Por que relato pessoal não conta como evidência científica?

Questionador questionado
13 abr 2021
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monks

 

Redes sociais e aplicativos de mensagens transbordam com relatos emocionados de famílias que dizem estar tomando a inútil e perigosa ivermectina há tempos, sem sofrer nenhum único caso de contaminação por COVID-19; ou de pacientes que recuperaram-se depois de receber o (também inútil e perigoso) “kit covid”.

O fenômeno não é novo, e nem se restringe à pandemia: cada vez que publicamos, aqui na Revista Questão de Ciência, algum artigo apontando a incoerência ou a ausência de eficácia de alguma terapia ou ideia pseudocientífica, a caixa postal se enche de relatos pessoais emocionados que tentam demonstrar como estamos errados.

Alguma dessas mensagens nos faz mudar de ideia? Não. Mas não é porque somos grosseiros, arrogantes ou teimosos (talvez até sejamos, mas não por esse motivo). O modo cauteloso e, até, desconfiado, com que a ciência em particular – e a prática mais ampla do pensamento crítico, em geral – olha para relatos de caso, apresentados sem contexto ou controles, é fruto de um longo processo histórico de aprendizado.

 

O poder do mito

Já virou clichê dizer que o ser humano é um animal narrativo: é muito mais fácil assimilar um princípio quando ele aparece como “moral da história” do que quando somos apresentados a uma formulação abstrata – o drama de uma pessoa que sofre horrores depois de cometer um crime causa muito mais impacto do que a frase isolada “é importante respeitar as leis”. Nada diz “olhe antes de atravessar a rua” de modo mais eloquente do que um atropelamento.

Quando a narrativa é experiência vivida – quando a história é a sua história –, o poder de convicção torna-se ainda maior. É provável que nada traga uma sensação mais forte de “eu sei, eu aprendi” do que a experiência pessoal. É sentindo na pele a dor da primeira queimadura, do primeiro joelho esfolado, que a criança de fato aprende a navegar seu mundo.

O problema é que, úteis como são, narrativa e experiência nem sempre ensinam a lição correta; e mesmo quando ensinam, nós nem sempre a interpretamos de modo adequado. Lições tiradas de casos específicos podem não ser generalizáveis (atravessei a rua sem olhar para nenhum lado e nada de mau me aconteceu!).

De fato, há fábulas com morais que contradizem umas às outras: “o hábito faz o monge”, mas “não se deve julgar um livro pela capa”; “os opostos se atraem”, mas “diga-me com quem andas e dir-te-ei quem és”; “quem espera sempre alcança”, mas “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”; “prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”, mas “a sorte sorri para os audazes”.

 

Olhar seletivo

Essa pequena antologia paradoxal da sabedoria popular resume uma fragilidade fundamental da cognição humana, nossa profunda dificuldade em separar relações relevantes (entre eventos, comportamentos, causas, efeitos, atitudes, resultados) de coincidências.

O psicólogo Michael Shermer diz que a mente humana sofre de “padronicidade”, a tendência de “ligar os pontos”, enxergar padrões e relações onde, na verdade, só existe caos (as constelações no céu são um exemplo benigno desse fenômeno).

O filósofo Daniel Dennett, por sua vez, cita outra tendência, a “postura intencional”: o instinto de interpretar tudo o que acontece como resultado da “intenção” de alguma inteligência. Isso aparece na linguagem, por exemplo, em expressões como “o carro não quer ligar”, mas também se manifesta na construção de teorias da conspiração.

Há uma extensa lista de falácias formais e vieses cognitivos que descrevem exatamente onde o raciocínio sai dos trilhos quando tentamos interpretar histórias e vivências. Os dois principais são a afirmação do consequente e o viés de confirmação.

Afirmação do consequente é inferir uma causa única a partir de um efeito que pode ter várias causas. “Se chover, o asfalto ficará molhado” não implica que “se o asfalto está molhado, então choveu”. A água pode ter ido parar lá de muitas outras maneiras (adutora com defeito, caminhão-pipa, lavagem da rua). Do mesmo modo, “se esse remédio for bom, eu vou sarar” não permite concluir que “se sarei, é porque o remédio é bom”.

Viés de confirmação é a tendência inconsciente de prestar mais atenção em exemplos que confirmam aquilo em que queremos acreditar e ignorar ou achar desculpas para descontar os exemplos do contrário.

Esse viés é um grande motor de preconceitos (qualquer erro cometido por algum representante do grupo de que o preconceituoso não gosta logo salta aos olhos, enquanto erros de grupos pelo qual ele sente afinidade são desculpados), mas também é o melhor amigo das terapias ineficazes: pessoas que se salvam depois de tomar o remédio inútil foram salvas por ele, as que morrem, ou tiveram azar ou fizeram alguma coisa errado.

No nosso mundo hiper-mediatizado, outra fonte comum de distorção é a chamada heurística de disponibilidade: a tendência de achar que as coisas que vemos mais, com que temos mais contato ou que nos são apresentadas mais vezes são “normais”, “corretas” ou representam “a verdade dos fatos”. A estratégia de “repetir uma mentira mil vezes até que se torne verdade” explora essa nossa vulnerabilidade psicológica. “Ter destaque” e “estar certo” não são características mutuamente excludentes, mas também estão longe de ser sinônimos.

 

Casos e provas

É por reconhecer a influência dessas fontes de erro que muitos cientistas adotam o princípio de que “o plural de caso isolado não é informação válida”. Em outras palavras, não importa quantos exemplos de suposta “cura por X” você tem: sem a garantia de que não existe um número igual ou maior de contraexemplos, e sem o controle adequado dos demais fatores que poderiam ter influenciado o resultado, nem a maior pilha de “casos de sucesso” do mundo é suficiente para estabelecer um fato.

Talvez um dos maiores – e mais difíceis – esforços empreendidos ao longo do desenvolvimento da ciência, um esforço ainda presente e sempre necessário, seja o de libertar-se da ilusão de que boas histórias e experiências marcantes provam alguma coisa.

Isso não significa que experiências e histórias não sirvam para nada: muitas vezes, no dia a dia, são tudo o que temos e, na ausência de informações mais sólidas, se não nos guiarmos por elas, ficamos paralisados.

Mas significa que, para poderem ser tratadas como informação sólida, e não apenas como guias informais, as lições da narrativa e da experiência precisam passar por filtros – precisam ser testadas e aprovadas pelos métodos e processos da ciência. Mais ainda: significa que seguir usando impressões, vivências e narrativas como guias, quando há informação sólida disponível, é não só perigoso, como também irresponsável. O direito à própria opinião não implica direito à negligência.

 

Maus modos

Muitas pessoas se ofendem quando veem que suas experiências e vivências individuais não são “levadas a sério”. A questão aí são as várias camadas de significado que se pode atribuir à expressão “levar a sério”. Se a pessoa é ridicularizada ou tem suas conclusões e preocupações descartadas sem nenhum esforço de elucidação, o ressentimento é perfeitamente justificado. Falta de modos é falta de modos.

Agora, se “não ser levado a sério” significa não ter seu relato incluído no rol das evidências relevantes para o caso, então não há do que reclamar. Porque aprendemos que caso isolado não prova nada, e o plural de caso isolado não é informação confiável.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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