Quem deve contar como autor de um trabalho científico?

Questão de Fato
18 ago 2021
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Ler, analisar e avaliar um artigo científico a cada cinco dias é o que se poderia chamar – para usar o velho clichê – de uma tarefa hercúlea, senão impossível. O que dizer, então, de produzir e escrever um paper nesse prazo? Por incrível que pareça, há milhares de cientistas no mundo capazes dessa proeza. Pelo menos, suas assinaturas constam dos trabalhos publicados. Foi o que descobriram os pesquisadores John Ioannidis, da Universidade Stanford, na Califórnia, e Richard Klavans e Kevin Boyack, da SciTech Strategies, todos dos Estados Unidos, num estudo para tentar compreender o que significa “autoria científica”, posteriormente publicado na revista Nature.

Eles buscaram na Scopus – o maior banco de dados de resumos e citações da literatura científica com revisão por pares –, autores que tivessem publicado mais de 72 artigos por ano, o que corresponde a um a cada cinco dias, entre 2000 e 2016. É um número que muitos, segundo os autores, considerariam implausivelmente prolífico. Mas encontraram mais de 9 mil cientistas e garantem que fizeram todos os esforços para contar apenas “papers completos” – artigos, documentos de conferências, comentários substantivos e revisões –, não editoriais, cartas ao editor e similares. Esperavam que este pudesse ser um exercício útil para compreender o que significa autoria científica.

Mesmo estranhando tamanha produtividade desses “polvos da ciência”, fazem questão de deixar claro, no estudo publicado na Nature, que não têm evidências de que esses autores estejam fazendo algo impróprio ou irregular. "Alguns cientistas que são membros de grandes consórcios poderiam atender aos critérios de autoria em um volume muito grande de artigos", dizem. “Nossos resultados sugerem que alguns campos ou equipes de pesquisa operacionalizaram suas próprias definições do que significa autoria”.

Segundo o levantamento, a área que mais se destaca em número de autores hiperprolífcos é a Física, na qual muitos projetos são realizados por grandes equipes internacionais que podem ter mais de 1.000 membros – e todos assinam cada artigo do grupo. Foram encontrados 7.888 pesquisadores cuja alta produtividade tem esse tipo de característica. Por isso, retiraram o contingente do estudo e fizeram o mesmo com cientistas coreanos e chineses, por causa da ambiguidade das assinaturas. No final restaram 265, para os quais enviaram questionário perguntando seus insights sobre como chegaram a essa classe extremamente produtiva. 

Dos 265, 81 responderam. Entre os temas comuns das respostas estão trabalho árduo; amor pela pesquisa; orientação de muitos jovens pesquisadores; liderança de uma equipe de pesquisa, ou mesmo de várias equipes; colaboração extensa; trabalhar em várias áreas de pesquisa, ou em serviços essenciais; disponibilidade de recursos amplos e dados adequados; culminação de um grande projeto; valores pessoais como generosidade e compartilhamento; experiências de crescimento; dormir apenas algumas horas por dia.

Mesmo assim, assinar um artigo a cada cinco dias é algo que beira o inacreditável – pressupondo que o autor também tenha realizado a pesquisa e escrito o texto. “Não é possível um pesquisador ler cuidadosamente um paper a cada cinco dias, que dirá escrever”, diz o físico Leandro Tessler, do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Acontece que em alguns lugares há um exército de colaboradores e subordinados, que fazem boa parte do trabalho”.

De acordo com ele, isso é muito mais comum nas ciências médicas. Pela própria natureza da pesquisa, é possível publicar papers mais curtos e menos elaborados. “Mas ocorre também em exatas e biológicas, talvez menos nas humanidades”, acrescenta. “Assinar um artigo sem que tenha havido contribuição levanta um problema ético muito sério. No entanto, alguns diretores de laboratório entendem que terem montado a infraestrutura garante coautoria em toda a produção da equipe”.

 

 

Empresa

 

Mas o que levaria um pesquisador a assinar um trabalho no qual teve pouca ou nenhuma participação, limitando-se talvez a apenas franquear recursos e espaços?

“No Brasil, a quantidade de artigos publicados ainda tem enorme peso na avaliação dos cientistas”, responde Marília Sá Carvalho, coeditora chefe dos Cadernos de Saúde Pública da Escola Superior de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Seja para conseguir apoio das instituições de fomento, seja para aumentar a possibilidade de obtenção de financiamentos. É comum pesquisadores se descreverem pela quantidade de papers publicados, e não pela importância desses na construção do conhecimento. Além disso, o mundo da academia científica vem sendo tratado como empresa, em que ‘produtividade’ é mensurada pelo número de artigos.”

Segundo Tessler, há vários motivos para um pesquisador assinar um trabalho que não é seu. “Eles podem ser pessoais, pois ter muitos artigos garante muitas citações e consequentemente bons indicadores de produtividade científica”, explica. “Há também casos em que um pesquisador se sente em dívida com um chefe, que ajudou a contratá-lo ou que obteve recursos para sua pesquisa e o coloca como coautor. O que é curioso é que sempre que ocorre um problema com um desses papers (fraude, plágio), o autor fantasma nunca assume a responsabilidade pelo que está no trabalho, acusando um colaborador ou estudante”.

 

Bom senso?

Para evitar isso é preciso ter – e seguir – o conceito do que é autoria científica. Para o físico Marcelo Martinelli, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IF-USP), ela deve ser definida com bom senso e só tem – ou deveria ter – o direito de assinar um artigo quem deu contribuição intelectual suficiente para a pesquisa. “Ele deve ter trabalhado pelo resultado e dado contribuição intelectual”, diz. “Caso mais evidente: o pesquisador que executou o trabalho, ou parte dele; o estudante que fez a medida; o pós-doutor que instruiu o estudante e corrigiu seus erros; o docente que propôs o problema”.

Ainda de acordo com Martinelli, todas as comutações possíveis nesse conjunto são autores naturais. “Um técnico de laboratório que contribuiu intelectualmente no problema físico deve assinar também”, diz. “Uma secretária geralmente vai ter trabalhado muito pelo artigo, mas não vai ter contribuído intelectualmente. A situação se comprara a um chefe de grupo de pesquisa que conseguiu os recursos. Não deveria assinar, a menos que ele tenha participado da elaboração da proposta – neste caso, a coautoria é evidente”.

Não é só o bom senso que define a autoria, no entanto. Há algumas instituições no mundo que estabelecem regras mais formais para isso. É o caso do International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), ou Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas, que criou as chamadas Normas de Vancouver, numa reunião realizada em 1978, nessa cidade do Canadá, na qual a própria entidade surgiu. “O artigo científico é uma das principais formas de informar à comunidade acadêmica os resultados da pesquisa na qual os autores trabalharam”, explica Marília.

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Isso é essencial, portanto, para o caminhar da ciência. De acordo com ela, ser autor de um paper é ter o reconhecimento público de seu trabalho. “Por isso, a autoria é questão séria”, diz. “Para ser autor, o ICMJE define: ter feito contribuição substancial para a concepção, desenho, coleta de dados, análise e interpretação dos resultados: contribuído para o rascunho e revisão do trabalho; e aprovado a versão final; e se responsabilizar por todo o trabalho, inclusive todas as questões éticas e de integridade da pesquisa. Resumindo, cada autor tem que ter um papel, que não é só proforma”.

O odontólogo Sigmar de Mello Rode, do campus de São José dos Campos da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e presidente da Associação Brasileira de Editores Científicos (ABEC), lembra que no Brasil a Lei 9.610/1998(Lei de Direitos Autorais) define autor como “a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica”. “Além disso, há as diretrizes do Council of Science Editors (CSE) para Promover Integridade em Publicações de Periódicos Cientí­ficos, publicadas pela ABEC Brasil, em 2017”, acrescenta. “Elas identificam alguns problemas que devem ser evitados”.

 

Honras e fantasmas

Entre eles estão as autorias convidadas (aquela baseada em uma expectativa de que a inclusão de um determinado nome vai melhorar as chances de que o trabalho seja publicado, ou aumentar o impacto da publicação); e honorária ou de presente (baseada unicamente em uma tênue ligação com um estudo, como, por exemplo, um chefe do departamento em que o estudo foi realizado, ou para prestar uma homenagem indevida a um pesquisador).

Há ainda os autores-fantasma, que são aqueles que participam da análise da pesquisa, dados e/ou escrita do manuscrito, mas não são colocados como autores. “Também há o autor anônimo”, diz Rode. “Como a autoria deve ser transparente e exigir responsabilidade pública, não é adequado usar pseudônimos ou publicar relatórios cientí­ficos anonimamente. Em casos extremamente raros, quando o autor consegue afirmar com credibilidade que anexar o seu nome ao documento acarretará graves problemas (por exemplo, ameaça à segurança pessoal ou perda de emprego), isso pode ser feito, no entanto”.

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É provável que essas regras não precisassem ser estabelecidas no papel, ou mesmo existir, se todos os pesquisadores se mirassem no exemplo de alguns grandes nomes. O brasileiro mais citado do mundo, segundo um ranking elaborado por uma equipe da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, Constantino Tsallis, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), tem um exemplo para contar.

“Numa ocasião perguntei, numa festa em Copenhague, a Aage Niels Bohr, Prêmio Nobel de Física de 1975, se tinha sido alguma vez coautor de seu pai, Niels Bohr (também Prêmio Nobel de Física, no caso, de 1922)”, diz. “Ele me respondeu que já tinha ocasionalmente assistido seu pai, mas não o suficiente para merecer ser coautor da publicação. Tanto ele quanto eu ficamos, a posteriori, meditando sobre o assunto.”

 

Evanildo da Silveira é jornalista 

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