Negação da mudança climática põe o Brasil em perigo

Apocalipse Now
20 set 2019
Autor
Gráfico das faixas de aquecimento para o Brasil

Declarações recentes de altas autoridades da República, como o chanceler Ernesto Araújo e o  senador Zequinha Marinho (PSC-PA) vêm ameaçando pôr o negacionismo climático na corrente principal da formulação de políticas públicas pelo governo federal. Isto representa um erro tão desastroso quanto instituir o terraplanismo na elaboração das cartas náuticas usadas pela Marinha, ou fixar as taxas de juros com base em astrologia. 

“Negacionismo climático” é a recusa em aceitar o fato científico bem-estabelecido de que a atividade humana, principalmente a queima de combustíveis fósseis, vem alterando o clima da Terra, causando uma elevação nas temperaturas médias do planeta e consequências correlatas, como um aumento na incidência dos chamados eventos climáticos extremos – alta do nível dos mares, grandes tempestades, furacões, secas, ondas localizadas de frio ou de calor intensas e excepcionais. 

Referi-me à mudança climática como “fato científico bem-estabelecido”. Por boas razões. A literatura especializada a respeito é farta (há um apanhado de artigos, escritos por cientistas especializados no assunto, aqui, e este site faz um trabalho heroico em traduzir os detalhes mais técnicos da ciência pertinente para os não-iniciados; há uma seção em português), mas uma característica da internet é que, neste ambiente, os debates estão sempre recomeçando: um problema que foi resolvido há décadas por gente que nem pensa mais no assunto está sendo “descoberto”, agora, por outro grupo, a dois cliques dali. 

O fundamental

Levando isso em conta, faço um breve resumo da ciência mais básica por trás da ideia de aquecimento global, reiterando que detalhes técnicos podem ser conferidos nas referências do parágrafo acima. 

Ao básico, então: a principal fonte de calor energia para o planeta Terra é a luz do Sol. A luz existe em diferentes comprimentos de onda. No caso do espectro visível, esses comprimentos diversos são o que percebemos como as diferentes cores, do vermelho ao violeta, passando por verde, azul, etc. Mas a paleta do Sol vai muito além disso: ondas de rádio e raios-X, por exemplo, são comprimentos de onda, ou “cores”, invisíveis para nós. 

Diferentes materiais são transparentes ou opacos para diferentes comprimentos de onda: a pele humana é opaca para a luz visível, mas transparente para os raios-X. A atmosfera terrestre é transparente para boa parte da luz solar que chega até nós. Essa luz atinge a superfície do planeta – formada por continentes e oceanos – e a aquece. Aquecida, a superfície passa, também, a irradiar luz de volta ao espaço, mas numa “cor” invisível para o olho humano, chamada radiação infravermelha.

Alguns componentes da atmosfera – o principal, aqui, é o CO2 – são opacos para esse comprimento de onda: as moléculas desses gases absorvem certos tipos de infravermelho que, de outra forma, voltariam para o espaço, e os reemitem de volta para a superfície. Como energia não pode ser criada nem destruída, esse infravermelho aprisionado aqui conosco acaba gerando aquecimento global.

O problema

Esse processo, chamado “efeito estufa”, é necessário para a manutenção da vida na Terra: sem ele, nosso planeta seria gelado. A vida terrestre, incluindo a espécie humana e as outras de que nossa existência depende, evoluiu levando esse efeito em conta.

 A questão é: desde que começamos a usar petróleo e carvão para mover nossa civilização, passamos a injetar quantidades cada vez maiores de CO2 na atmosfera. Átomos de carbono que estavam aprisionados no subsolo há milhões de anos, sob a forma de óleo ou carvão mineral, de repente voltaram a circular na atmosfera quando esses combustíveis e seus derivados são queimados – e passaram a “segurar” cada vez mais energia do Sol junto à Terra.

A vida em nosso planeta encontra-se adaptada a um certo nível de efeito estufa. Uma variação muito grande (“muito grande”, nesse contexto, seria o suficiente para causar um aumento médio nas temperaturas globais de 1,5º C a 2º C) não representa uma ameaça “para o planeta”, nem mesmo para “a vida na Terra” – seres vivos de algum tipo possivelmente continuarão existindo, de algum modo, mesmo se os mares vierem a ferver –, mas é uma ameaça, sim, para as condições climáticas e ecológicas específicas em que nossa espécie existe, e nas quais tem prosperado, desde o fim da última Era Glacial. Alterar essas condições irá produzir (já está produzindo) morte, sofrimento, desastres, doenças e prejuízos econômicos que poderiam ser evitados.

As evidências

Há evidência abundante de que o processo esboçado acima encontra-se em curso. Existem trabalhos científicos como este, que reconstituem variações climáticas dos últimos 2 mil anos, mostrando que a situação atual é excepcional e virtualmente inexplicável em termos “naturais”, isto é, sem levar o “nosso” CO2 em conta. Há gráficos com o que abre este artigo, onde as faixas de cor indicam a diferença de temperatura de cada ano, entre 1901 e 2018, no Brasil, em relação à média auferida entre 1971 e 2000. Linhas azuladas representam anos mais frios que essa média; vermelhas, mais quentes. A intensidade do tom indica o tamanho da diferença.

Sabemos que existe amplo consenso, entre cientistas que estudam o sistema climático terrestre, de que há um processo perigoso de mudança climática em curso, e de que esse processo é causado pelas emissões humanas de dióxido de carbono. Esse ponto do “consenso dos especialistas” muitas vezes é criticado por, supostamente, confundir uma questão de fato com uma questão social, ou de opinião. Por isso, vale a pena pensar um pouco no assunto.

Vivemos num mundo complicado, onde é impossível para uma pessoa só compreender a fundo todas as questões de que sua vida depende – da farmacocinética dos remédios para pressão arterial ao funcionamento do chip de um celular, por exemplo – e, por questão de conveniência (e sobrevivência!), temos de confiar em especialistas. É por isso que acreditamos que o remédio que o médico receitou tem mais chance de nos curar do que de nos matar, ou que o telefone não vai explodir na nossa cara.

Nesse aspecto, “consenso dos especialistas” nada mais é do que o pensamento predominante sobre um assunto “A”, entre as pessoas que construíram carreiras trabalhando com “A” e criticando as ideias umas das outras. Inferir que esse consenso tem mais chance de estar certo do que o palpite de alguém que só ouviu falar em “A” anteontem, num vídeo do YouTube, é mero bom-senso. 

Quando o assunto é científico, esse consenso tem ainda mais peso: ciência, afinal, é uma atividade fundamentada em ceticismo e experimentação. Quando uma comunidade científica se proclama convencida da veracidade de uma alegação “A”, isso significa que a alegação foi testada e criticada ao limite – e sobreviveu.

É importante notar que consenso não implica certeza ou unanimidade. Tratando da unanimidade primeiro: é natural que alguns especialistas não se deem por convencidos, e às vezes essa minoria até pode estar certa, mas em que grupo o leigo, que não tem o conhecimento necessário para avaliar a fundo os argumentos, deve se fiar? Lembrando que o consenso dos especialistas é, exatamente, a posição predominante entre as pessoas competentes para avaliar os argumentos.

Também é preciso levar em conta que nem sempre o especialista dissidente é mesmo um “especialista” no assunto em questão.  Por exemplo, o “abaixo-assinado de 30 mil cientistas” contra a realidade do aquecimento global tem, entre os signatários, uma maioria de engenheiros, médicos e outros profissionais, não cientistas de carreira especializados em climatologia. Apenas 9 mil dos participantes têm doutorado – e, de novo, não necessariamente em ciência do clima.

Sobre a certeza: nenhuma posição científica é absolutamente certa. A ciência muda à medida que os fatos descobertos pelos cientistas vão se acumulando e forçando a revisão das teorias que predominam até o momento. Mas é irresponsável sentar e ficar torcendo para que o consenso científico mude para o que queremos, só porque o que ele diz agora é desagradável. Isso é tão irresponsável quanto fazer dívidas a rodo torcendo para, em algum momento, ganhar na loteria.

Negação

Todos nós aceitamos calmamente a maioria dos consensos científicos ao nosso redor – de que uma alimentação saudável inclui frutas e legumes, de que a Terra é redonda, de que antibióticos não matam vírus, que tabaco é a principal causa de câncer de pulmão, que vacinas são seguras e necessárias, etc. Sabemos, ou ao menos intuímos, que, em questões de ciência, acompanhar os especialistas é a coisa racional a fazer.

No entanto, negacionismos emergem. Negar o consenso científico traz consigo um fardo cognitivo enorme – exatamente porque, no geral, todos reconhecem que esse consenso costuma apresentar a melhor descrição possível da realidade, no presente histórico. Explicar por que aquele consenso específico, “C”, que está sendo negado,foge à regra não é tarefa trivial.

Existem duas saídas estereotípicas: uma é a teoria da conspiração. Os cientistas que apoiam e reafirmam “C” são todos parte de algum plano, foram subornados por alguém, estão sob chantagem, querem dominar o mundo... Nesse caso, a narrativa costuma expandir-se para incorporar os dissidentes como heróis da resistência, e eventuais crackpots – malucos com ideias extravagantes e cientificamente inaceitáveis – como gênios incompreendidos. 

Um clichê dessa linha de defesa é o da “revelação iminente”: a qualquer momento, a perversidade do consenso será exposta à vista de todos! A prova vai surgir e as escamas cairão dos olhos dos infiéis. O consenso, na verdade, “está virando”. É só esperar: mais uma semana, mês, ano... século.

A outra é o apelo ao relativismo: minha verdade é tão boa quanto a sua. Tudo são narrativas, e eu prefiro esta àquela. Não existe questão de fato e substância em jogo, mas apenas uma disputa de poder, recursos e prestígio entre, digamos, ecologistas e postos de gasolina.

Redes

Se o negacionismo cobra um preço cognitivo tão alto, por que as pessoas incorrem nele? Artigo publicado em 2016, na Science, dá uma pista. O trabalho apontava que as crenças se estruturam na mente humana sob a forma de redes lógicas: se eu acredito que X implica Y, e tenho motivos para desejar que Y seja verdade, então resistirei a aceitar evidências de que X é falso.

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Nesse aspecto, aquecimento global causado pela atividade humana põe uma série de crenças caras a muita gente em jogo. Quem está comprometido com a ideia de que toda restrição ao livre mercado é ruim pode sentir essa posição ameaçada. Quem vê, no petróleo, o motor do progresso e caminho para o fim do subdesenvolvimento, também. E assim por diante. Crenças também têm uma dimensão social: muitas vezes, ser aceito e respeitado num grupo implica acreditar em certas coisas sancionadas pelo grupo; e se a crença é "cara", isto é, faz com que a pessoa seja mal vista fora do grupo, seu valor como emblema de lealdade e símbolo de status sobre.

Parcela significativa do debate público contemporâneo parece enamorado de um certo niilismo dialético, uma perda de fibra, um desencanto em relação à mera possibilidade de dar razões, como se paixões e preconceitos fossem a soma total da vivência humana e a racionalidade, uma quimera, uma fé de ingênuos. 

Há um debate na literatura especializada sobre se fatos e argumentos realmente são eficazes em disputas de natureza tribal ou de polarização política, e parece existir algum escopo para otimismo.

O fato de nossa espécie ter chegado à Lua, erradicado a varíola e resistido à tentação do holocausto nuclear – para ficar só em três exemplos do século passado – sugere que a situação talvez não seja tão ruim. A razão pode não reinar absoluta, mas pouquíssimos seres humanos conseguem se manter, todo o tempo, indiferentes a seu chamado. 

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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