No último 27 de setembro, teve início o derradeiro ciclo de Mercúrio retrógrado do ano de 2021. Isso significa que, de agora e até 17 de outubro, quando visto da Terra, o planeta Mercúrio parecerá estar “indo para trás” em sua trajetória contra o pano de fundo das estrelas fixas: se até alguns dias antes da fase retrógrada Mercúrio, como visto da Terra, vinha se afastando da estrela A e se aproximando de B, agora ele retorna em direção a A, afastando-se de B.
Esse aparente retorno, ou retrocesso, é uma ilusão provocada pelo fato de que o planeta Terra, onde estamos, acaba de ultrapassar Mercúrio em sua trajetória ao redor do Sol. Imagine que os planetas são corredores numa pista circular, cada órbita uma raia, cada corredor numa velocidade mais ou menos constante.
Imagine agora que um desses atletas – o planeta Terra – tem uma formiga (a Humanidade) sobre o ombro. No momento em que a Terra ultrapassa um outro planeta, a formiga vê o que foi ultrapassado ficando para trás. Esse “ficar para trás” é o movimento retrógrado: ele só existe do ponto de vista particular da formiga.
Com a popularização cada vez maior da astrologia no século 21, períodos de “Mercúrio retrógado” viraram uma espécie de acontecimento cultural, com muita gente que se imagina sofisticada esperando por uma sucessão de pequenos desastres pessoais ou uma magnificação repentina dos vários incômodos do dia a dia.
Astrólogos recomendam paciência e cuidado, principalmente em questões envolvendo comunicação e negócios, porque nesse período de retrogressão “suas energias [de Mercúrio] são sentidas de forma mais aguda” (Louise Edington, “The Complete Guide to Astrology”), o que, segundo a mesma autora, “lança-nos numa jornada mais interna ou noturna, ou nos convida a exalar e liberar algumas das lições do período em que o planeta ia direto”.
Nada disso faz sentido – e em vários níveis. Vejamos “suas energias”, por exemplo: o planeta Mercúrio é um objeto inanimado, um núcleo metálico envolto em rocha, desprovido de vida e apenas 20% maior do que a Lua. Mercúrio gira ao redor do Sol a uma distância de mais de 100 milhões de quilômetros de nós. Uma conta rápida de padaria mostra que a influência da gravidade de Mercúrio sobre o corpo de uma pessoa de 70 kg, na superfície terrestre, é ordens de grandeza menor do que a de um carro estacionado a um metro de distância dessa mesma pessoa. Se Mercúrio retrógrado lhe traz dificuldades, um carro passando em marcha à ré ao seu lado deveria causar desemprego, miséria e morte na família.
O símbolo
Claro, quando um astrólogo fala em Mercúrio e suas “energias”, ele não está pensando exatamente na rocha espacial sem vida e seu campo gravitacional tênue, mas nos símbolos associados: Mercúrio, mensageiro dos deuses, o deus romano do comércio, da comunicação (e dos ladrões e dos trapaceiros também, embora os comerciantes e associações comerciais que usam Mercúrio como símbolo prefiram não ser lembrados disso). Assim, “Mercúrio retrógrado”, ou seja, Mercúrio andando (ou ficando) para trás é mau agouro para atividades econômicas ou que requerem comunicação.
Exposto dessa forma, o problema do raciocínio por trás do desconforto em torno dos períodos de Mercúrio retrógrado fica claro: é um pensamento supersticioso, baseado na Lei Mágica das Correspondências, a ideia de que o que se assemelha a, ou simboliza, algo tem algum tipo de poder ou influência sobre o que é simbolizado. É a mesma lógica de espetar alfinetes num boneco ou desenhar chifres e bigodes na foto de um desafeto.
Neste ponto, alguém geralmente argumenta que a astrologia é um “conhecimento antigo”, que a relação simbólica entre o planeta Mercúrio e as atividades ligadas ao deus Mercúrio não é arbitrária, mas existe “por uma razão”. E essa razão seria a influência percebida do planeta sobre as tais atividades.
Teríamos aqui um bom argumento, caso houvesse alguma base na realidade – histórica ou empírica. O fato é que não há. A ideia de que princípios astrológicos são baseados em observação cuidadosa, e não em correspondências supersticiosas, é popular, mas falsa (escrevi um livro sobre isso, caso alguém esteja interessado). Em 2006, um repórter de The New York Times procurou os responsáveis por diversos serviços que deveriam ser prejudicados durante um período de Mercúrio retrógrado – como trânsito e a polícia – e não encontrou traço do efeito esperado.
Mas as coisas dão errado para mim quando Mercúrio está retrógrado!, protestará, talvez, um leitor inconformado (ou seu melhor amigo). Psicologia e acaso ajudam a explicar o que acontece.
Sombras
Começando pelo acaso. Todo ano tem de três a quatro períodos de Mercúrio retrógrado, que duram 21 dias cada (ou quase 60, se formos levar em conta os períodos de “pré-sombra” e “pós-sombra” que, segundo astrólogos, cercam as retrogressões propriamente ditas, e também são sinistros).
Então são 63 (ou 180, considerando as “sombras”) dias com, supostamente, maior probabilidade de as coisas darem errado a cada ano, espaçados de modo mais ou menos uniforme – em 2021, tivemos Mercúrio retrógrado entre janeiro e fevereiro e entre maio e junho antes deste aqui, que vai até outubro. Isto é de 35% a 50% do ano. Surpreendente seria se nada desse errado em intervalos de tempo tão significativos.
E agora, a psicologia: coisas dão errado o tempo todo, mais ou menos ao acaso, mas se você está preocupado com o Mercúrio retrógrado, é provável que, quando algo der errado neste período exato, sua atenção se fixe. É como o motorista que grava na memória cada vez que uma mulher comete uma barbeiragem, mas logo esquece quando o navalha é outro homem, e se convence de que seu machismo rodoviário tem sólida base empírica.
É uma mistura de viés de confirmação – somos mais facilmente impressionados por aquilo que confirma nossas crenças e preconceitos, e descontamos como “irrelevantes” evidências contrárias – com atenção dirigida: se eu lhe disser que você vai ser seguido por um homem de bigode quando sair na rua hoje, e você achar que eu tenho algum tipo de poder ou sabedoria especial, é provável que você fique olhando por cima do ombro a cada quatro ou cinco minutos, e o primeiro inocente de bigode que surgir às suas costas “confirmará” meu dom de profecia.
No caso astrológico, o inocente de bigode é o pobre planeta Mercúrio.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)