Os escrotos, os omissos, os deslumbrados e os furiosos

Resenha
12 dez 2018
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Capa do livro "A Invenção dos Discos Voadores"

O livro “A Invenção dos Discos Voadores” tem como enfoque principal o tratamento dado pela mídia brasileira ao tema dos objetos voadores não-identificados (óvnis) na primeira década de popularidade internacional do fenômeno (1947-1958). O livro é um precioso documento histórico, que deveria ser mais lido e estudado por todos os que se interessam pela comunicação da ciência ao público, e pela complexa relação entre a atuação dos jornalistas e a percepção pública do que é, ou não, cientificamente plausível.

Baseado na dissertação de mestrado de seu autor, Rodolpho Gauthier Cardoso dos Santos, o livro começa de modo um tanto quanto trôpego. O prefácio, a introdução e o primeiro capítulo, que contextualiza o surgimento do “fenômeno UFO” como alvo de intensa atenção popular durante o pós-Segunda Guerra, nos Estados Unidos, ainda sofrem da falta de traquejo típica de muita escrita acadêmica, mas a partir daí o texto decola e a viagem é agradável, interessante e, se você for, como eu, jornalista, embaraçosa.

Isso porque a reconstituição histórica produzida por Cardoso dos Santos deixa muito claro que a “ufologia” brasileira certamente recebeu impulso fundamental graças a uma enorme picaretagem jornalística, as infames “fotos da Barra da Tijuca” de 1952. Nas palavras do autor:

“Eram quatro da tarde do dia 7 de maio de 1952, uma quarta-feira. O repórter João Martins e o fotógrafo Ed Keffel, funcionários da revista O Cruzeiro, estavam sentados na areia da Ilha dos Amores, uma região afastada na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. De acordo com o relato deles, tinham ido até o local para fazer uma reportagem sobre casais que procuravam a praia deserta para namorar. Quando esperavam pacientemente a chance de fotografar um par romântico descuidado, algo aconteceu. Um objeto voador cinzento-azulado de forma circular apareceu diante de suas retinas(...)”

O resultado foi um enorme circo promovido pelo maior grupo nacional de mídia da época, os Diários Associados, um caderno especial de oito páginas em O Cruzeiro – então o veículo de comunicação mais popular do Brasil –, a transformação completa da carreira do repórter João Martins, que a partir daí tornou-se uma espécie de caçador oficial de óvnis, e a chegada definitiva da febre ufológica às terras brasileiras.

Suplemento disco voador de O Cruzeiro

Hoje, ninguém mais duvida de que as fotos de disco voador supostamente tiradas por Keffel na Barra da Tijuca, naquele dia, são na verdade truques rudimentares de laboratório (a luz solar que incide no disco voador vem de um ângulo diferente da luz que banha a paisagem, por exemplo).

Comentando sobre os padrões éticos que então imperavam na redação de O Cruzeiro, Cardoso dos Santos cita um depoimento de Freddy Chateaubriand, diretor da publicação: “Os fatos não eram importantes (...) Se você é jornalista e quer vender, você tem que ser escroto. É uma palavra meio forte, mas você não pode ter tanto prurido, senão não vende porra nenhuma”. E o sucesso da publicação pioneira de Keffel e Martins deixou uma coisa bem clara para todos: disco voador vendia revista.

E como a comunidade científica brasileira de então reagiu a esse assalto midiático? Fingindo que não havia nada ao que reagir. O autor cita, como ilustres exceções, figuras do Observatório Nacional do Rio de Janeiro, que “se destacaram ao fazerem declarações públicas que ajudaram a esclarecer casos e a combater especulações”. Mas, no geral, os cientistas brasileiros omitiram-se, deixando o público não-especializado sem parâmetros para distinguir sensacionalismo de ciência.

Cardoso dos Santos  pondera que havia poucos pesquisadores profissionais no Brasil de então, e que esses “estavam envolvidos na luta pela melhoria de suas condições de trabalho, algo que por si parecia mais relevante. O tom sensacionalista de alguns meios de comunicação também os afastava naturalmente do assunto”.

Já as autoridades prestaram-se a um papel cômico. Militares, principalmente, pareciam deslumbrados, engolindo as lorotas de João Martins como se fossem verdades reveladas. Um relatório da Força Aérea Brasileira sobre as fotos da Barra da Tijuca concluiu que elas eram verdadeiras – porque não haviam sido produzidas a partir do arremesso de discos de madeira diante da câmera. “Aparentemente, não passou pela cabeça deles [militares] que as fotos pudessem ter sido obtidas pelo recurso da dupla exposição do filme”, nota Cardoso dos Santos.

 A reação cética acabou vindo de publicações de divulgação científica, principalmente, de acordo com a pesquisa do autor, da revista Ciência Popular, dirigida pelo engenheiro Ary Maurell Lobo. A Invenção dos Discos Voadores descreve como Lobo publicou respostas ponderadas às dúvidas do público sobre os objetos voadores misteriosos, e também artigos esclarecedores sobre a falibilidade da visão humana e as limitações do testemunho individual. Mas a paciência do editor se esgotou rapidamente, e o livro documenta séries de impropérios publicadas em Ciência Popular ao longo do tempo. Por exemplo:

“Tudo daria para não entrar nessa sujeira dos discos voadores. Mas quem tem como objetivo difundir a verdade científica em prol de um Brasil de amanhã sem moleques não deve permanecer parado, quando lhe cumpre combater a felonia e a parvalhice. No entanto, não escondo a repugnância com que o faço, sobretudo considerando a nenhuma classe dos adversários. Portanto para a frente, até liquidar os charlatães, coibir os gaiatos, acalmar os paranoicos, e esclarecer os boçais”.

Não é preciso um doutorado em comunicação da ciência para desconfiar que é muito mais fácil “esclarecer os boçais” se você evitar chamá-los de “boçais” – e mais fácil ainda, se você tiver em mente que pessoas podem estar enganadas ou desinformadas sem que isso as torne necessariamente “boçais”.

Como bem nota Cardoso dos Santos, ao “apostar em ataques pessoais e argumentos de autoridade”, Maurell Lobo tornou o argumento cético muito  mais fraco do que poderia ser – fato agravado pela gritante diferença de circulação entre a titânica O Cruzeiro e a muito mais modesta Ciência Popular.

Além de ser um levantamento histórico valioso, A Invenção dos Discos Voadores oferece ao leitor contemporâneo amplo material para reflexão sobre as personagens da época que retrata – os jornalistas escrotos, os cientistas omissos, as autoridades deslumbradas, os céticos furiosos – e como esses papéis reaparecem (ou não) no cenário atual.

Gostaria de imaginar – e isto pode ser um mero viés pessoal – que as duas categorias em que me enquadro (jornalista e cético) evoluíram, ainda que, talvez, menos do que o necessário.

No front jornalístico, se é verdade que a mentira deliberada, iniciada pelo jornalista, tornou-se mais rara, também é fato que o acolhimento acrítico de charlatões de todo tipo segue firme e forte: o repórter não inventa, mas repassa ao público, não raro com fidelidade canina, as invencionices que lhe chegam de terceiros. Entre os céticos, a figura do raivoso cuspidor de impropérios tende a se tornar um espantalho do passado; a questão é quanto tempo a tendência levará para se cumprir.

Já autoridades e cientistas (principalmente as sociedades científicas) têm muito pouco de que se orgulhar.

Casos recentes, como o da fosfoetanolamina sintética ou do “experimento” com homeopatia no interior catarinense, mostram que as autoridades civis de hoje estão tão deslumbradas e despreparadas para lidar com questões de pseudociência quanto os militares de 1952. Quanto aos cientistas, a despeito de notáveis exceções individuais, como classe seguem muito mais preocupados com as mazelas da profissão do que com a percepção pública do que fazem, e do significado mais amplo da ciência.

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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