O livro “João de Deus: O Abuso da Fé”, da jornalista Cristina Fibe, é uma leitura, alternadamente, difícil, fascinante e revoltante. Difícil pelos depoimentos que contém, de vítimas do médium – às vezes chamado, no texto, de “ex-médium” – João Teixeira de Faria, o João de Deus. São relatos duros, sofridos, que fazem gelar o coração do leitor.
A obra é fascinante pela reconstrução cuidadosa da trajetória do médium, a exposição de seu passado cambiante (há três “biografias autorizadas”, verdadeiras hagiografias, de Teixeira, livros que, embora cubram o protagonista de elogios, não concordam entre si nos supostos fatos que relatam – e divergem, até mesmo, de entrevistas gravadas do próprio).
E torna-se, por fim, revoltante ao mostrar como, em toda a trajetória e na construção do mito de João de Deus, entre os políticos e artistas que faziam questão de serem vistos ao seu lado, em meio às autoridades policiais, judiciais e médicas que por décadas fizeram vistas grossas para seus crimes “menores”, como curandeirismo e prática ilegal da Medicina, entre os empresários que lucraram com a indústria de turismo montada ao seu redor, ninguém, absolutamente ninguém, jamais se preocupou com as vítimas.
Não só as vítimas de abuso sexual, casos que eram mantidos em relativo segredo, mas as vítimas evidentes, gritantes, que sempre estiveram diante dos olhos de todos, em plena luz do dia: os desesperados, os doentes explorados por falsas promessas de cura, as vítimas das crenças irracionais e das culpas impingidas pelo médium e por seu séquito. As vítimas de tratamentos médicos abandonados em nome de uma esperança mentirosa, as famílias arruinadas por finanças exauridas. As vidas jogadas fora. Com esses, ninguém nunca se importou.
Um truque velho como a Humanidade, usado amiúde por promotores de terapias alternativas, por mascates de fraudes “espirituais” e esquemas “esotéricos”, por praticantes de artes como astrologia ou tarô, e também por promotores de medicamentos inúteis – como fosfoetanolamina para câncer, ou hidroxicloroquina para COVID-19 – é o de “registrar os acertos e ignorar os erros”.
Isso é muito fácil de conseguir, psicologicamente: o cliente da cartomante ou do curandeiro, de modo inconsciente, agarra-se a tudo que ela ou ele diz e faz que parece “ter sentido”, e passa batido pelos erros mais grosseiros e, até, por abusos físicos: a pessoa que decide apelar para o mundo dos espíritos e da magia está emocionalmente investida no sucesso da tentativa, e fará tudo para vê-lo acontecer – mesmo que esse sucesso, na verdade fria dos fatos, não exista.
Ocultação de cadáver
“João de Deus: O Abuso da Fé” mostra que a gangue de Teixeira não se fiava só em psicologia: não bastava apenas contar que os vivos viessem a público expressar sua gratidão, enquanto os mortos eram enterrados em silêncio – caminho geralmente seguro (a menos que se faça uma CPI) e que levou, por exemplo, à quase canonização em vida do inventor da “fosfoetanolamina sintética”, Gilberto Chierice. O livro cita casos e testemunhas de esquemas para ocultação de cadáveres, remoção às escondidas de corpos da cidade goiana de Abadiânia, onde Teixeira atuava, a fim de não “manchar” a reputação do curandeiro “infalível”.
Esse mesmo investimento emocional profundo no sobrenatural faz com que o mérito dos benefícios de tratamentos convencionais – como remédios testados e aprovados pela ciência – seja transferido para a cura “espiritual”. O caso, citado no livro, do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, “grato” a Teixeira pela cura de um câncer, é exemplar: Barroso tratou-se também com medicina de verdade, mas a gratidão vai para os espíritos.
Alimentando-se do desespero de multidões de doentes, satisfazendo a ganância e a vaidade de tantos outros, Teixeira, antes do escândalo de abusos sexuais vir à tona, era um homem celebrado, admirado, cortejado e temido, cujo apoio e amizade eram disputados por figuras como o ex-governador de Goiás Marconi Perillo, pelo atual governador Ronaldo Caiado e pelos ex-presidentes da República Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva – que lhe deu de presente uma foto autografada, chamando-o de “amigo”. Muitos ministros do STF, para além de Barroso, frequentavam Abadiânia.
Hoje, a pecha de santo curador que Teixeira usou por décadas foi substituída pela de criminoso, acusado e condenado por crimes de estupro e abuso sexual, no que talvez seja a maior sequência de crimes sexuais do mundo. Escreve Cristina Fibe:
“No total, o Ministério Público de Goiás contabilizava, até dezembro de 2020, 323 vítimas de João Teixeira de Faria — 194 delas já haviam formalizado seus depoimentos, e 129 optaram por não fazê-lo, apenas registrando por e-mail ou telefone as suas denúncias. O órgão considerou que em 118 casos os crimes ainda não estavam prescritos. Além das 66 mulheres cujas histórias já foram encaminhadas à Justiça, o MP ainda analisa as outras, e espera-se que formalize novas denúncias. Os crimes de estupro levados às autoridades vão de 1973, quando o réu tinha 32 anos, a 2018, quando João Teixeira foi preso, aos 77. A promotoria de Goiás considera este o maior caso de abuso sexual do Brasil, quiçá do mundo, pelo intervalo de tempo e número de vítimas registradas. Quarenta e cinco anos. Trezentas e vinte e três mulheres”.
Em minha opinião, o livro de Cristina Fibe deixa a desejar em dois pontos. Primeiro, ao ignorar a ciência por trás dos aparentes “sucessos” de João de Deus – a psicologia do engano, esboçada nesta resenha, é um ponto de partida, mas há muito mais que poderia ser dito. Por exemplo, todas as manifestações físicas mais impressionantes de Teixeira, como mover uma lâmina por baixo da pálpebra do paciente, são truques circenses velhos e batidos, descritos há décadas, quando não séculos, na literatura sobre mágica de palco e sobre técnicas usadas por artistas como engolidores de espadas.
O livro “Secrets of Sideshows”, do ex-mágico, hoje pesquisador, Joe Nickell tem toda uma seção sobre “espetáculos de tortura”. E os próprios arquivos da Rede Globo (Cristina Fibe é jornalista de O Globo) devem conter vídeos antigos de Óscar González-Quevedo Bruzón, o falecido Padre Quevedo, demonstrando alguns desses truques. Algumas técnicas de “cirurgia psíquica” podem ser aprendidas na Wikipedia.
Segundo, ao não explorar mais a fundo as causas do apelo de João de Deus para um certo tipo de socialite ou celebridade, seja do meio artístico ou político – Teixeira parecia hábil em manipular o narcisismo típico das pessoas que se acreditam “espiritualizadas” – e a complacência com que o jornalismo brasileiro o tratou durante décadas. Cristina Fibe esboça algo nesse sentido ao citar o caso de Prem Baba, mas não se aprofunda.
De qualquer modo, é importante notar que “João de Deus: O Abuso da Fé” é um livro produzido “a quente”, ainda no calor dos fatos mais imediatos, em ritmo ofegante: é uma leitura urgente e necessária para que o brasileiro entenda o perigo de endeusar ídolos humanos e de se fiar em curas “mágicas” para problemas de saúde reais. Esperemos que, com o passar do tempo, a tragédia de Abadiânia seja dissecada por completo, e que a partir de agora, também as vítimas visíveis desse tipo de exploração cruel passem a receber a atenção de que necessitam.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)