
Tenho um amigo adepto do Criacionismo da Terra Jovem (CTJ), o que vez ou outra me rende conversas no mínimo interessantes. Sempre que cometemos o equívoco de conversar sobre evolução, Cristianismo e Criacionismo, um nome quase sempre emerge: William Lane Craig — filósofo, teólogo e apologista cristão conhecido por sua defesa do teísmo e do cristianismo. Craig se destaca por debates sobre a existência de Deus (há muitos dele no YouTube), a ressurreição de Jesus e a relação entre ciência e religião. Ele é um dos principais proponentes do argumento cosmológico “kalam” e autor de diversas obras sobre filosofia e teologia cristã.
O que o amigo criacionista esquece, ou não sabe, é que Craig não mantém o CTJ sob grande estima. Veja a seguir uma declaração bastante forte de Craig sobre o CTJ no podcast Reasonable Faith. Respondendo a ouvinte chateado por Craig ter dito em outra ocasião que o CTJ é uma vergonha, o apologista enfatiza (a citação é longa, mas vale a pena):
“E minha afirmação é que, ao investigar os méritos do Criacionismo da Terra Jovem, ele se mostra intelectualmente indefensável. A ideia de que o mundo – o Universo – foi criado há apenas alguns milhares de anos em seis dias consecutivos de 24 horas é indefensável. A ideia de que houve um dilúvio global dentro da história humana que exterminou toda a vida terrestre na Terra (tanto animal quanto humana) é indefensável. A ideia de que todas as línguas humanas se originaram de um zigurate na Babilônia há alguns milhares de anos é intelectualmente indefensável. Portanto, o Criacionismo da Terra Jovem é um grande embaraço para a fé cristã hoje. É semelhante a defender uma Terra plana e dizer que, como cristãos, estamos comprometidos com isso. Então, repito o que disse antes: esse movimento está causando um enorme dano à fé cristã, ao retratar essa visão intelectualmente indefensável como essencial para a verdade do cristianismo e do evangelho, e impede que as pessoas cheguem a Cristo ao erguer obstáculos desnecessários em seu caminho. Meu problema não é com os defensores desse movimento ou com sua liberdade de proclamar sua visão. Meu problema é com a própria visão e o terrível mal que ela está causando à causa de Cristo em nossa cultura contemporânea”.
Não quero dar a entender que Craig é um “evolucionista”, pois ele é um notório crítico do “Neo-Darwinismo” e simpatiza com o Design Inteligente. Apresento a citação apenas como exemplo de discordância profunda entre criacionistas. E o motivo da discordância sobre o CTJ é simples: ele é, como disse Craig, indefensável. Aliás, o CTJ (ou algumas versões dele) chega a ser autocontraditório em sua ânsia por soar científico. É isso que demonstra um artigo publicado na revista Evolution: Education and Outreach. Já o discuti em live no YouTube, quando de sua publicação, mas agora resolvi trazer aqui para a coluna, quase como estudo de caso sobre como algo pode ser tão autocontraditório.
Uma visão muito comum entre os criacionistas da Terra Jovem é que, uma vez criadas as espécies, populações então (micro)evoluíram, gerando a biodiversidade presente. O grau de evolução permitido pelo CTJ vai mudar de subgrupo para subgrupo de criacionistas, mas muitos acreditam que as populações originalmente criadas serviram de ancestrais comuns para a origem de (pelo menos) famílias taxonômicas inteiras. Então, ao menos tempo em que nega a evolução, esse modelo abraça algum aspecto dela. No centro desta contradição criacionista, como apontam os autores do estudo, está a distinção entre microevolução e macroevolução:
“Por meio do uso direcionado desses termos, eles conseguem insistir para seus seguidores que rejeitam a teoria evolutiva ampla como ‘macroevolução’, enquanto apropriam silenciosamente os mecanismos convencionais da evolução biológica como ‘microevolução’ sempre que isso lhes convém”.
Morton (1993), epitomiza o argumento promovido pelos criacionistas através da ênfase nessa dicotomia: “Macroevolução não é observável, replicável ou refutável e, portanto, não se qualifica como um fato ou teoria científica”, escreveu. Na mente criacionista, microevolução é ciência operacional/experimental, enquanto macroevolução é ciência histórica, logo menos robusta e mais especulativa. Já discutimos a falha nesse argumento aqui (não é só uma falha criacionista, sabemos).
Hiperespeciação
Quando inspecionamos as ideias criacionistas sobre microevolução, contudo, encontramos profundas contradições com o discurso antimacroevolução, já que em seus modelos aparecem especiação e descendência com modificação, em alguns casos chegando a declarações bem extremas:
“É bastante possível que todos os morcegos pertençam ao mesmo tipo, caso em que apenas quatorze teriam embarcado na Arca. Mas, na ausência de dados sólidos que mostrem que as várias famílias de morcegos podem cruzar, nós os dividimos em 22 tipos, representando famílias vivas e extintas. Como a Arca precisaria abrigar 14 de cada tipo de morcego, no pior cenário possível, haveria 308 morcegos a bordo”.
Atualmente, conhecemos mais de 14 centenas de espécies de morcego. Segundo a instituição criacionista “Answers in Genesis”, o dilúvio de Noé teria ocorrido há pouco menos de 4.500 anos. Sendo bem generoso (considerando 4.500 anos), e já levando em conta os 14 tipos (espécies) ancestrais, isso implica uma taxa média de formação de 3 novas espécies de morcego a cada 10 anos. Desde o meu nascimento, portanto, podem ter surgido nove espécies de morcego! Agora essa será minha maneira oficial de contar os anos. Enfim... Esse é um cenário de hiperespeciação, uma falha central no que os autores apelidam de “pós-criacionismo”.
A aceitação de uma especiação ultrarrápida pelos pós-criacionistas representa um paradoxo fundamental: enquanto rejeitam a evolução darwiniana no tempo geológico (afinal, “a Terra é jovem”), aceitam um processo de diversificação tão rápido que, se verdadeiro, seria o maior exemplo de macroevolução já registrado. Essa mudança de postura contradiz décadas de discursos criacionistas que negavam a possibilidade de grandes mudanças morfológicas ao longo do tempo.
Ao analisarmos essa inconsistência, percebemos que os pós-criacionistas, em um esforço para explicar a diversidade biológica dentro de sua moldura temporal restrita de apenas alguns milhares de anos, adotaram um modelo que se aproxima perigosamente da própria biologia evolutiva que tentam refutar. A ironia reside no fato de que a principal objeção criacionista à evolução – a falta de observação direta de macroevolução – se aplica com ainda maior intensidade à sua própria hipótese de especiação hiperacelerada.
Ancestrais sem ancestrais
O Ark Encounter, um parque temático criado pela já mencionada organização criacionista Answers in Genesis, representa uma das manifestações mais visíveis do pós-criacionismo. Com a proposta de recriar a Arca de Noé em escala real, essa atração busca ensinar uma versão alternativa da história natural baseada em uma interpretação literal do Gênesis. No entanto, os conteúdos expostos no Ark Encounter revelam a crescente adoção de conceitos evolutivos adaptados ao modelo criacionista.
No Ark Encounter, a diversidade biológica observada hoje é explicada como resultado da rápida diversificação de um pequeno número de "tipos criados" que sobreviveram ao Dilúvio de Noé. Para acomodar a grande quantidade de espécies em um espaço limitado, os pós-criacionistas colocam muitas linhagens evolutivas reconhecidas pela biologia moderna dentro de um único "baramin" (outra palavra para “tipo criado”). Por exemplo, todos os canídeos (lobos, raposas, chacais e cães domésticos) são considerados descendentes de um único par ancestral que teria saído da arca há menos de 4.500 anos.
Embora rejeitem a ideia de que novas informações genéticas possam surgir por meio da evolução, os criacionistas do Ark Encounter aceitam que processos seletivos possam gerar diversidade a partir de um conjunto pré-determinado de variações genéticas criadas por Deus. Dessa forma, tentam justificar a enorme diversidade observada hoje sem recorrer à Teoria da Evolução convencional, ainda que utilizem ferramentas e métodos derivados da biologia evolutiva.
Uma hipocrisia final, para encerrar esse artigo. Os autores são cirúrgicos nesse ponto:
“A combinação das características de todos os felídeos atuais e extintos para formar um ‘super-gato’, de todos os ursídeos extantes e extintos para formar um ‘super-urso’ e assim por diante, produz uma morfologia especulativa para cada par na Arca. Em muitos casos, eles até recorrem à paleontologia convencional para descrever os ancestrais propostos de cada família taxonômica.
“Ao adotar essa abordagem, os pós-criacionistas estão essencialmente redescobrindo a filogenia morfológica básica. Embora ainda afirmem que os diferentes baramins têm diferenças intrínsecas e essenciais que os tornam totalmente únicos e distintos entre si, acabam selecionando progenitores representativos para cada grupo, que exibem um alto grau de similaridade morfológica... Há, geralmente, mais variação morfológica e genética dentro de cada um dos ‘tipos’ individuais identificados pela Answers in Genesis do que dentro do grupo coletivo formado por seus ancestrais”.
O que impede, então, que os ancestrais tenham ancestrais? Nada, a não ser as mil desculpas que os CTJ inventam para negar o que hoje é óbvio. É curioso, contudo, essa ânsia em adaptar a biologia evolutiva ao criacionismo. Parece até uma vontade reprimida de ser “evolucionista”. Mas isso é só minha opinião.
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade