Sob pressão do presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde, encabeçado interinamente pelo general Eduardo Pazuello, decidiu jogar a ciência pela janela com a publicação, nesta quarta-feira, 20 de maio, de um protocolo que libera o uso de cloroquina (CQ) ou hidroxicloroquina (HCQ), em associação com o antibiótico azitromicina, para o tratamento da COVID-19.
O ministério, em documento publicado originalmente sem assinatura ou responsável técnico assinalado, apresenta uma lista de critérios diagnósticos para casos leves, moderados e graves da COVID-19, e estabelece as dosagens dos medicamentos a utilizar em cada fase da doença. Ao longo do texto, no entanto, o próprio órgão reconhece não haver estudo que comprove os benefícios da cloroquina ou hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19, jogando para médicos e pacientes a responsabilidade de prescrever e receber, via termo de ciência e consentimento, as medicações.
A insistência de Bolsonaro no uso da cloroquina para tratar a COVID-19, a despeito da ausência de qualquer embasamento científico, insistência que lhe custou já, num intervalo de menos de um mês, dois ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, é mais um forte indício de que o governo federal está perdido no enfrentamento da pandemia, e deposita suas esperanças em uma solução “mágica”.
Contramão da ciência
Nesta mesma semana, foram divulgadas duas notas técnicas assinadas por diversos especialistas e sociedades médicas apontando a falta de sustentabilidade científica e os riscos da administração de CQ e HCQ em pacientes leves, moderados ou graves de COVID-19, e do uso profilático (preventivo) desses medicamentos.
A primeira – que tem entre seus autores a microbiologista Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, que publica esta revista – compila os muitos estudos já feitos em torno do tema até agora, num texto que cobre desde os sinais tênues de possíveis benefícios da cloroquina contra a COVID-19, que apareceram em estudos de má qualidade e altamente preliminares, até os mais recentes trabalhos, de boa qualidade e caráter mais definitivo, que mostram que os sinais iniciais não passavam de ilusão.
Assim, o grupo de especialistas destaca que, se no início da pandemia, a incerteza e a falta de opções justificavam o uso exploratório de CQ e HCQ na luta contra a doença, agora, com o acúmulo de evidências, a plausibilidade do tratamento não existe mais. “Pelo contrário, vários [estudos] indicaram potenciais malefícios. Assim, hoje, em vista de algumas claras certezas, não é mais ético fazer uso rotineiro da medicação fora de estudos clínicos”, afirmam os cientistas.
A nota prossegue: “Em uma situação de emergência global de saúde pública, como a Pandemia causada pelo SARS-CoV-2, cabe ao Poder Público garantir o bem-estar da população de forma responsável e embasada em conhecimento produzido pela ciência, e não a submeter ao risco adicional de um tratamento sem garantias de segurança e eficácia sob a chancela de uma política nacional de saúde”.
No caso do uso preventivo, a nota cita estudos com pacientes que fazem uso contínuo de CQ ou HCQ, para controle dos sintomas de doenças autoimunes. Se essas drogas têm algum poder de prevenir ou amenizar a COVID-19, seria de se esperar que esses pacientes, que tomam a medicação continuamente e há tempos, estivessem protegidos, ou evoluíssem menos para estados graves. Mas nenhum desses benefícios foi observado.
Já o segundo texto, fruto de consenso da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, da Sociedade Brasileira de Infectologia e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, lista em suas “Diretrizes para o Tratamento Farmacológico da COVID-19” recomendações para o não uso de CQ e HCQ, associadas ou não à azitromicina (AZ), em pacientes da doença, dadas que “as evidências disponíveis não sugerem benefício clinicamente significativo do tratamento”. Ainda de acordo com o documento, “houve entendimento de que o risco de eventos adversos cardiovasculares é moderado, em especial de arritmias, sendo potencializado com a associação de HCQ/CQ com AZ”.
O protocolo do Ministério da Saúde repudia a ciência para atender a um apelo populista criado pelo próprio presidente: qualquer que seja a real dimensão do "clamor popular" pela cloroquina, ele não deriva de uma compreensão serena da ciência -- que, na verdade, aponta na direção oposta -- e só existe porque Bolsonaro o engendrou.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência