
Há grandes descobertas que moldaram como compreendemos o mundo e nosso lugar nele. Uma dessas descobertas é o tempo profundo, a ideia de que a Terra é muito, muito antiga. Como outras descobertas, não é resultado de uma única mente, mas o fazendeiro e naturalista escocês James Hutton merece uma boa parcela de crédito. Hutton é considerado como um dos fundadores da geologia moderna, com suas ideias de que o planeta está sempre em construção: lava vem à superfície, rochas são formadas, rochas sofrem erosão... e o processo continua, sempre e para sempre. A chave para entender a Terra está nesses processos. E quando consideramos a lentidão com que tais processos moldam as paisagens que observamos, contemplamos o tempo profundo. Nas palavras de Hutton: “não encontramos vestígios do começo — nem perspectiva de um fim”.
Em junho de 1788, James Hutton, acompanhado pelo matemático John Playfair e pelo químico James Hall, foi a Siccar Point, na costa de Berwickshire, na Escócia. Esse local se tornaria um dos mais importantes da geologia, quase como ponto para peregrinação, pois revela claramente uma discordância angular — um pacote de rochas inferior mostra camadas verticais, enquanto o superior mostra camadas na horizontal. Hutton observou que os sedimentos verticais na base haviam se formado horizontalmente, mas foram depois rotacionados de alguma forma para a posição mais vertical, então erodidos e cobertos por novas camadas horizontais. E todo esse processo levaria tempo, muito tempo.
Em uma das biografias de Hutton, The Man Who Found Time (Jack Repcheck, 2009), há uma citação de Playfair sobre a visita a Siccar Point que resume muito bem o impacto da descoberta do tempo profundo:
“Sentimo-nos levados de volta ao tempo em que o xisto sobre o qual estávamos ainda jazia no fundo do mar, e quando o arenito diante de nós começava apenas a ser depositado sob a forma de areia ou lama, proveniente das águas de um oceano que o cobria. Uma época ainda mais remota se apresentava, quando até mesmo as rochas mais antigas, em vez de estarem dispostas verticalmente, repousavam em planos horizontais no fundo do mar, ainda não perturbadas pela força imensurável que rompeu o pavimento sólido do globo. Revoluções ainda mais distantes surgiam no horizonte dessa extraordinária perspectiva. A mente parecia ficar tonta ao contemplar tão profundamente o abismo do tempo”.
O geólogo inglês William Smith, outro pioneiro da geologia moderna, é reconhecido por três observações fundamentais que moldaram o desenvolvimento do nosso entendimento do planeta e da vida no tempo profundo. Primeiro, notou que os estratos de rocha se dispunham em camadas sobrepostas. Em segundo lugar, percebeu que essas camadas seguiam uma ordem de sucessão consistente, isto é, registravam a passagem do tempo. Por fim, identificou que cada estrato continha um conjunto característico de fósseis. Com base nessas descobertas, Smith foi capaz de prever com notável precisão quais camadas seriam encontradas em locais que nunca havia visitado ou em profundidades subterrâneas. As descobertas de Smith pavimentaram o caminho para a construção de colunas estratigráficas e uma coluna geológica, o empilhamento ordenado das rochas que compõem a crosta da Terra.
Geologia Diluviana
É sobre esse pano de fundo que a vida na Terra surgiu e evoluiu. Mas se isso dá apoio às ideias evolutivas ou a qualquer interpretação contrária às expectativas criacionistas, é de se esperar que haja negação. E há. Os criacionistas desenvolveram uma pseudociência para explicar a coluna geológica: a Geologia Diluviana (GD). As origens da moderna GD remontam a George McGready Price, um adventista do sétimo dia. Em seu livro “The Fundamentals of Geology and Bearings on the Doctrine of a Literal Creation” (1913), Price negou que a coluna geológica pudesse ser explicada de forma satisfatória pela geologia tradicional:
“De toda essa discussão decorre que as idades geológicas dos diferentes tipos de vida sucessivos não estão cientificamente estabelecidas e não têm valor científico. Assim, os fósseis do Cambriano, por exemplo, não podem ser provados como intrinsecamente mais antigos do que os do Carbonífero, do Cretáceo ou do Terciário; em resumo, nenhum tipo de fóssil pode ser comprovadamente mais antigo do que outro, ou do que a própria espécie humana”.
Price teve enorme influência sobre John Whitcomb e Henry Morris, que em 1961 publicaram o livro “The Genesis Flood”. No livro, Morris expressou a negação da geologia tradicional:
“Os estratos portadores de fósseis foram aparentemente depositados em grande parte durante o Dilúvio, sendo as aparentes sequências atribuídas não à evolução, mas sim à seletividade hidrodinâmica, aos habitats ecológicos e à mobilidade e resistência diferenciais das diversas criaturas”.
Assim, eles negaram a existência de uma coluna geológica global formada ao longo de bilhões de anos. Ironicamente, a GD evoluiu ao longo dos anos. Celebrando os 50 anos de “The Genesis Flood”, o criacionista Paul Garner descreveu (p. 5) a situação atual:
“Uma das áreas de discordância entre George McGready Price e Harold Clark dizia respeito à sequência das rochas e fósseis (frequentemente resumida nos livros didáticos como a “coluna geológica”). Price argumentava que essa sequência era uma construção artificial baseada na suposição da evolução. Já Clark estava convencido de que havia, de fato, uma sequência consistente e buscou explicar a ordem dos fósseis como resultado da sequência em que diferentes ecossistemas teriam sido inundados e soterrados durante o Dilúvio. Whitcomb e Morris questionaram se a ordem dos fósseis era realmente tão consistente quanto a maioria dos geólogos supunha, mas recorreram às zonas ecológicas do mundo pré-diluviano como uma possível explicação para qualquer padrão que existisse. Hoje ainda há debate dentro do criacionismo sobre essas questões, embora seja provavelmente justo dizer que a maioria dos geólogos criacionistas com experiência de campo tenha se alinhado com a visão de Clark”. [ênfase minha]
Autorrefutação
E isso me traz, finalmente, a uma leitura que gostaria de recomendar. O artigo "The defeat of Flood geology by Flood geology" de Phil Senter (2011) apresenta uma crítica contundente ao criacionismo da Terra jovem, mostrando que a própria pesquisa feita por geólogos criacionistas com experiência de campo refuta a ideia de que o Dilúvio bíblico deixou um registro geológico global e explica a coluna geológica, ou parte dela. Senter analisa décadas de estudos realizados por criacionistas, destacando que muitos deles, ao tentarem encontrar evidências do Dilúvio, acabaram demonstrando precisamente o oposto. O ponto central do artigo é que os próprios geólogos criacionistas da terra jovem “eliminaram toda a coluna geológica como contendo qualquer registro de um período de submersão mundial (PWS, period of worldwide submergence)”, o que, ironicamente, invalida a hipótese central do criacionismo diluviano.
Senter detalha dezenas de evidências sedimentológicas aceitas por criacionistas - rachaduras de dessecação, ninhos de dinossauros, solos fósseis (paleo-solos), pegadas, carvão fóssil e depósitos eólicos, que demonstram deposição subaérea (sob o ar, mas não debaixo d’água) e longos intervalos de tempo - que são incompatíveis com um evento cataclísmico de um único ano, como descrito no Gênesis. Com base nos estudos dos próprios criacionistas, fica demonstrado que nenhuma porção da coluna geológica do Éon Fanerozoico (de 541 milhões de anos até hoje) pode ser explicada por um dilúvio global, pois há uma sequência consistente de registros amplos que demonstram a impossibilidade de submersão por um ano.
O artigo pode ser um pouco técnico, mas é recheado de exemplos bem ilustrativos, e é por isso que recomendo a leitura. Vale a pena trazer aqui pelo menos uma breve discussão de um tipo de evidência. Algumas das evidências mais difíceis de conciliar com a GD vêm do registro fóssil de pegadas de animais terrestres. A lógica é simples: para que um animal deixe pegadas preservadas no solo, é necessário que ele esteja vivo, em terra firme e respirando ar, algo impossível se toda a Terra estivesse coberta por água. Pegadas fósseis de répteis e mamíferos aparecem abundantemente em rochas que datam do Mesozoico (“Era dos Dinossauros”) e Cenozoico (“Era dos Mamíferos”), mas estão ausentes em camadas anteriores ao período Permiano (último período do Paleozoico, anterior ao Mesozoico). Isso indica que esses animais estavam vivos e andando sobre o solo durante a deposição dessas camadas, o que contradiz a ideia de uma submersão global contínua nesse intervalo de tempo.
Além disso, há locais onde centenas de camadas consecutivas contêm pegadas bem preservadas — como em certas regiões da China e da Coreia. Isso sugere que houve sucessivos episódios de exposição do solo, com tempo suficiente para os animais deixarem rastros, antes de novas camadas de sedimentos cobrirem as marcas. Essa repetição por centenas de vezes, ao longo de metros e metros de rocha, não é compatível com um único evento catastrófico e breve como o Dilúvio de Noé. A ampla distribuição geográfica e estratigráfica (ao longo da coluna geológica) dessas pegadas reforça a conclusão de que as camadas da maior parte do Mesozoico e Cenozoico não podem ter sido depositadas durante um período de submersão global, mas sim ao longo de milhões de anos, com alternância entre ambientes terrestres e aquáticos. E o mesmo tipo de argumento elimina outros trechos candidatos da coluna.
Os criacionistas que investigam o registro geológico têm duas opções: ou aceitam que o Dilúvio global ocorreu antes do Fanerozoico e não deixou nenhum traço geológico (uma hipótese irrefutável, portanto não científica), ou admitem que se trata de um evento mítico (o que eles certamente não gostariam de fazer). Senter descreve a sinuca de bico na qual se encontra a GD e o Criacionismo da Terra Jovem:
“A Geologia Diluviana surgiu com o objetivo de encontrar apoio para a doutrina do Criacionismo de Terra Jovem, mas ironicamente acabou produzindo um impressionante conjunto de evidências contra essa mesma doutrina. A derrota da Geologia do Dilúvio por suas próprias mãos é um excelente exemplo de como a prática da geologia sólida conduz a conclusões geológicas corretas”.
Se você já assistiu “Behind the Curve” (2018), documentário sobre o movimento terraplanista, deve ter lembrado do experimento que, quando conduzido por eles de forma controlada, levou à conclusão oposta ao que esperavam, demonstrando que a Terra não é plana. As semelhanças são mera coincidência? Eu acho que não!
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade