Vamos supor que eu (na verdade, minha contraparte no Universo do Espelho) lhe diga que um “shake” feito com pó de múmia e titica de galinha cura COVID-19. E vamos supor que você me responda, de modo bastante razoável, que isso não deve ser verdade, por uma série de motivos, incluindo o de que a Medicina abandonou o uso de pó (e resina) de múmia já faz uns 200 anos, porque esse negócio não serve para nada. E que minha ideia é perigosa, porque titica de galinha, afinal, não é a mais sanitária das substâncias.
E vamos supor ainda que, diante da sua resposta, eu me encha de indignação e proclame que conheço pessoas que se curaram depois de tomar o “shake”, exija que você explique como, então, ninguém da minha família (todos tomando o “shake” três vezes ao dia) ficou doente ainda e acrescente que só vou considerar a hipótese de que posso estar enganado quando você me trouxer um teste clínico duplo-cego, com grupo placebo, randomizado, demonstrando cabalmente que meu “shake” não funciona, ou que causa problemas.
O que está errado nesta figura? Um monte de coisas.
Começando pelo mais simples: meu duplo comete duas falácias argumentativas, post hoc e apelo à ignorância. Post hoc (ou, para dar o nome latino completo, post hoc ergo propter hoc, “depois disso, logo por causa disso”) é o raciocínio falho que confunde sequência no tempo com relação de causa e efeito.
No caso específico: as pessoas citadas recuperaram a saúde. A causa disso é, claro, algo que aconteceu antes da recuperação (a menos que haja uma máquina do tempo na jogada). Mas isso não quer dizer que, entre todas as coisas que aconteceram antes, haja motivo para destacar o “shake”. Pode ter sido a mera passagem do tempo; pode ter sido algum outro remédio; pode ter sido um monte de coisas. Na ausência de outros indícios ou evidências, não há justificativa para isolar o “shake” de todos os demais antecedentes e atribuir mérito a ele. Isso fica ainda mais claro quando nos lembramos de que a imensa maioria das pessoas que se recuperam da COVID-19 certamente não tomou o meu “shake”.
O apelo à ignorância, por sua vez, começa, como de costume, com a injunção “como você explica…”. O fato de um dos lados de uma discussão não ser capaz de explicar algo, ou oferecer uma explicação errônea, não torna válida a explicação alternativa oferecida pelo outro lado. O fato de uma pessoa se enganar ao explicar uma luz no céu, dizendo que se trata do planeta Marte — quando, na verdade, é Júpiter — não faz com que um outro cara, que explica a luz atribuindo-a a emissários de Alfa Centauri, esteja certo.
Voltando ao caso específico: a maioria das famílias no Brasil (ainda) não teve nenhum caso sintomático de COVID-19, logo não há nada a explicar, realmente.
Provar uma negativa
O ponto mais interessante da resposta desse meu alter ego tresloucado, no entanto, é o último: a exigência de um teste científico altamente rigoroso para provar que ele (eu) está errado.
A primeira esquisitice que chama atenção é a ridícula assimetria dos meios de prova: meu duplo maligno espera que você aceite a eficácia do “shake” de múmia e titica com base apenas no que ele diz — nada além de um par de falácias — ao mesmo tempo em que impõe, a quem nega seu remédio, a tarefa de produzir o tipo mais rigoroso de evidência científica. É de rir na cara de quem aparece com uma conversa dessas.
O absurdo torna-se ainda mais evidente quando notamos que o que se espera do teste é uma prova de inexistência. No caso, inexistência de benefícios no “shake”. O que é a rigor impossível, em termos empíricos.
Quando se trata de lógica ou matemática, é possível provar que certas entidades não existem e jamais poderiam existir (um triângulo de um lado só, um solteiro casado). Mas, no mundo material, as coisas não funcionam bem assim: se você me disser que não existem dragões cor-de-rosa, eu posso responder que você ainda não olhou no centro da Terra, na Galáxia de Andrômeda ou entre as luas de Plutão.
Um corolário dessa simples constatação é que, num debate honesto, o ônus da prova cabe a quem afirma. Intuitivamente, todos reconhecemos isso: se alguém duvida de que eu tenha um crânio de cristal na biblioteca, o que se espera é que eu mostre o ornamento, não que o cético seja impelido a revistar a minha casa (note que, se ele não achar nada, sempre posso dizer que não procurou direito).
A questão de em que momento a “ausência de evidência” permite inferir “evidência de ausência” é como a da diferença entre tenacidade e teimosia, obstinação e obsessão, pertinácia e burrice: não tem resposta fácil e depende das informações de fundo, como a probabilidade prévia — isto é, até que ponto a ideia testada parecia crível e razoável antes de os testes começarem.
Obedecer regras
Mas, à medida que o amor pela ideia ruim se dissemina, nenhum vácuo evidencial pode vir a ser grande o suficiente para garantir que ela será descartada: sempre há quem aponte um canto remoto onde ninguém olhou ainda.
Em sua obra póstuma “Investigações Filosóficas”, Ludwig Wittgenstein (1889-1951) apresenta o argumento que ficou conhecido como o “paradoxo da obediência a regras”: “nenhum curso de ação pode ser determinado por uma regra, porque todo e qualquer curso de ação pode ser compatibilizado com a regra”.
A ideia é que, para obedecer a uma regra, é preciso antes interpretá-la, e a interpretação “correta” nunca é autoevidente, não existe aí boiando no espaço. Ela é construída pela coletividade (para ver um bom exemplo histórico disso, basta pensar na proliferação de denominações cristãs, todas em tese baseadas nos mesmos mandamentos, ou no ditado judaico de que “dois judeus, numa ilha deserta, construirão três sinagogas”).
Voltando para a ciência: se a coletividade em questão tiver um apego fanático a alguma “verdade revelada”, as regras de inferência — incluindo o método científico — jamais serão interpretadas de modo a invalidar o dogma tribal.
No caso do “shake” hipotético, esse processo já estava claro na aplicação assimétrica dos princípios de prova, quando o uso de falácias para “confirmar” a eficácia da mistura é aceito sem críticas, mas o trabalho de produzir evidência negativa é lançado sobre os ombros de experimentos demorados, caros e rigorosos.
O paradoxo de Wittgenstein sugere ainda que, mesmo se realizados, tais experimentos só serão aceitos pelos fiéis se gerarem resultados positivos. Pois sempre se pode dizer que o experimento não encontrou benefício porque foi aplicado no momento errado da doença, ou no tipo errado de paciente, durante a fase errada da Lua, ou num dia pouco propício da semana. “Precisamos de mais estudos” é um mantra que pode ser repetido ad aeternum.
Mas se os fanáticos são irredutíveis, o que se há de fazer? Normalmente, eles vão ficando para trás, numa bolha própria, enquanto a caravana passa. De tempos em tempos, irrompem no mainstream — como aconteceu com o movimento terraplanista. Mais preocupante do que esses surtos de fama, no entanto, é o atrito constante que criam em torno da validade das regras de inferência indutiva e de sua aplicação correta. Em situações excepcionais, esse atrito pode até se traduzir em questões de vida ou morte.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência