A lista de ataques, jogadas e estratégias do governo contra a ciência parece não ter fim. De uns tempos recentes para cá, foi acrescentado mais um item ao rol. Autoridades do Executivo e seus aliados no Legislativo descobriram o dispositivo das audiências públicas, e o estão usando para dar palco e voz a negacionistas alinhados ao presidente Jair Bolsonaro.
Ao menos três foram realizadas recentemente: uma, em defesa do chamado “Kit Covid”, que preconiza o “tratamento precoce” com medicamentos sem eficácia comprovada, como a cloroquina, que ocorreu em 28 de dezembro de 2021, organizada pelo Ministério da Saúde. Depois, em 4 de janeiro, houve outra, esta para vacinação em crianças. Finalmente, em 14 de fevereiro, por iniciativa do senador Eduardo Girão (Podemos-CE), foi realizada uma terceira, no caso, para debater exigência do passaporte vacinal.
Em todas, assuntos que já são consenso entre especialistas sérios – como a inutilidade do Kit Covid, a segurança e a necessidade da vacinação contra COVID-19 para crianças e adultos – foram tradados como “polêmicos”, e ampla voz dada a teóricos de conspiração e negacionistas, incluindo propagadores de hipóteses absurdas e sem base nos fatos, como a de que as vacinas baseadas em tecnologia de RNA mensageiro seriam capazes de alterar o DNA dos vacinados. Essas alegações já foram desmentidas diversas vezes (por exemplo, aqui, aqui e aqui).
Para Sergio Simoni Jr., professor de Ciência Política e de Políticas Públicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o atual governo vem usando diversos canais, entre eles portarias, pareceres, recomendações, notas técnicas, além das audiências, para dar voz e palco a argumentos negacionistas que alimentam sua base de apoio mais sólida. “Evidentemente, isso não é correto”, critica. “É algo diferente de se aceitar pluralidade de visões políticas, que uma democracia deve garantir. No caso que estamos tratando, as visões atentam contra a saúde pública, não usam base científica, e logo, têm como consequência maior dificuldade de controle da pandemia”.
Esse comportamento negacionista e o uso que o governo federal vem fazendo das audiências públicas para amplificá-lo tem gerado fortes críticas da comunidade científica. Membros da Câmara Técnica de Assessoramento em Imunização da Covid-19 (CTAI Covid-19), criada pelo próprio Ministério da Saúde, em agosto do ano passado, para assessorá-lo, por exemplo, divulgaram uma nota de repúdio contra essas ações.
No documento, eles lembram que, em 4 de janeiro de 2022, contrariando tanto o histórico do Programa Nacional de Imunizações (PNI) e do Programa Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19 (PNO), quanto as manifestações de diversas autoridades técnico-científicas especializadas na área, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e dos membros desta CTAI, foi realizada uma audiência pública para embasar a vacinação da população de 5 a 11 anos no país “com participação de representantes alheios ao tema e desprovidos de análises sólidas para embasamento de opinião a respeito”.
Para os signatários da nota, tais representantes foram escolhidos de forma não esclarecida, contrastando com os representantes de diversas entidades que estão diretamente associadas ao tema, “representadas nesta CTAI e que já haviam se manifestado sobre o assunto, tanto quando da avaliação por parte da Anvisa quanto desta câmara”. “Como previamente alertado, ficou clara a inadequação de tal fórum para tratar de tema tão caro à saúde pública nacional, principalmente enquanto etapa para definição final da operacionalização desta campanha de vacinação pediátrica”, escrevem no documento.
O químico Luiz Carlos Dias, membro da força tarefa contra a COVID-19 da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que este governo “sobrevive de mentiras e as propaga o tempo todo”. “Isso é maléfico para a população brasileira”, alerta. “Nós temos que garantir livre acesso à informação de qualidade, à educação, à saúde, ao debate de ideias, mas não a conteúdos que negam o conhecimento científico, que vão contra os valores, o progresso, a democracia”.
No caso específico das audiências públicas, Dias afirma que o governo federal as utiliza para dar palco a negacionistas que jamais teriam espaço no debate público, pois não são respeitados pela comunidade científica. Para ele, a audiência antivacinas só serviu “para que defensores do Kit Covid e da ozonioterapia contra a doença dividissem um espaço, oficial e nobre, com médicos e cientistas respeitados”.
A médica infectologista Rosana Richtmann, do comitê de imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), acha insólito o uso que o governo vem fazendo das audiências. De acordo com ela, como o dispositivo nunca foi utilizado antes para tratar de vacinação, pois a base sempre foram as opiniões da ciência e dos comitês técnicos que assessoram o Programa Nacional de Imunizações, causou muita estranheza à comunidade cientifica este tipo de iniciativa.
Para ela, “sem dúvida” fazer este tipo de audiência é dar voz aos “contrários à ciência”, sendo que a ciência representa o conhecimento atento e aprofundado de algo. “Segundo Leonardo da Vinci, ‘pouco conhecimento faz com que as pessoas se sintam orgulhosas; muito conhecimento, com que se sintam humildes’”, cita. “Assim, dar voz aos que negam os fatos é incorreto”.
Muitos podem pensar que ouvir dois lados de uma questão, quem defende e quem ataca, é algo democrático e salutar. De fato, para muitos temas, é mesmo. Mas não é o caso da ciência.
“As audiências públicas são um mecanismo republicano por excelência, são um momento ímpar em que o legislador pode ouvir os diversos grupos de interesse e os experts sobre os temas em discussão”, defende a médica Rosana Onocko, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). “Gosto muito delas, são pequenas ilhas de democracia direta na vida parlamentar. Mas enchê-las de negacionistas é um atentado contra a democracia, é deturpação. Mentir sobre a saúde deveria ser considerado crime”.
Dias é mais contundente. Para ele, não é questão de ouvir dois lados, pois só existe um lado, o da ciência. “O outro é pseudociência, charlatanismo, com negacionistas que defendem ideias cientificamente indefensáveis”, ataca. “Não se colocam achismo e opiniões pessoais lado a lado com dados científicos robustos”.
Até porque isso pode trazer consequências graves. “O negacionismo e o movimento antivacinas afrontam valores democráticos”, afirma Dias. “Não existe democracia quando você mente, cria fake news que podem matar. O negacionismo corrói a democracia”.
Simoni Jr. pensa de modo semelhante. “Quando canais públicos dão voz a tratamentos que não têm por base o conhecimento produzido pela comunidade científica, além de ser um crime em si, pode contribuir para criar dúvidas na população quanto ao comportamento para combater a pandemia”, alerta. “Pode também, dessa forma, aumentar o número de contaminações e mortes”.
Evanildo da Silveira é jornalista