Para as gerações nascidas nas duas últimas décadas, o nome “Uri Geller” talvez evoque apenas a vaga lembrança de uma notícia mais ou menos recente, em que o autoproclamado paranormal prometia usar seus poderes mentais para evitar a saída do Reino Unido da União Europeia.
Para quem – como eu – tem uma lembrança vívida dos anos 70, a associação é um pouco diferente: durante cerca de cinco anos, de 1973 a 1978, Geller foi uma espécie de super-astro internacional, aparecendo ao lado de figuras como John Lennon (1940-1980), Elton John, Muhammad Ali (1942-2016) e do astronauta Edgar Mitchell (1930-2016), o sexto homem a andar na Lua.
Sua penetração na cultura popular era tão grande que seu nome é citado num dos diálogos do filme “Annie Hall” (1977), de Woody Allen. Duas apresentações suas na Rede Globo, em 1976, atraíram mais de 90% da audiência da TV brasileira. Por aqui, seu nome inspirou até marchinha de carnaval (“em vez de entortar minha colher/vê se desentorta essa mulher”) e canção nos Novos Baianos, “Pra lá de Uri Geller” (autoria de Pepeu Gomes e Luiz Galvão).
O início
Israelense, filho de pais húngaros e veterano da Guerra de Seis Dias de 1967, Geller, após deixar as Forças Armadas e trabalhar algum tempo com comércio internacional, passou a se apresentar em teatros, discotecas e nightclubs como paranormal – capaz de ler pensamentos e afetar objetos materiais com o poder da mente.
Em 1970, Uri Geller foi julgado culpado de fraude, em Israel, depois de um espectador queixar-se à Justiça de que os feitos realizados no palco eram meros truques, não manifestações paranormais legítimas. Ele teve de devolver o preço do ingresso ao queixoso, e pagar as custas do processo.
Em 1972, o médico americano de origem croata Andrija Puharich (1918-1995) decidiu levar Geller aos Estados Unidos para submetê-lo a testes científicos. Puharich e Geller convenceram o astronauta Mitchell da realidade de seus dons psíquicos.
Mitchell aceitou financiar estudos sobre os supostos “poderes” de Geller, conduzidos por dois físicos especializados em raios laser, Russell Targ e Hal Puthoff. No início de 1973, a revista “Time” publicou reportagem sobre Geller e os esforços de Targ e Puthoff. O texto, em que eram ouvidos o mágico James Randi e o psicólogo Ray Hyman, indicava que Geller produzia seus efeitos por meio de truques, e que os dois físicos estavam sendo enganados.
De qualquer modo, os estudos acabaram rendendo um artigo, com resultados positivos, que foi publicado na revista “Nature” em 1974. A mídia em geral deu destaque ao “paper”, praticamente ignorando o editorial que o acompanhava.
Esse texto chamava atenção para as inadequações metodológicas do trabalho, e para o fato de que sua qualidade era inferior ao do material normalmente aceito por “Nature”. Também afirmava que a revista só o publicava para “estimular o debate” e dar alguma informação concreta a respeito do assunto para a comunidade científica, que se encontrava imersa em boatos sobre Geller. O editorial também advertia que a publicação não representava “um selo de aprovação” do meio acadêmico-científico.
Com veículos como New York Times alardeando o “paper” e ignorando ou dando destaque mínimo ao editorial, Geller disparou de vez rumo à fama.
Conexão UFO
Também em 1974, Andrija Puharich publicou sua versão da biografia de Geller, incluindo a explicação para a origem dos supostos superpoderes do israelense, num livro intitulado “Uri”. O escritor britânico Colin Wilson (1931-2013), ele mesmo um firme crente no paranormal, definiu assim a obra: “um livro tão espantoso e inacreditável que ninguém queria ler”.
Segundo Puharich, Os poderes de Geller eram transmitidos para o israelense a partir de uma nave espacial, a Spectra, originada no planeta Hoova. Um computador, Rhombus4D, comunicava-se com Uri Geller e Puharich por meio de transes hipnóticos e mensagens que apareciam misteriosamente em fitas cassete, fitas que se desintegravam imediatamente após serem ouvidas.
Geller seria uma espécie de messias, ungido pelos extraterrestres para evitar a Terceira Guerra Mundial e preparar a humanidade para um desembarque em massa de discos voadores, marcado para um futuro próximo.
Cogumelos mágicos
Em seus diários publicados dos anos 70, o ufólogo francês Jacques Vallee, que ainda hoje tem livre circulação no meio paranormal dos Estados Unidos, comenta inicialmente que Puharich lhe inspirava “ainda menos confiança que Geller”, mas depois se convence de que o médico era alguém extremamente crédulo, envolvido em “buscas absurdas”.
Em “Uri”, Puharich fala de sua profunda devoção por José Arigó, o médium brasileiro morto em 1971 e que foi uma espécie de precursor de João de Deus. O livro insinua que Puharich procurava, em Geller, uma espécie de “segunda vinda” de Arigó.
A reputação científica do médico tinha como base seu trabalho pioneiro com alucinógenos – um de seus livros se chama “O Cogumelo Sagrado” – e com o desenvolvimento de aparelhos eletrônicos para surdez.
Convencido, por um médium indiano, da existência de algum tipo de hierarquia cósmica dominada por um grupo intitulado Os Nove, e disposto a ver influências ufológicas por trás, por exemplo, das “curas” atribuídas a Arigó, Puharich mostrou-se especialmente predisposto a aceitar as “revelações” da nave Spectra.
A leitura de “Uri” é penosa, não só pelo assombro de Puharich com “fenômenos paranormais” que acontecem em torno de Geller, com todas as marcas clássicas de truques de salão (nada acontece enquanto as pessoas estão olhando; mas basta um minuto de distração e, de repente, um objeto surge materializado sobre a mesa), como pelo conteúdo de ficção científica ginasial das manifestações do planeta Hoova.
Não só os nomes (“Spectra”, “Rhombus”) soam como algo vindo de um filme vagabundo, como a voz soa mecanizada, lembrando o “falar robótico” dos monstros mecânicos dos seriados de TV da época. E os alienígenas cometem ainda o erro básico de usar o ano-luz – unidade de distância – como medida de tempo.
O fenômeno
Colin Wilson, em “The Geller Phenomenon” (publicado na Inglaterra em 1976), é astuto o bastante para notar que as falas de Rhombus4D e dos Nove, tal como transcritas em “Uri”, revelam uma ingenuidade sobre ciência e um estilo desajeitado no uso da língua inglesa que lembram muito o que se poderia esperar de um jovem pouco instruído, como o Geller da época, mas evita fazer a inferência óbvia – de que Uri Geller plantava as mensagens para alimentar as fantasias do cientista visionário que poderia patrociná-lo.
Em vez disso, o autor sugere que a trama espacial vagabunda era produzida pela mente inconsciente de Geller, e plantada no gravador, também de modo inconsciente, pelos poderes paranormais do israelense, numa espécie de poltergeist eletrônico.
A recepção negativa de “Uri” levou Geller a iniciar um progressivo afastamento de Puharich e de suas teses extraterrestres. Embora jamais tenha negado diretamente as supostas mensagens de Hoova, nos anos seguintes o israelense passou a oferecer interpretações diversas – por exemplo, fantasias espontâneas surgidas durante transes hipnóticos. O jornalista Jonathan Margolis, amigo pessoal de Geller e autor de duas obras sobre ele, sugere, em livro de 2013, que Puharich era um agente da CIA com a missão de desacreditar Geller.
Isso parece especialmente injusto, e não só porque a acusação aparece anos depois da morte do acusado. Em “The Search for Superman”, livro-reportagem de 1976 sobre pesquisas científicas a respeito de paranormalidade, o jornalista John L. Wilheim conta que a esposa de Puharich, Anna, divorciou-se dele por não suportar a obsessão do marido com a suposta missão messiânica de Geller. Ao Washington Post, Anna Puharich disse que Andrija a havia comparado “às pessoas que crucificaram Cristo”.
Ainda em 1976, Puharich descobriu outro veículo para a revelação dos Nove, a médium Phyllis Schlemmer. Segundo anotação do diário de Jacques Vallee, datada de março daquele ano, Schlemmer “avança de onde Geller parou”. O ufólogo registra ainda que Puharich esperava uma “iminente invasão em massa de alienígenas”.
Fazer fortuna
Na autobiografia “My Story”, também de 76, Geller diz acreditar que Spectra era “uma inteligência” que “servia a Deus”, sem entrar no mérito de sua origem exata. E também escreve que as mensagens, “assim como meus próprios instintos, estavam me empurrando para ir além dos testes científicos e continuar a dar notícia dessas forças energéticas para as massas”.
Esse ponto é sintomático: a despeito da versão oferecida pelos autores do artigo na “Nature”, Puthoff e Targ, de que os testes de laboratório com Geller haviam sido um sucesso – “experimentos conduzidos sob condições rígidas não deixaram dúvida quanto às habilidades de percepção paranormal de Uri”, escrevem em “Mind-Reach”, livro de 1977 – o fato é que Geller deixou de ser objeto de pesquisa científica séria em 1975, e no ano seguinte lançou-se de vez “em busca da fortuna”, nas palavras de “Mind Over Matter”, obra publicada pelo Grupo Time-Life em 1988.
O fim do interesse da ciência por Geller coincide com a publicação de “The Magic of Uri Geller” (depois relançado como “The Truth about Uri Geller”), de James Randi. Mágico de origem canadense, Randi estivera presente durante a tentativa de Geller de impressionar jornalistas da revista Time, em 1973, e convencera-se de que o jovem era apenas um ilusionista de poucos escrúpulos. No livro, Randi faz uma crítica detalhada dos experimentos de Puthoff e Targ, e explica como os efeitos produzidos por Geller podem ser obtidos por meio de truques.
Hoje em dia
Uri Geller vive na Inglaterra e segue tentando manter viva uma certa aura de mistério, embora praticamente todo o mundo já esteja convencido de que ele é apenas um ilusionista talentoso. Oferece palestras motivacionais e apresentou um reality-show na TV israelense alguns anos atrás. Diz que está para abrir um museu sobre si mesmo em Israel, onde está instalada “a maior colher torta do mundo” (nos anos 70, seu truque mais característico era dobrar talheres com o “poder da mente”). E, claro, promete evitar o Brexit.
Hal Puthoff deixou as pesquisas com paranormalidade nos anos 80 e passou a se dedicar à busca de uma tecnologia capaz de extrair energia útil das flutuações quânticas do vácuo. Esse tipo de equipamento é considerado impossível por cientistas sérios, e a ideia de “energia de ponto zero”, como essa linha de pesquisa é às vezes chamada, é tida como pseudocientífica.
Recentemente, Puthoff foi citado em reportagens do New York Times sobre gastos secretos do Departamento de Defesa dos EUA com pesquisas sobre óvnis. Russell Targ voltou a trabalhar com lasers e óptica, embora ainda publique material sobre paranormalidade – seu livro mais recente sobre o assunto saiu em 2012.
Phyllis Schlemmer, por sua vez, abriu uma escola de astrologia e um centro de estudos parapsicológicos na Flórida, além de ser autora de livros que trazem as mensagens dos Nove para a humanidade.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência