Quem lida com questões de saúde pública, principalmente com o problema da resistência a vacinas — um espectro de atitudes que começa na dúvida cautelosa e sincera sobre imunizações e chega à paranoia antivaxx — cedo ou tarde se depara com o chamado “viés de omissão”: o fato de que a maioria das pessoas teme menos os resultados ruins trazidos por inação (uma criança pegar sarampo, porque não foi vacinada) do que por ação (uma eventual reação adversa à imunização).
Este viés passa a ser irracional quando — como no caso das vacinas — o risco da ação (reação adversa) é muitíssimo menor do que o da omissão (a criança adquirir uma doença infecciosa, potencialmente letal). Ainda assim, para muitas pessoas, a intuição básica de que “não fazer” é sempre mais seguro do que “fazer”, danem-se circunstâncias e as probabilidades reais, pode ser extremamente forte e difícil de superar.
Psicólogos estudam há tempos as causas desse viés. Alguns resultados sugerem uma relação com o tempo de arrependimento: aparentemente, o arrependimento pelas consequências de uma ação que resulta mal vem de modo agudo e imediato, enquanto o arrependimento causado por uma omissão desastrosa demora para chegar (mas chega, e pode ser intenso).
Também se fala em um “viés de normalidade”, a ideia de que, ao nos omitirmos, deixamos que as coisas sigam seu “caminho normal”: se algo der errado depois disso, a responsabilidade não é nossa, é do azar, do destino, da Providência, dos outros. No caso dos efeitos de uma ação, esse tipo de desculpa se torna bem mais difícil. Pôncio Pilatos era um cara com forte viés de omissão.
A angústia do goleiro…
Há certas situações, no entanto, que favorecem a distorção oposta: um afã de fazer alguma coisa, qualquer coisa, mesmo quando a omissão seria o curso mais racional. Este é o chamado “viés de ação”, menos conhecido e prevalente que o de omissão, mas especialmente agudo em determinadas circunstâncias — por exemplo, quando um goleiro se prepara para tentar defender um pênalti.
Aos fatos: a menos que o jogador encarregado da cobrança seja especialmente inepto ou esteja num dia ruim, é impossível para o goleiro prever onde ele irá chutar e, uma vez que a bola tenha partido da marca do pênalti, não há tempo suficiente para o goleiro ver para que lado ela está indo e, só então, pular. Análises estatísticas mostram que, nessas circunstâncias, o melhor que o goleiro pode fazer é ficar parado no meio do gol. Mas a maioria dos goleiros escolhe um lado e pula.
Um estudo publicado em 2007 sugere que os goleiros reagem dessa forma porque isso é o que se espera deles: “o viés de omissão (…) é revertido aqui porque a norma é revertida — agir, em vez de não agir”. Citando um estudo de 1986 do ganhador do Prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman, os autores do trabalho de 2007 sugerem que, dada a inversão das regras (o que se espera do goleiro é que faça alguma coisa), “sofrer um gol causa sentimentos piores no goleiro depois de uma inação (ficar no centro) do que de uma ação (pular), o que leva a um viés de ação”.
“Essa decisão, aparentemente enviesada, é particularmente espantosa, já que goleiros têm enormes incentivos para tomar decisões corretas”. Em outras palavras, o goleiro prefere o risco maior (tomar um gol depois de pular num canto aleatório) ao menor (tomar o gol ficando parado), porque pular é o que se espera dele.
ADENDO (5/07/2020): Algumas hortas após a publicação deste artigo, o mestre em atividade física e preparador de goleiros Daniel Crizel gentilmente entrou em contato com o autor para avisar que a literatura sobre a melhor escolha dos goleiros diante do pênalti, usada como base para esta seção do texto, está desatualizada. "O goleiro deve sim retardar ao máximo a escolha antes da batida na bola, mas não existe propensao maior que este ocorrerá no meio, como sugere a escrita", avisa. "Existem evidências científicas que desmentem está afirmação. Inclusive a mais recente em um artigo de 2019".
… e a do médico
Outra profissão onde o viés de ação — o incentivo psicológico para fazer alguma coisa, qualquer coisa, mesmo que seja bobagem — é muito forte é a Medicina, onde intuições na linha de “melhor prevenir do que remediar” e “por via das dúvidas” parecem comuns. Uma enquete realizada em Israel, envolvendo 130 médicos, apresentou aos participantes “cinco resumos clínicos descrevendo pacientes que tinham queixas incomuns, nenhum diagnóstico claro, e nenhuma necessidade aparente de cuidados de urgência”.
A maioria dos médicos — 87% — disse que tomaria alguma atitude pró-ativa (pedir exames, receitar remédios, mandar o paciente para a emergência) e apenas 13%, que não fariam nada de imediato, mas apenas acompanhariam a evolução dos sintomas. A conclusão dos autores é de que, em condições de incerteza, “médicos preferem examinar a acompanhar, uma inclinação consistente com o viés de ação”. Entre os exames e procedimentos sugeridos, havia radiografias, biópsias, fisioterapia e a prescrição de opioides.
Assim como os goleiros, médicos sofrem com uma inversão da norma: se se espera do goleiro que pule — mesmo que seja ao acaso — e ele sofre menos com o gol sofrido depois de “escolher um canto” do que com a bola que passa e o encontra parado, do médico também se espera que faça alguma coisa, que reafirme seu conhecimento e sua autoridade com receitas e exames, mesmo que sejam tiros no escuro.
Como no caso do goleiro, o que está em jogo neste tipo de circunstância é menos o resultado final (a defesa do gol, a saúde do paciente) e mais como ao profissional é visto — pelos outros e, também, por si mesmo.
O viés da pandemia
Outras circunstâncias em que o viés de ação se manifesta são aquelas onde o benefício de agir parece ser considerável, enquanto o de não fazer nada dá a impressão de ser pequeno ou inexistente. Compras de impulso, por exemplo: agir (gastar dinheiro no produto) traz um benefício palpável (a posse do produto desejado). Já não agir (poupar o dinheiro) tem um benefício pouco claro (afinal, que diferença faz uns reais a mais ou a menos na conta?), e que só se fará sentir no longo prazo.
Essa forma do viés — que nos leva a preferir ações cujos benefícios são facilmente visualizáveis (ainda que talvez enganosos) a omissões com benefícios que parecem difíceis de enxergar (mas concretos) — ajuda a explicar uma das frases mais ouvidas nesta pandemia, cada vez que se aponta que um tratamento ou remédio proposto para COVID-19 é inútil, ilusório ou perigoso: “mas então é pra fazer o quê, deixar morrer?”.
O impulso de “tentar qualquer coisa” frente à percepção de uma emergência é o viés de ação levado ao paroxismo.
A dicotomia proposta é a de que a ação (“tentar qualquer coisa”) ou terá benefícios claros, ou deixará a situação como estava; já a inação apenas deixará a situação como estava, sem alternativa. No desespero, é mais fácil sentir o impacto emocional do argumento do que ver onde ele degringola.
Em termos puramente lógicos, a dicotomia falha porque é impossível garantir que uma ação, qualquer ação, só trará resultados positivos ou neutros; a possibilidade de consequências negativas — imprevistos — é sempre presente. Riscos e benefícios precisam ser avaliados caso a caso, não com base em generalizações. “Vamos tentar, porque pior não fica” não é um princípio, é um epitáfio.
Jogo de azar
No caso específico da pandemia, o erro é agravado pelo fato de que a “inação” não é realmente inação, é a obediência a protocolos e procedimentos bem estabelecidos — sejam de isolamento social, sejam de tratamento hospitalar.
Uma especulação pessoal: em questões de saúde, o viés de ação também se liga ao pensamento supersticioso e sua matriz, a ilusão de controle, a ideia de que controlamos eventos que, na verdade, são fortuitos. Um exemplo típico é o do jogador que arremessa os dados na mesa delicadamente quando quer um número baixo, e com força quando deseja uma soma maior.
Tomar “profiláticos” inúteis, como vitamina C para gripe ou hidroxicloroquina para COVID-19, parecem maneiras muito claras de fomentar essa ilusão.
Não são remédios. São amuletos ingeríveis. E, ao contrário do que insistem em repetir as eternas vozes do deixa-disso epistêmico (“Qual o problema? Que mal que tem? Vai tirar o conforto das pessoas?”), não são inócuos.
Para não dizer que só falei de cloroquina: em Madagascar, na África, o governo vem promovendo uma “cura orgânica” para COVID-19 baseada em Artemisia annua, uma planta que serve de base para um remédio usado contra a malária. A garrafada, que está sendo exportada para outras nações africanas, além de provavelmente inútil como antiviral, traz o risco de promover resistência ao antimalárico artemisinina.
Também na África, o arcebispo católico Samuel Kleda, de Camarões, vem promovendo um “elixir COVID-19”, baseado em plantas e que já teria salvado “mais de 3 mil pessoas”. Dada a história do continente, essas “curas” acabam surfando em discursos anticoloniais, de afirmação da identidade nacional, dando margem a teorias de conspiração – que nunca estão longe quando a ilusão de controle é um fator relevante.
Questões identitárias envolvendo conspirações, no contexto de propostas de “cura” improváveis (e perigosas) para o SARS-CoV-2 também aparecem em várias outras partes do mundo, incluindo os Estados Unidos, e entram em forte sinergia com o viés de ação. O impulso de fazer alguma coisa, qualquer coisa, não importa o quê, já é perigoso em si; alimentado por preconceito e informação ruim, torna-se ainda mais letal.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência