
Sou psicólogo e sei que minha categoria não tem muita intimidade com filosofia da ciência. Mesmo assim, dou uma de teimoso, oferecendo disciplinas só sobre isso e, vez ou outra, comento algo sobre o tema em outras disciplinas, quando vem ao caso. Se tem meia dúzia de interessados, já é muito.
Psicólogos, em geral, são mais empáticos do que sistemáticos. E isso transparece em sua atitude oscilante em relação à ciência, além da tolerância limitada a discussões teóricas não relacionadas à clínica. É uma tribo que se importa mais com afetos do que com argumentos, mais com empatia do que com epistemologia. É comum ouvir, com a solenidade de quem está encerrando um debate, que “todas as teorias têm seu valor” — uma espécie de ecumenismo epistemológico que transforma o relativismo em bandeira e a crítica em grosseria. Se tudo é válido, não faz sentido discutir o que faz um conhecimento melhor que outro.
Foi num desses experimentos — enquanto eu fazia uma introdução sobre positivismo, critérios de demarcação, ciência e pseudociência — que um aluno levantou a mão e disse, com seriedade quase litúrgica, que em breve deveríamos ter disciplinas de telecinese no curso de Psicologia. Sim. Telecinese. No currículo oficial. Como se fosse estatística aplicada ou neuropsicologia.
Na hora, eu sorri com a sobrancelha. Meu autismo gritou e me perguntei se não tinha percebido a ironia da resposta. Por dentro, estava acontecendo um curto-circuito cognitivo. O espectro de Popper estava ali na sala, como um Mestre Jedi que se foi, balançando a cabeça, sorriso de lado, em tom de "eu avisei". Fiquei dividido entre o impulso de gargalhar pelo nonsense da situação, chorar por estar há uma hora falando e perceber que ninguém entendeu nada, e o desejo um tanto mórbido de realmente saber como seria o currículo da cadeira de Telecinese I. Pré-requisito: Cura Quântica.
Não se surpreenda, psicólogos tendem a acreditar em coisas estranhas e boa parte de nós não se sente confortável com a palavra “evidência”. Mas as exceções estão surgindo aos poucos. Temos agora uma Associação Brasileira de Psicologia Baseada em Evidências (ABPBE). Mesmo assim, percebo que ainda falta sofisticação filosófica. Por exemplo, já é hora de parar de tratar o falsificacionismo de Karl Popper como a última palavra em filosofia da ciência. Falsificacionismo não é a última palavra em diferença entre ciência e pseudociência.
Como disse Wittgenstein no Investigações Filosóficas, a psicologia é uma tremenda bagunça conceitual com um monte de métodos empíricos. A área é como um canteiro de obras com cada pedreiro executando um projeto, sem planta, sem plano, sem nada. Precisamos de métodos melhores, mas também de refinamento conceitual.
Esse texto é um passeio panorâmico pela filosofia da ciência para mostrar que podemos e devemos ir além de Popper e ampliar o debate dentro da Psicologia.
O otimismo dos positivistas
A filosofia da ciência nasce da reflexão sobre o que torna a ciência tão especial a ponto de ter revolucionado o conhecimento da natureza e a tecnologia. A Revolução Industrial trouxe locomotivas, telégrafos, anestesia, fotografia e eletricidade. Darwin explicava a diversidade da vida; Maxwell unificava forças da natureza; a tabela periódica organizava os elementos. Diante de tanto progresso, parecia claro: a ciência era o motor do futuro. Isso dotou o século 19 de um entusiasmo científico quase religioso.
É nesse clima que nasce o Positivismo. Auguste Comte, seu principal representante, acreditava que a ciência poderia substituir a religião como guia moral e espiritual da Humanidade. Ele via a História dividida, primeiro, na Era da Religião, depois na Era da Metafísica e, agora, na Era da Ciência. Vamos usar a Razão para criar o Paraíso na Terra. Ironicamente, o ateu dos ateus propôs uma Religião da Humanidade com rituais seculares, templos dedicados à ciência e até um calendário com santos científicos. Entre suas esquisitices, incluía o luto cerimonial por sua musa falecida, a escritora francesa Clotilde de Vaux (1815-1846), tratada como uma Maria laica.
Por trás dessa cosmovisão esquisita existia uma proposta conceitual de ciência. Para os positivistas, não existe conhecimento puramente racional porque todo conhecimento provém da experiência sensorial, que poderia ser refinada por experimentos científicos. O Círculo de Viena chegou a propor uma faxina na língua para eliminar conceitos que não se referissem a fenômenos empíricos. Palavras como “alma” deveriam ser eliminadas por não se referirem a nada empírico nem mensurável. Com isso, vem uma formulação da noção de verdade. A verdade, para eles, era como uma fotografia cada vez mais nítida do mundo, aprimorada a cada experimento bem-sucedido.
Esse modelo investigativo parecia seguir os passos das aventuras de Sherlock Holmes: peça por peça, fato por fato, até que os mistérios naturais fossem revelados em sua plenitude. Mas esse ideal de verdade cumulativa logo enfrentaria críticas duras de quem via, na ciência, menos um álbum de retratos e mais um campo de testes.
Karl Popper emergiria como o crítico mais influente da fé positivista no acúmulo de verdades.
Popper contra o mundo
Para Popper, o problema não era a ciência em si, mas a forma como ela era compreendida. Ele rejeitou o cerne da compreensão positivista sobre a ciência. O conhecimento científico seria diferenciado porque formula hipóteses ousadas, hipóteses que podem ser testadas contra a realidade – como em 1919, em que a ousada hipótese de Albert Einstein, de que a gravidade curva a trajetória da luz, foi testada durante um eclipse. Essa testagem contínua leva a verdade na ciência a ser sempre provisória, sempre passível de autocorreção. Na ciência nunca se está certo, apenas menos errado. Popper chamou a essa filosofia de Falsificacionismo.
A virada popperiana foi decisiva. Mas não foi o ponto final dessa conversa.
As guerras epistêmicas
Se Popper deu um golpe certeiro no otimismo simplista do positivismo, mostrando que a ciência não avança pela acumulação pacífica de verdades, seus sucessores trataram de mostrar que nem mesmo a refutação funciona como deveria. É aqui que a filosofia da ciência deixa de parecer uma ode à razão e começa a se parecer mais com um romance russo: cheio de tensões internas, reviravoltas históricas e personagens que não se suportam.
Thomas Kuhn, em A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), foi o primeiro grande dissidente. Ele notou que cientistas raramente abandonam suas teorias só porque apareceram dados contraditórios. Pelo contrário: eles defendem seus paradigmas com unhas, dentes e gráficos.
Para Kuhn, a ciência progride por longos períodos de “ciência normal”, em que os pesquisadores resolvem quebra-cabeças dentro de um paradigma vigente — até que surgem crises, anomalias demais, e o paradigma entra em colapso. A substituição não se dá por refutação racional, mas por algo mais parecido com uma conversão coletiva. O recado é que a ciência não dá grandes passos progressivos pela adoção de teorias melhores, como diria Popper. Não há critério fixo: há influências históricas, sociológicas, até psicológicas. Esse é um golpe e tanto na ideia de um progresso científico contínuo e objetivo.
Mas então chega Imre Lakatos, que tenta salvar o projeto racionalista sem jogar Popper fora. Sua proposta é que em vez de julgar teorias isoladas, devemos avaliar programas de pesquisa, conjuntos teóricos com um “núcleo duro” protegido por hipóteses auxiliares. Um programa é progressivo se gera novas descobertas e soluções; é degenerativo quando só tenta tapar buracos. Assim, Lakatos constrói uma ponte entre o historicismo de Kuhn e o rigor de Popper. Uma ciência sem método fixo, mas ainda com critérios racionais. Um meio-termo sofisticado, para aqueles que não suportam nem o dogmatismo nem o caos.
Ambos nos ensinam que a ciência é menos um método e mais uma prática viva, institucional, histórica — e, às vezes, teimosa. O que está em jogo não é apenas a verdade, mas o modo como comunidades científicas se organizam, persistem e mudam. A pergunta já não é apenas o que é ciência, mas como ela funciona.
Se Popper nos deu uma régua, Kuhn mostrou que ela entorta com o tempo. E Lakatos tentou, com certo estilo, medir mesmo assim.
Vale tudo
Os filósofos da ciência estavam buscando uma lista de características para explicar por que a ciência é uma forma confiável de acesso à realidade. Mas essa busca se parecia cada vez mais difícil, como arqueólogos buscando Atlântida.
E se não existir esse tal método científico universal, nem mesmo um conjunto de princípios que diferencie claramente, sempre, ciência de pseudociência?
Em Contra o Método (1975), Paul Feyerabend argumenta que a história real da ciência não se caracteriza pela existência de um único caminho metodológico. Cientistas de diferentes épocas adotaram estratégias diversas, improvisaram, cometeram erros produtivos e, às vezes, burlaram as regras. Por isso, seu lema provocador era "anything goes” (vale tudo).
Não porque ele achasse que tudo é igualmente válido, mas porque impor um único modelo de cientificidade seria sufocar a criatividade e a inovação.
Feyerabend também denunciava o que via como autoritarismo epistêmico: a ideia de que apenas cientistas têm acesso legítimo à verdade. Para ele, essa postura afastava a ciência de um debate democrático e pluralista, tornando-a uma espécie de igreja secular. Sua crítica não era ao conhecimento científico em si, mas ao modo como era institucionalizado, dogmatizado, elevado à condição de única forma legítima de saber. Para ele, outras comunidades que não as dos cientistas podem ter formas interessantes de investigação da realidade.
A cruzadinha da verdade
Mesmo depois de Feyerabend proclamar a liberdade metodológica, a filosofia da ciência não se dissolveu em anarquia. Pelo contrário: novos pensadores buscaram alternativas que combinassem o rigor com a complexidade do mundo real. Entre eles, Susan Haack e Sven Ove Hansson se destacam por oferecer visões atualizadas e úteis.
Susan Haack compara o conhecimento científico a uma cruzadinha: cada palavra (crença) precisa se encaixar nas demais e nas pistas (evidências) dadas. A confiabilidade vem dessa estrutura interligada, que é robusta sem ser inflexível.
Para Haack, o conhecimento científico não é um salto brusco em relação ao senso comum, mas uma continuidade refinada dele. Ambos partem da observação do mundo e da tentativa de formar crenças coerentes com os fatos, mas a ciência se diferencia por aplicar padrões mais rigorosos de evidência, revisão crítica e argumentação pública. Assim, a ciência emerge como uma forma aprimorada, mas não desconectada, da nossa maneira cotidiana de investigar e compreender a realidade.
Em Defending Science – Within Reason (2003), Haack propõe uma visão realista e pluralista. Ela critica tanto o cientificismo exagerado quanto o relativismo radical, defendendo a ciência como um processo humano falível, mas valioso. O que torna a ciência confiável, para Haack, não é seguir um método rígido, mas seu compromisso com a evidência, a revisão crítica e o debate público. Em vez de ser tratada como algo sagrado ou infalível, a ciência deve ser valorizada por seu esforço contínuo em compreender o mundo de forma racional e aberta.
Bons modos
Sven Ove Hansson, por sua vez, atualiza o problema da demarcação ao tratá-lo como uma questão prática, institucional e ética. Em vez de focar em critérios lógicos abstratos, Hansson examina como certas práticas científicas se sustentam ou fracassam à luz de virtudes epistêmicas: compromisso com a revisão crítica, disposição ao teste empírico, abertura ao escrutínio público. Para ele, pseudociência é o nome dado a práticas que recusam esses compromissos — e não, meramente, a ideias malucas.
Essa recusa inclui recorrer a argumentos de autoridade, evitar testes reproduzíveis, ignorar críticas relevantes, fazer malabarismos explicativos e manter uma estrutura que não permite refutação ou aprimoramento. E essa lógica abarca não só ciências naturais, mas também história e filosofia. A sustentação de um ethos investigativo comprometido com a verdade não deve ser privilégio das ciências mais duras, mas de toda a busca pelo conhecimento. A pseudociência é, nesse sentido, uma prática epistemicamente irresponsável.
Espírito crítico
Se há algo que a jornada por essas correntes filosóficas nos ensina é que a ciência não é um totem, mas um processo. Popper não foi um ponto final — foi só o começo de uma conversa que se estende pelo tempo, feita de rupturas, revisões e debates acalorados sobre como pensar melhor o mundo. Acumulamos conhecimento, mas a verdade não se restringe a empilhar tijolos. O método científico não é um martelo mágico capaz de transformar qualquer suposição em conhecimento confiável.
A ciência é uma construção coletiva, histórica, imperfeita. Seu mérito não está em ter certezas absolutas, mas em cultivar dúvidas produtivas. Está em produzir ideias menos erradas. Tente mais, teste mais, erre melhor. E aqui entra o papel fundamental dos psicólogos: não basta aplicar testes ou aderir a protocolos. É preciso cultivar uma atitude crítica, entender os fundamentos do que se faz, participar do aperfeiçoamento contínuo da disciplina. Isso diminui a chance de produzir explicações mirabolantes que se protegem com imprecisão e ambiguidade.
Nesse contexto, vale destacar o caso da psicanálise. Muitos defensores da Psicologia Baseada em Evidências recorrem ao falsificacionismo popperiano para criticá-la, e com razão. A psicanálise é uma teoria ampla, flexível — e talvez aí resida seu maior problema. Quanto mais uma teoria é capaz de explicar tudo, menos útil ela se torna para fins científicos. Sua força explicativa vira, paradoxalmente, sua fraqueza epistêmica. A dificuldade em estabelecer hipóteses testáveis e a tendência de contornar dados dissonantes fazem com que a psicanálise, apesar de seu valor cultural e histórico, tenha baixa confiabilidade empírica.
Mas a crítica à psicanálise, ou a qualquer outra abordagem, não deveria se apoiar em bandeiras ideológicas ou disputas de território acadêmico. O que está em jogo é o compromisso com práticas epistêmicas saudáveis — e essas práticas não são arbitrárias. Elas seguem padrões que usamos em qualquer investigação racional: da dona de casa que procura suas chaves até o cozinheiro que ajusta uma receita. Tudo isso segue uma lógica encaixada no tipo de investigação que se está fazendo. Ninguém vai usar um pêndulo para procurar as chaves ou cartas de tarô para saber que tempero usar. A boa ciência não é aquela que pertence a um clube exclusivo, mas a que adere com seriedade a esse espírito investigativo.
Ir além de Popper é, no fundo, reconhecer que fazer ciência é mais do que seguir regras: é pensar com rigor, agir com honestidade intelectual e nunca perder de vista que o método não substitui o juízo. Menos idolatria do método, mais responsabilidade epistêmica.
Felipe Novaes é psicólogo e professor da PUC-Rio. Divulga o melhor da psicologia científica no Garagem Psi. Atua no cruzamento entre ciência, filosofia e cultura, onde dados e mitos se estranham com frequência. Interessa-se por psicologia evolucionista, história das ideias e pela tensão entre razão e pertencimento em tempos de algoritmo