Ao vivenciarmos uma experiência ficcional celebramos, tacitamente, um acordo no qual nos dispomos a mergulhar em uma nova realidade ali apresentada. Esse conceito é conhecido como “suspensão de descrença”, termo cunhado pelo poeta inglês Samuel Taylor Coleridge no início do século 19. Os bons textos de ficção conseguem manter essa suspensão sem interrupções, o que amplifica a experiência da leitura. Do mesmo modo, para o espectador aceitar uma peça ou um filme como minimamente verossímeis, o roteirista deve criar um universo capaz de sustentar o enredo e a ilusão, para que não pareça ilógico ou impossível demais.
Hoje, a Humanidade está vivendo um cenário distópico. Como se não bastassem as perspectivas sombrias do aquecimento global e as iminentes catástrofes ambientais, somos assolados por uma pandemia. No Brasil, soma-se a esse contexto uma das piores crises políticas já vividas, política essa que não somente levou à morte centenas de milhares de pessoas, mas que também está aprofundando crises sociais, ambientais, econômicas, educacionais, entre outras.
Cotidianamente, temos que encarar uma realidade que mais parece um péssimo filme de ficção científica. É como se vivêssemos em um universo paralelo, em uma anti-suspensão de descrença. Ou seria talvez uma suspensão de crença?
Do mesmo modo que ocorre com um roteiro ruim, mal pensado, nos questionamos diariamente se realmente vivenciamos fatos como os de pessoas morrendo asfixiadas por falta de oxigênio, ofertas de vacina desprezadas, ameaças constantes contra a democracia, ou se são fruto de uma ilusão coletiva. De onde surgiram personagens tão esdrúxulos, que não tínhamos ideia de que poderiam emergir de algum subterrâneo desconhecido?
Alguns personagens, de tão caricatos, nem sequer se dão ao trabalho de atuar, mentindo descaradamente e sem qualquer consequência. O negacionismo científico tornou-se um modo de governo, que concretiza políticas públicas a favor do desmatamento, do armamento, de pseudotratamentos sem eficácia, da adoção de medidas que favorecem a expansão da pandemia no país.
Além disso, há um desmonte do sistema de educação superior, do sistema de ciência, tecnologia e inovação, dos direitos humanos e de práticas de sustentabilidade, levando a um retrocesso imenso tanto nessas áreas quanto na economia e nas relações internacionais. As instituições e os indivíduos participam, atônitos, desse filme de terror, sem entenderem o enredo, sem terem ideia de como isso vai acabar. O tempo todo temos que nos beliscar para saber se não estamos apenas num pesadelo. Ou seja, é o oposto do que propõe o conceito de suspensão de descrença: vivemos uma realidade tão absurda que nos questionamos o tempo todo se isso de fato não é uma fantasia, uma loucura, uma brincadeira de mau gosto...
Precisamos compreender como chegamos até aqui, como uma história de desigualdades, racismo, corrupção, falsos messias e subserviência pode culminar na realidade de hoje. Se estamos sofrendo e queremos escapar desta pseudoficção o quanto antes, se quisermos ter esperança em voltar a ter uma realidade mais digna, precisamos nos engajar e ativamente exercer nossa cidadania para mudar o rumo dos acontecimentos. Urgentemente!
Marcelo Knobel é professor titular de Física da Unicamp, autor do livro "A Ilusão da Lua" (Ed. Contexto)