A bibliografia brasileira sobre pensamento científico e racional, que busca explicar ao público que a ciência não é apenas “mais uma narrativa”, ou um “modo de saber” igual entre pares, mas um olhar disciplinado, um conjunto de métodos e precauções que oferece uma via privilegiada de acesso ao melhor conhecimento possível sobre o mundo empírico, é lamentavelmente pobre – não em qualidade, mas em número de obras.
Há livros do início do século que hoje são quase raros, como “Ciências versus Pseudociências”, de Paulo Lee, “Pensamento Crítico e Argumentação Lógica”, de Sergio Navega, ou “A Cruzada contra as Ciências”, de Orlando Tambosi. Nos últimos dez anos, tivemos “Ciência e Pseudociência”, de Ronaldo Pilati, “A Ilusão da Lua”, de Marcelo Knobel, e os ensaios reunidos no volume “Armadilhas Camufladas de Ciência”, organizado por Marcelo G. Schappo, além meus recentes esforços em parceria com Natalia Pasternak.
Esta lista não é exaustiva. Certamente há obras que desconheço, e aqui encontramos outra parte do problema: a defesa da ciência feita por brasileiros, em formato de livro, vê-se largamente restrita a trabalhos que circulam pouco, lançados por pequenas editoras ou custeadas pelos próprios autores. Em comparação, a Amazon brasileira põe ao alcance de qualquer um que tenha teclado e conexão com a internet mais de 30 títulos assinados pelo popular astrólogo João Bidu, e mais de 40 do criacionista Marcos Eberlin. E nem vamos falar de Olavo de Carvalho, talvez o maior e mais prolífico de todos os obscurantistas anticientíficos cevados na Terra de Santa Cruz.
É um alento, portanto, quando uma nova obra vem se somar às fileiras do lado de cá, caso de “Nossas Falhas de Raciocínio: ferramentas para pensar melhor”, lançamento recente do professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo André C.R. Martins, pela Editora Contexto (confessando desde já o possível conflito de interesse: a Contexto publicou meu primeiro livro em coautoria com Natalia, o “jabutizado” “Ciência no Cotidiano”).
Martins apresenta seu livro como um trabalho de “pré-metodologia”, uma explicação de por que, se queremos conhecimento, precisamos de métodos: na busca pela verdade (ou por uma aproximação razoável dela), palpites, intuições e tradições podem ser pontos de partida, jamais de chegada. Hipóteses e crenças precisam ser testadas, peneiradas e avaliadas antes de serem consideradas confiáveis, e não é qualquer teste, peneira ou avaliação que dá conta do recado.
O autor é físico de formação, mas com interesses interdisciplinares que vão da psicologia à filosofia da ciência. Como o título “Nossas Falhas de Raciocínio” sugere, é a psicologia que serve de base de lançamento para a exposição, mas a obra não se restringe a ela.
O livro logo envereda por questões como a importância da consistência lógica e da modelagem matemática (em nota de rodapé, o autor avisa ao leitor mais ansioso que, embora vá falar de matemática, “nenhuma conta será feita aqui”), além de ressaltar, a todo tempo, a importância fundamental do falibilismo – a postura mental de aceitar que toda hipótese provavelmente contém falhas, e que procurar ativamente por essas falhas é indissociável do fazer científico. Martins escreve:
“Querer saber não justifica escolher uma explicação favorita. Em vez de defender ideias, deveríamos sempre procurar porque nossas opiniões e melhores teorias podem estar erradas. Boas ideias vão sobreviver. Mas nunca saberíamos se elas são boas se não tentarmos mostrar que estão erradas primeiro”.
Um dos capítulos finais do livro envereda pelo tema da filosofia moral, e ali creio que o autor se descuida. O problema da objetividade/subjetividade dos princípios éticos é mais complicado do que a mera questão da inexistência de “fatos morais” tão reais quanto, digamos, a lei da gravidade. Irrealismo moral – a negação desses supostos “fatos” – não necessariamente implica que as escolhas éticas são mera questão de gosto e sentimento (há um bom artigo recente a respeito aqui), como Martins parece acreditar.
Mas este é apena um ponto periférico. Se o livro for usado (como o autor sugere em sua introdução) num contexto didático, o capítulo em questão pode servir como base para um debate animado e produtivo. “Nossas Falhas de Raciocínio”, no entanto, deveria transcender as estantes de livros-texto. Entender as razões pelas quais a ciência é como é, assimilar a disciplina que impõe ao pensamento e levar essa disciplina para a vida são necessidades incontornáveis no mundo contemporâneo, e o livro de André C.R. Martins pode ajudar muita gente a percorrer esse caminho.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)