O fracasso global no combate à pandemia de COVID-19

Questão de Fato
15 set 2022
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virus

O mundo – com raras exceções - errou muito no combate à COVID-19, mas as lições deste fracasso podem ajudar a evitar tragédia semelhante quando a Humanidade tiver de encarar a próxima pandemia, cuja eclosão é uma questão de tempo. Esta é a conclusão de relatório de comissão formada por dezenas de especialistas renomados, das mais diversas áreas, que analisou a resposta global à maior crise sanitária da Humanidade no último século, publicado na noite de quarta-feira, 14, na prestigiosa revista médica The Lancet.

“O assombroso número de vidas humanas perdidas nos primeiros dois anos da pandemia de COVID-19 é uma tragédia profunda e um fracasso maciço da sociedade em vários níveis”, resume Jeffrey Sachs, professor da Universidade de Columbia (EUA) e presidente da comissão, em comunicado divulgado pela Lancet. “Precisamos encarar duras verdades: governos demais fracassaram em aderir às mais básicas normas de racionalidade institucional e transparência; pessoas demais se opuseram às mais básicas medidas de prevenção em saúde pública, frequentemente influenciadas por desinformação; e países demais fracassaram em promover uma cooperação global para controlar a pandemia”.

Os autores do relatório - 28 dos principais especialistas mundiais em campos como políticas públicas, governança internacional, epidemiologia, vacinologia, economia, finanças internacionais, sustentabilidade e saúde mental, auxiliados por 173 colaboradores divididos em 12 forças-tarefa temáticas – avaliam que a sucessão trágica de erros no combate à pandemia teve início já com quem deveria ser uma das primeiras linhas de defesa contra este tipo de crise: a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Segundo eles, embora a princípio houvesse incertezas em torno da infectividade do SARS-CoV-2, sua disseminação assintomática e transmissão por via aérea, estas dúvidas foram logo sanadas pela comunidade científica internacional. Assim, a consequente demora das autoridades sanitárias da cidade chinesa de Wuhan em detectar e comunicar o surgimento da doença, e depois da OMS em reconhecer a gravidade da situação e declarar uma “emergência em saúde pública de preocupação internacional”, permitiu que o vírus se espalhasse rapidamente, primeiro pela China e depois pelo mundo, e continuasse a se disseminar entre a população diante da falta de uma posição clara quanto a medidas de prevenção, como o uso de máscaras.

“No redemoinho de incertezas durante o surto de COVID-19, a OMS – agindo sob a autoridade das Regras Internacionais de Saúde de 2005 (IHR, na sigla em inglês) – repetidamente pecou mais pelo lado do conservadorismo do que da ousadia”, criticam no relatório. “A OMS hesitou em agir sobre estes riscos potencialmente graves até que as incertezas sobre a transmissão viral fossem sanadas, e desta forma foi lenta em defender respostas proporcionais aos perigos reais do vírus”.

Aos erros que impediram ao controle, ou mesmo a supressão precoce, do novo coronavírus, somaram-se as falhas – deliberadas ou não – dos governos, nacionais e locais, tanto do ponto de vista da cooperação internacional quanto na adoção e gestão de políticas de saúde pública para contenção do vírus. Um exemplo ainda preocupante do primeiro caso - que inclui da coordenação de protocolos e restrições de viagens no início da crise sanitária ao acesso a testes e consequentes estratégias de testagem, para ajudar no seu controle -, são as vacinas, até hoje com uma distribuição absurdamente desigual pelo planeta, o que aumenta o risco do surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2 e atrasa o fim da pandemia.

“Mais de um ano e meio depois que a primeira vacina da COVID-19 foi aplicada, ainda não atingimos uma equidade vacinal global. Nos países de alta renda, três em cada quatro pessoas estão totalmente vacinadas, mas nos países de baixa renda, apenas uma em cada sete”, destaca Maria Fernanda Espinosa, ex-ministra de Relações Exteriores e Defesa do Equador e uma das integrantes da comissão da Lancet, no mesmo comunicado. “Todos países continuam altamente vulneráveis a novos surtos de COVID-19 e futuras pandemias se não compartilharmos patentes de vacinas e tecnologias para produção de vacinas com fabricantes de países menos abastados e fortalecermos iniciativas multilaterais que almejam aumentar a igualdade global no acesso a vacinas”.

Mas o relatório também é extremamente crítico das atitudes e decisões de alguns governantes frente à pandemia. E embora não cite nomes, as referências deixam claro que entre eles estão o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e o ex-presidente dos EUA, Donald Trump.

“Uma das ocorrências mais notáveis da pandemia tem sido a irresponsabilidade de vários líderes políticos influentes”, escrevem os autores. “Como a pandemia era uma experiência nova para a maior parte destes líderes, a Humanidade ficou vulnerável à sua curva de aprendizado, ignorância e motivações variadas. As respostas nacionais foram frequentemente improvisadas, e ocasionalmente beiraram o absurdo. Vários líderes nacionais deram declarações imensamente irresponsáveis nos primeiros meses do surto, negligenciaram evidências científicas e arriscaram vidas desnecessariamente com vistas em manter as economias abertas”.

Irresponsabilidade que ajudou a alimentar outro problema grave, a “infodemia”, como ficou conhecida a epidemia de desinformação que acompanhou a disseminação da COVID-19 pelo mundo. Embora notícias falsas, propaganda enganosa e demagogia não sejam exatamente novidades, nem esta crise a primeira afetada pela desinformação, as redes sociais e outras mídias digitais, como seus bilhões de usuários, se mostraram poderosas plataformas de propagação, devido ao seu “imediatismo, relativa anonimidade e facilidade de criar câmaras de eco de grupos fechados, recebendo impressões absolutamente desconectadas dos fatos”, ressalta o relatório.

“Algumas empresas de mídia erroneamente promoveram tratamentos perigosos ou experimentais, como hidroxicloroquina e ivermectina, resultando em visitas desnecessárias a emergências hospitalares e na falta destas medicações para pessoas com necessidades legítimas”, acrescenta o texto. “Nos Estados Unidos, a extrema direita tem promovido uma retórica anticiência, como demonstrada por sua oposição às vacinas contra a COVID-19 e medidas de prevenção. Esta retórica anticiência agora está sendo promovida por diversos integrantes eleitos do Congresso dos EUA, e é frequentemente disseminada por canais de TV a cabo e podcasts. Estimativas indicam que entre 100 mil e 200 mil americanos perderam a vida porque recusaram as vacinas da COVID-19 e eram abertamente contra elas. E este movimento anticiência se globalizou, com consequências trágicas”.

O que, claro, influenciou o próprio comportamento das populações frente à pandemia, e justo num momento de polarização política e crise de confiança destas nas instituições e nos valores democráticos. Em muitos deles, especialmente nas Américas e na Europa, isso levou a protestos, e por vezes à recusa, em nome de uma equivocada noção de “liberdade”, de cumprir medidas obrigatórias de prevenção como o uso de máscaras, com prováveis impactos em sua eficácia.

“Um aspecto adicional e alarmante da resposta da população (à pandemia) em muitos países tem sido uma ampla hesitação vacinal, encorajada por um movimento antivacina hostil e coordenado que tem espalhado informações falsas e perigosas sobre o risco à saúde das vacinas e feito campanhas contra a vacinação”, reforçam os autores, que também criticaram o relaxamento prematuro das medidas de prevenção. “Novas variantes e ondas de infecção são esperadas à medida que a imunidade atual enfraquece, portanto desmontar controles básicos e mesmo propagandear o fim da pandemia é prematuro, e provavelmente prejudicial quando restrições se tornarem novamente necessárias”.

 

Esperança para o futuro

Para além do fracasso global no enfrentamento da COVID-19, porém, o relatório indica uma série de iniciativas que, se adotadas, podem não só acelerar o fim da atual pandemia e a recuperação das sequelas econômicas e sociais que ela deixou, como preparar o mundo para que os erros e os impactos desproporcionais e desiguais não se repitam. No topo das prioridades, assegurar o acesso a insumos de saúde fundamentais para o controle de pandemias, incluindo testes de diagnóstico, medicamentos, equipamentos de proteção individual (EPIs) e principalmente vacinas, especialmente as que foram desenvolvidas usando recursos públicos.

Os autores lembram que embora o desenvolvimento de algumas das vacinas da COVID-19 tenha sido em parte financiado com capital privado, o apoio de governos, notadamente o dos EUA com sua “Operação Warp Speed”, foi essencial para que elas chegassem rapidamente nos braços da população, no que consideraram o único grande “triunfo” do mundo no combate à pandemia. Apesar disso, o governo americano não estabeleceu maneiras adequadas de gerir a propriedade intelectual das vacinas que ajudou a desenvolver, que acabou totalmente nas mãos de empresas e universidades.

“O resultado é uma quase completa privatização da propriedade intelectual resultante de financiamento público”, apontam. “Universidades e empresas então exercem direitos monopolistas das tecnologias sob patentes, e cobram preços pelas doses das vacinas que são muito superiores aos custos de fabricação. Em teoria, estes ágios compensam empresas e universidades pelos seus investimentos em pesquisa e desenvolvimento, mas suas despesas nestas áreas foram parcialmente financiadas pelo governo, em primeiro lugar. Em última instância, os contribuintes pagam preços monopolistas por vacinas que o dinheiro dos impostos ajudou a financiar, e os governos de alguns países mais pobres não têm qualquer condição de arcar com estes preços monopolistas, sendo obrigados a esperar no fim da fila, por doações ou descontos”.

Diante disso, eles apontam algumas alternativas, como os governos dividirem os lucros em proporção ao financiamento que deram para a pesquisa e desenvolvimento das vacinas, negociar preços que equilibrem o investimento que empresas e universidades no desenvolvimento dos imunizantes e o acesso justo a eles, ou forçar as empresas a licenciarem sua propriedade intelectual com o pagamento de taxas razoáveis, em processo conhecido como licenciamento compulsório e previsto sob as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Outra saída é investir em tecnologias e plataformas vacinais não protegidas por patentes, como as vacinas de proteína recombinante, e na capacidade para sua fabricação nos próprios países de renda média e baixa via iniciativas como a Rede para Produção de Vacinas em Países em Desenvolvimento (DCVMN, na sigla em inglês).

Assim, o mundo poderá colocar em prática a estratégia que chamam de “vacina-mais”, em que a vacinação em massa, conjugada a outras medidas de saúde pública e apoio socioeconômico, dará fim à atual pandemia.

“Uma estratégia global de vacinação-mais, de alta cobertura vacinal com uma combinação de medidas eficazes de saúde pública, vai frear o surgimento de novas variantes e reduzir o risco de novas ondas de infecção, permitindo que todos (incluindo aqueles clinicamente vulneráveis) sigam com suas vidas mais livremente”, diz Salim S. Abdool Karim, professor da Escola Mailman de Saúde Pública da Universidade de Columbia e outro coautor do relatório, no mesmo comunicado da Lancet. “Quanto mais rápido o mundo agir para vacinar todos, e prover apoio social e econômico, melhores os prospectos de sair da emergência pandêmica e alcançar uma recuperação econômica duradoura”.

Olhando para o futuro, o combate às próximas pandemias vai passar por um multilateralismo revigorado, sob a liderança de uma OMS reforçada e com atribuições e poderes ampliados – incluindo uma atualização das IHR de 2005 e um novo tratado pandêmico internacional - para tentar não repetir os erros da COVID-19, e uma nova e generosa estrutura de financiamento da saúde pública global para ajudar a fortalecer os sistemas de saúde dos países de renda média e baixa e seu nível de preparação para enfrentar crises sanitárias.

Para isso, os autores do relatório calculam que serão necessários cerca de US$ 60 bilhões anuais, o equivalente a apenas 0,1% do produto interno bruto (PIB) dos países mais ricos do planeta, em um compromisso de longo prazo, além de um esforço concentrado de dez anos da parte dos países do G20 para impulsionar a pesquisa e desenvolvimento e os investimentos em infraestrutura e capacidade de produção de todas as ferramentas essenciais para o controle de pandemias, incluindo testes de diagnóstico, tratamentos, vacinas e EPIs, bem como no apoio e treinamento de profissionais de saúde nos países de renda média e baixa.

“Agora é a hora de uma ação coletiva que promova a saúde pública e o desenvolvimento sustentável para pôr fim à pandemia, enfrentar as desigualdades na saúde pública global, proteger o mundo de futuras pandemias, identificar as origens desta pandemia e reforçar a resiliência de comunidades ao redor do planeta”, conclui Sachs, líder da comissão, ainda no comunicado da Lancet. “Temos as capacidades científicas e os recursos econômicos para fazer isso, mas uma recuperação resiliente e sustentável depende do fortalecimento da cooperação multilateral, financiamento, biossegurança e da solidariedade internacional com os países e populações mais vulneráveis”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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