Há menos de um mês, o governo espanhol iniciou uma ofensiva para remover as “pseudoterapias” – incluindo homeopatia – do sistema de saúde e dos currículos universitários. Na Inglaterra, desde 2017 que a homeopatia vem sendo retirada do sistema público de saúde, o NHS: há menos de dez meses, o maior hospital homeopático de Londres foi descredenciado do sistema.
Em 2015, o Conselho Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da Austrália (NHMRC) concluiu, após analisar mais de uma centena de estudos científicos, que a homeopatia é inútil e seu uso, quando voltado para condições graves ou crônicas, representa um risco grave para o paciente.
A despeito disso, e com base em um único estudo, de qualidade questionável, a prefeitura do município de Itajaí (SC), em parceria com a Universidade do Vale do Itajaí (Univali), o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Ministério da Saúde, decidiu tratar dependentes químicos com preparados homeopáticos.
Afirmando ter respaldo em trabalho publicado pelo pesquisador Ubiratan Cardinalli Adler, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) no periódico Journal of Integrative Medicine, a prefeitura pretende iniciar um programa-piloto para tratamento de dependentes químicos de crack e cocaína, utilizando diluições homeopáticas de folhas de coca e ópio.
Diluição extrema
A homeopatia é uma prática inventada pelo médico alemão Samuel Hahnemann no século XVIII, quando o conhecimento sobre medicina, anatomia e agentes infecciosos era praticamente inexistente. A medicina na época era baseada em sangrias, purgativos e sanguessugas, e a homeopatia parecia uma opção mais suave que as técnicas vigentes.
Dois princípios regem esta prática: o princípio do “similar cura similar”, e o princípio das “diluições seriadas”. Isso quer dizer que para fabricar um remédio homeopático típico, deve-se identificar primeiro o sintoma da doença. Digamos que o paciente está sofrendo de insônia. Precisamos achar um princípio ativo que cause os mesmos sintomas. O que causa insônia? Café!
O próximo passo é diluir o princípio ativo, pois a homeopatia pressupõe que quanto mais diluído o princípio ativo, mais potente o medicamento se torna. Uma diluição homeopática típica é de “30C”: uma sequência de 30 diluições consecutivas, à taxa de uma parte de princípio ativo para 100 partes de solvente. Isso significa que uma gota do material original é dissolvida em 1 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 000 gotas de diluente (água, por exemplo). Isso equivale a menos de uma molécula da substância original em meio a todas as moléculas do Universo. Ou seja, é apenas água.
Os produtos a serem utilizados em Itajaí terão diluições “Q2” e “Q3”. Elas representam, em linhas gerais, lançar uma colher de chá do princípio ativo (aproximadamente 5 ml) num volume de água equivalente a cinco piscinas olímpicas (Q2), ou uma colher de chá do princípio em todo o volume de água dos oceanos do planeta Terra (Q5). É com bolinhas de açúcar pulverizadas com esses preparados que a prefeitura espera recuperar pacientes viciados em drogas pesadas. O projeto aguarda liberação de financiamento pela Organização Pan Americana de Saúde (OPAS), via Ministério da Saúde.
Consenso
A dependência em diluições extremas já torna a prática extremamente implausível: a despeito de vagas menções a uma suposta “memória da água” (nunca comprovada), o fato é que, se atestada, a eficácia da homeopatia exigiria uma reformulação de todas as leis conhecidas da Química e Física.
Apesar disso, por causa de sua popularidade, a prática já foi extensivamente testada pela ciência. E falhou.
A revisão do NHMRC australiano foi apenas uma, dentre várias. Revisões sistemáticas e meta-análises - levantamentos da literatura cientifica que reúnem a melhor evidencia sobre um determinado assunto - mostraram que a homeopatia não apresenta efeito além do placebo, que pode ser explicado por uma mistura de expectativa e condicionamento do paciente.
A homeopatia também tende a parecer bem-sucedida quanto aplicada a condições autolimitantes, como infecções virais leves, que vão embora por conta própria, e problemas infantis que tendem a desaparecer com o desenvolvimento e maturação natural do corpo.
O consenso da comunidade científica mundial é o de que a aparente “eficácia” dos tratamentos homeopáticos é uma ilusão. E o consenso de política pública, que começa a se formar nas nações que mantêm sistemas de saúde bancados pelo contribuinte, é o de que a prática desperdiça recursos.
Complementar?
A despeito do consenso científico, o Conselho Federal de Medicina (CFM) reconhece a pratica como uma modalidade médica. Juntamente com outras formas terapêuticas sem comprovação científica, a homeopatia é oferecida no SUS como uma Prática Integrativa e Complementar (PIC).
Seus defensores argumentam que mesmo sem comprovação, a prática promove bem-estar e pode reduzir o uso de medicamentos que trazem efeitos colaterais. Além disso, muitos dos defensores do uso da homeopatia argumentam que se trata de prática complementar, e que não deve substituir o tratamento convencional. Sendo assim, que mal faz?
O projeto piloto sugerido pela prefeitura de Itajaí mostra como esse argumento da “complementaridade inofensiva” pode degenerar. O programa não propõe complementar o tratamento psiquiátrico convencional, mas sim tratar os pacientes apenas com homeopatia, ou seja, com pílulas de açúcar.
Nobel!
O estudo que serve de base para a implementação do projeto veio a público em uma revista de baixíssima qualidade, que publica apenas estudos de medicina alternativa. Como observa o médico e pesquisador Edzard Ernst, que durante anos comandou uma unidade de estudos em medicina alternativa na Universidade de Exeter, no Reino Unido, em sua análise do artigo do grupo da UFSCAR, “quem conseguir desenvolver um tratamento eficaz para recuperação de dependentes químicos merece um Nobel, e quem conseguir provar que a diluições homeopáticas funcionam além de um placebo, também”.
Um trabalho que realmente conseguisse validar um tratamento para dependência certamente seria publicado nas melhores revistas, e não em um periódico de terceira categoria, lido apenas por simpatizantes da medicina alternativa. Mas o experimento de Adler e colaboradores está repleto de falhas metodológicas.
Problemas
Apesar de ser chamado, no título, de estudo duplo-cego, o artigo que descreve o estudo afirma que a enfermeira responsável por distribuir as pílulas para os grupos de estudo sabia quem estava recebendo o remédio homeopático, e quem recebia o placebo. A taxa de evasão do teste clinico foi altíssima, e os autores não corrigiram para este fator, provocando assim um viés no resultado.
O critério utilizado para medir a compulsão pela droga não mostrou diferença na intensidade da compulsão entre os grupos. O número episódios de compulsão foi menor no grupo tratado com homeopatia, mas este grupo também apresentava maior uso concomitante com álcool e maconha, o que pode ter contribuído para um menor índice de compulsão, já que o uso destes não foi avaliado no estudo.
Os autores também citam como referência o artigo publicado em 1988 na revista Nature pelo grupo francês de Jacque Beneviste, deixando de informar que uma investigação conduzida posteriormente pela própria revista determinou que os resultados eram inválidos, devido a falhas metodológicas.
Na época, Beneviste dizia ter encontrado a prova da “memória da água”, argumento utilizado pelos homeopatas para sustentar a teoria de que quanto mais diluído o composto, mas potente ele fica.
Os próprios autores do estudo sobre homeopatia e vício em drogas reconhecem que a alta taxa de evasão e o risco de viés na metodologia limitam a confiabilidade dos resultados.
Por quê?
Resta portanto a pergunta: Por que a prefeitura de Itajaí está desenvolvendo um programa para tratamento de uma condição extremamente séria, baseando-se em uma técnica que não tem comprovação científica e em um trabalho com sérias limitações, reconhecidas pelos próprios autores? E por que o Ministério da Saúde, a Univali, e o Conselho Federal de Medicina endossam a iniciativa?
É verdade que existe uma escassez de bons tratamentos para a dependência de crack e cocaína. Mas o investimento público na busca de opções para esses pacientes deveria se concentrar em caminhos minimamente plausíveis.
Além disso, ao referendar a ideia de que a homeopatia pode ser útil para tratar condições graves, órgãos oficiais abrem caminho para os riscos apontados no relatório australiano – de que pacientes passem a ver a homeopatia como alternativa válida às terapias cientificamente testadas.
Em maio de 2002, a bebê de 9 meses Gloria Mary Thomas faleceu na Austrália, acometida por uma doença dermatológica facilmente tratável, o eczema. O pai, médico homeopata fanático, recusou tratamento convencional e tratou a bebê apenas com remédios homeopáticos. A doença progrediu a tal ponto que, quando foi internada, logo antes de sua morte, Gloria apresentava erupções no corpo todo, e a córnea de um dos olhos estava destruída. Ela deve ter sofrido dores terríveis, e não teve acesso a analgésicos. O eczema havia sido diagnosticado quando ela tinha 3 meses. Essa bebê suportou 6 meses de sofrimento, e enfim, faleceu.
A atriz brasileira Dina Sfat foi diagnosticada com câncer de mama em 1986. Recusou cirurgia e tratamento, e optou por se tratar apenas com homeopatia, acupuntura e outros tipos de medicina alternativa. Faleceu em 1989, após metástases do câncer. Estes são apenas dois exemplos, entre vários.
É verdade que muitos médicos homeopatas teriam encaminhado esses pacientes para a medicina convencional, pois sabem das limitações da homeopatia. Mas, uma vez legitimada a prática e a estranha lógica por trás dela, como explicar ao paciente esperançoso que era tudo brincadeira, que ela, na verdade, ela não funciona?
Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência