A pandemia de COVID-19, doença respiratória provocada por um novo coronavírus, designado SARS-CoV-2, que se alastra pelo mundo desde dezembro do ano passado, segue avançando a uma estonteante velocidade. Todos os dias, novos números mostram um aumento em progressão geométrica da quantidade de infectados no planeta, trazendo, a reboque, um também exponencial crescimento dos relativamente raros, porém graves, casos de complicações que exigem atendimento médico, ameaçando, ou já ultrapassando, a capacidade dos sistemas de saúde.
Com a crise ainda em curso, é difícil prever como o mundo estará ao seu fim. Nos cenários mais pessimistas, algumas projeções apontam milhões de mortos, não só pela COVID-19, mas também pelo colapso generalizado no atendimento médico. Mas, diante da situação atual, já é possível esboçar algumas lições de como o mundo pode prevenir, se preparar e lidar com futuras pandemias do tipo, que inevitavelmente virão.
Não subestimar o perigo
A primeira lição deve ser a de não subestimar a capacidade e a velocidade com que um novo vírus pode se espalhar pela população. Quando as primeiras notícias sobre a COVID-19 apareceram entre o fim de dezembro de 2019 e janeiro de 2020, poucos deram atenção. Então, o centro de controle e prevenção de doenças da China foi alertado da ocorrência de um surto de uma misteriosa e mortal pneumonia em Wuhan, capital da província de Hubei.
Em pouco tempo, o vírus causador da doença, SARS-CoV-2, foi identificado, e em 10 de janeiro pesquisadores chineses já publicavam o primeiro esboço de seu sequenciamento genético em uma plataforma de acesso aberto.
Do subtipo denominado betacoronavírus, o SARS-CoV-2 integra a mesma “família” dos micro-organismos responsáveis pelos surtos anteriores das que ficaram conhecidas como Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS, na sigla em inglês), que entre novembro de 2002 e julho de 2003 atingiu cerca de 8,1 mil pessoas em 17 países, matando 774 dos diagnosticados, e Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS, também na sigla em inglês), que resultou em mais de mil casos e 400 mortes, a grande maioria na região do planeta que lhe empresta o nome, de 2012 a 2015.
Diante disso, e mesmo na ausência de estudos ou dados consistentes e confiáveis, presumiu-se então que o novo coronavírus exibiria uma epidemiologia semelhante à de seus “predecessores”. Ledo engano. O SARS-CoV-2 mostrou-se muito mais contagioso do que eles. Isto porque, diferentemente dos coronavírus da SARS e da MERS, em geral transmitidos apenas por pacientes já sintomáticos e em estado grave, facilitando sua identificação, isolamento e contenção, o da COVID-19 parece capaz de transmitir-se por infectados ainda nas fases pré-clínica e subclínica, isto é, nos períodos de incubação e antes do aparecimento dos primeiros sintomas, ou por doentes leves.
Assim, segundo estudo preliminar e ainda sem revisão de pares publicado por pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade de Colúmbia, EUA, no repositório de acesso aberto medRxiv, cerca de dois terços das novas infecções ainda no início da epidemia na China, antes do bloqueio e quarentena da região de Hubei, em 23 de janeiro, tiveram origem em casos não registrados.
Esta cadeia de transmissão “invisível” também dificulta calcular a real taxa básica de reprodução do vírus, isto é, a quantidade de pessoas a quem um infectado, em média, transmite o vírus. Pelo avanço exponencial da epidemia, observa-se que este número, conhecido pelos epidemiologistas como “R0”, está acima de 1. Mas enquanto as estimativas iniciais indicavam que o R0 do SARS-CoV-2 ficava em 2,6 (com intervalo de incerteza de 1,5 a 3,5), novas pesquisas, ainda não revisadas e publicadas, apontam que este número pode chegar a 8 ou mais.
A título de comparação, a gripe sazonal comum tem um R0 calculado em 0,9 a 2,1, enquanto que com o sarampo, uma das doenças infecciosas mais contagiosas conhecidas e com transmissão por via aérea, o R0 é de 12 a 18.
É melhor pecar pelo excesso
A rapidez e a facilidade com que o novo coronavírus parece se espalhar levam à segunda lição: diante de novos agentes microbianos de potencial pandêmico, é melhor pecar pelo excesso de cautela. A noção errônea de que o SARS-CoV-2 apresentaria comportamento similar ao dos coronavírus patogênicos anteriores, da SARS e da MERS, e o temor de potenciais prejuízos econômicos, fez primeiro as autoridades chinesas, e depois de outras partes do mundo, hesitarem em recomendar ou impor medidas mais fortes de prevenção, como quarentena obrigatória de suspeitos de estarem infectados, fechamento de escolas e espaços públicos e isolamento das regiões afetadas.
Desta forma, quando finalmente a província chinesa de Hubei foi bloqueada, já era tarde demais. Em 23 de janeiro, não só outras grandes cidades da China, como Pequim e Shenzhen, registravam os primeiros casos confirmados, como o coronavírus já tinha chegado a outros países, como Tailândia, Japão, Coreia do Sul e EUA.
Apesar disso, e alheios da transmissão “silenciosa” do SARS-CoV-2 pelos casos assintomáticos e subclínicos, autoridades e especialistas ainda estavam confiantes de que a pandemia poderia ser evitada sem grandes perturbações da vida social e econômica. Assim, no mesmo dia que o governo chinês anunciou o bloqueio de Hubei, a própria Comissão Nacional de Saúde da China afirmava que a disseminação da doença era “administrável”, enquanto painel da Organização Mundial da Saúde (OMS) evitava declarar a COVID-19 uma “emergência de saúde pública de preocupação internacional”.
Desta forma, foi só uma semana depois, em 30 de janeiro, que a OMS declarou a doença uma emergência internacional. Então, o número de casos confirmados chegava a mais de 7,7 mil na China, com 170 mortes. No resto do mundo, porém, os registros oficiais ainda eram de apenas 83 doentes em 18 países, e nenhuma fatalidade.
Mas o cenário não demoraria a mudar radicalmente. Sem medidas mais duras de contenção, novamente por medo de seus efeitos econômicos e desconhecimento de seu potencial contagioso, ao longo de fevereiro o SARS-CoV-2 continuou a se espalhar pelo planeta.
Um triste exemplo desta hesitação é a Itália. Hoje o país mais duramente afetado pela pandemia, onde o número de mortos pela COVID-19 ultrapassou o da China, país de origem da doença, em 19 de março último, a Itália teve seus primeiros casos oficiais, dois turistas chineses, registrados em 31 de janeiro. A descoberta levou o governo italiano a no mesmo dia suspender os voos de e para a China, mas, além disso, nenhuma outra medida foi tomada. A vida seguia normalmente e, à exceção do caso de um expatriado italiano também recém-chegado ao país, em 6 de fevereiro, a situação parecia controlada.
O que não se sabia, porém, é que o SARS-CoV-2 estava se disseminando pela Itália de forma acelerada, em especial na região da Lombardia, no Norte do país. Lá, um homem de 38 anos, sem histórico de viagens recentes para regiões afetadas, teve um início de fevereiro agitado, participando de diversos eventos sociais, como jantares e jogos de futebol, até que no dia 18 ele foi à emergência de um hospital da pequena cidade de Codogno e se queixando de sintomas do que parecia ser uma forte gripe.
Como até então todos três casos de COVID-19 identificados na Itália tinham sido “importados”, ninguém desconfiou de nada mais grave e o homem, após atendido, não quis ficar internado, retornando para casa. Seu estado, porém, piorou, em poucas horas ele estava de volta ao hospital. No dia 20 deu entrada na UTI e, finalmente testado, deu positivo para o SARS-CoV-2.
Apelidado de “Paciente Um”, o homem italiano se tornou o que os especialistas chamam de “superdisseminador”, uma pessoa que inadvertidamente espalha uma doença contagiosa para muitas outras, deflagrando praticamente sozinho um surto. O fato, porém, é que ele foi infectado na própria Itália, numa indicação de que o vírus já estava circulando pelo país já há algum tempo. “Aquele que chamamos de ‘Paciente um’ provavelmente foi o ‘Paciente 200’”, resumiu o epidemiologista italiano Fabrizio Pregliasco ao jornal americano New York Times.
Altamente contagioso, transmissível por pacientes assintomáticos ou subclínicos e com potencial de provocar complicações graves em algumas vítimas, o SARS-CoV-2 está se mostrando a tempestade perfeita a atingir os serviços de vigilância epidemiológica e de prevenção.
As notícias de colapso do atendimento médico na Itália diante do avanço da COVID-19 serviram de alerta, e logo tanto o país como diversas outras nações começaram a adotar medidas para evitar a repetição ou agravamento da situação. Com ações como quarentenas, proibição de aglomerações e recomendações de afastamento social e higiene básica, espera-se baixar a taxa de reprodução do vírus para abaixo de 1, freando seu crescimento exponencial e consequentemente reduzindo o impacto no sistema de saúde, numa estratégia de “alongamento” da curva de aumento no número de infecções.
Estas medidas, no entanto, seriam mais eficazes quanto mais cedo fossem tomadas, podendo talvez até ter impedido ou diminuído em muito a crise que ora vivemos. Diante disso, a lição que fica pode ser resumida por declaração recente de Anthony Fauci, imunologista que chefia o Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, de que numa situação de pandemia como esta “medidas de prevenção vão sempre parecer exageradas hoje, e insuficientes amanhã”.
Cesar Baima é jornalista