “O Bebê de Rosemary” (livro, 1967; filme, 1968). Até a Marvel Comics decidiu incluir um endemoninhado e um exorcista em seu time de super-heróis, com o Motoqueiro Fantasma (na ilustração acima) e o Filho de Satã estreando em 1972 e 1973, respectivamente. Outro personagem, Gabriel, o Caçador de Demônios, viria à luz em 1974.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

 

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