No sistema capitalista tem-se como dogma que a competição impulsiona a inovação e o avanço tecnológico. Mas e no mundo acadêmico, da ciência, das pesquisas – ela também é benéfica e faz avançar o conhecimento e, em última análise, suas aplicações, ou seja, a inovação? Há controvérsias. Para alguns cientistas, depende da situação e local onde ela se dá. Para outros, ela mais prejudica do que ajuda, porque, entre outras razões, desestimula a colaboração entre grupos, cada um buscando a primazia da descoberta e da publicação.
Entre os primeiros se posiciona o geólogo Atlas Correa Neto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para ele, a competição é parte inegável da natureza humana – como também, diga-se, é a colaboração. “Quando saudável, em condições certas, ela leva a avanços científicos”, diz. “Mas, no caso do Brasil, um país pobre e com enormes desigualdades, acaba resultando em concentração de recursos, ineficiência e atrasos”.
Correa Neto lembra que a ciência depende do debate, do questionamento, do teste de hipóteses. Sem isso, ela míngua. “Para que isso aconteça, no entanto, é necessário que exista diversidade, competição de ideias, por assim dizer”, explica. “Por outro lado, a ciência é também uma empreitada coletiva e global. Avaliamos e incorporamos dados, hipóteses e métodos uns dos outros, independentemente de país ou corrente científica. Ela é um equilíbrio delicado entre a competição e a colaboração”.
Já a doutora em Engenharia de Alimentos Simone Hickmann Flôres, diretora do Instituto de Ciência e Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), considera a competição mais prejudicial do que benéfica para o avanço científico. “A corrida para estar com seus nomes no topo da lista faz com que cientistas não aprofundem as pesquisas”, critica. “Acredito muito que, se grandes pesquisadores se unissem pelo mesmo objetivo, a ciência brasileira seria muito mais significativa e reconhecida mundialmente”.
O químico João Roberto Fernandes, da Faculdade de Ciências do campus de Bauru da Universidade Estadual Paulista (Unesp), é ainda mais crítico. “No Brasil – pelo menos na área de química nas universidades públicas – infelizmente, esta tal competição não impulsiona absolutamente nada”, diz. “Por quê? Porque coloca-se como objetivo insano as progressões individuais e de pequenos grupos, sem preocupação com as reais necessidades da sociedade como um todo. Durante esta pandemia, pífias contribuições foram executadas, talvez por ‘peso na consciência’. A competição é feita de arrogância, individualismo e falta de tato para as questões mais amplas, que possam beneficiar aqueles que pagam impostos e, consequentemente, nos sustentam, juntamente com nossas pesquisas”.
História
O físico Edilson Crema, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP), contextualiza historicamente a questão. Ele lembra que a inspiração inicial da ciência era puramente filosófica, que tinha como ideal a compreensão do mundo e dos processos naturais, uma espécie de domínio do homem sobre a natureza. “Mas, desde muito cedo, a sua pureza foi sendo, por assim dizer, contaminada pela ânsia do desenvolvimento técnico, produção de novos produtos e a invenção de máquinas e armas”, explica. “Não por acaso, a história das ciências está imbricada no surgimento e desenvolvimento do sistema capitalista de produção, fundado na competição e completamente dependente das novas técnicas propiciadas pelos avanços das várias ciências. E, desde então, a competição está encravada no coração da ciência”.
De acordo com Crema, ela atingiu seu grau máximo durante o século passado, quando a Química e a Física, por exemplo, se transformaram quase em máquinas de guerra, para os governos desenvolverem armas de destruição em massa. Dominar o conhecimento científico era dominar o mundo. “Paralelamente, e na base dessas disputas planetárias, as conquistas científicas se ampliaram e permitiram as revoluções tecnológicas que renovavam o sistema capitalista a cada vez que ele estava em crise”, diz. “Para o bem e para o mal. Lembremos que os segredos científicos eram mais bem guardados do que dinheiros e pedras preciosas. E grandes indústrias, como a IBM, por exemplo, começaram a criar seus próprios laboratórios para controlar os seus pesquisadores e manter sigilo das descobertas”.
No meio dessa guerra de gigantes, continua ele, os “ingênuos” cientistas “se iludiam”, pensando que faziam pesquisa pelo prazer do conhecimento, ciência pela ciência. “Quando muito, lançavam cartas de protesto contra a morte de centenas de milhares de pessoas, atingidas pelas suas descobertas”, critica. “Até que o espírito do mercado invadiu de vez as universidades e os órgãos de financiamento de suas pesquisas ‘puras’”.
A partir de então e até hoje, as carreiras, o valor dos salários, as bolsas e os financiamentos de projetos são medidos pela quantidade de trabalhos publicados. “Ou, na linguagem bem na moda, pela inovação e patentes registradas, que podem ser industrializadas e render grandes lucros”, acrescenta Crema. “Os cientistas foram forçados a participar dessa competição feroz para a sua sobrevivência pessoal e a de suas pesquisas. Como em todas as atividades humanas, há sempre aqueles indivíduos de caráter mais frágil, vaidade mais acentuada e ganância exacerbada que podem cruzar a linha da ética científica e forjar resultados”.
O seu colega do IFUSP Airton Deppman também traça um breve panorama histórico sobre a questão, mas separando a pesquisa científica do desenvolvimento tecnológico. “Eu considero a competição pela primazia da descoberta um ingrediente importante na ciência e no desenvolvimento tecnológico atual”, diz. “Mas aqui, gostaria de separar uma do outro. A primeira é afetada em menor grau pela produção de resultados mais imediatos. Na área tecnológica, no entanto, a competição é mais importante para gerar desenvolvimentos quase constantes de novas tecnologias, e claramente ela é maior por patentes do que necessariamente por novos conhecimentos e conceitos abstratos”.
Mantendo a separação, e sem entrar no mérito sobre como ela se dá, Deppman diz que para as ciências a avaliação é um pouco menos clara. Enquanto na tecnologia o primado pela patente assegura um retorno financeiro para o investimento a risco aplicado no desenvolvimento tecnológico, nas primeiras, em especial nas mais puras e básicas, como Física e Matemática, raramente um novo conceito resulta em um produto comercializável. “Por isso a produção de patentes nestes casos é menor e as avaliações de produtividade se dão na base de artigos publicados”, explica. “A ideia de publicar um artigo científico vai na contramão do conceito de patentes e propriedade intelectual, já que o resultado da pesquisa é divulgado sem requisito de royalties, ou algo do gênero”.
Nostalgia
Segundo ele, apesar dessa diferença, existe, no entanto, uma competição pela publicação de artigos, que se dá muitas vezes de forma mais local, interna às instituições, pois esse é um parâmetro usado em promoções dentro dos centros acadêmicos. “Essa pressão por publicações muda a forma como a ciência é feita e divulgada atualmente”, diz Deppman. “Há sempre uma nostalgia pela época em que um cientista podia passar meses, talvez anos, pensando e desenvolvendo suas ideias de forma tranquila, até que finalmente considerasse o trabalho completo e digno de ser publicado. Se tivesse sucesso, o resultado era uma teoria completa, sem necessidades de avanços imediatos. Porém, esquecem-se dos casos de insucesso, quando depois de muito tempo e dinheiro investidos, o próprio pesquisador percebia um erro que anulava todo o trabalho”.
Hoje, o processo é diferente. De acordo com Deppman, um cientista deve publicar suas ideias parciais, que são verificadas pelos seus pares. “Esses não só criticam as ideias, como podem desenvolvê-las em paralelo, aumentando o alcance dos novos conceitos e suas aplicações”, explica. “Uma teoria se completa ao longo de diversos artigos com avanços sequenciais, e muitas vezes em colaborações internacionais”.
O químico Luiz Carlos Dias, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), chama a atenção para outro problema. “Infelizmente, a competição entre pesquisadores, que seria proveitosa se fosse saudável, algumas vezes fere questões éticas”, lamenta. “Somos todos seres humanos, passíveis de erros. Cientistas buscam liderança em determinado tópico ou linha de pesquisa, buscam sucesso e reconhecimento profissional. Isso pode levar pessoas com ética duvidosa a sofrer tentações no sentido de manipular resultados e esquecer o rigor científico na divulgação dos dados do trabalho”.
Além disso, diz Dias, os profissionais na área de ciência e tecnologia são parte de um sistema muito complexo. Há poucas vagas em universidades e instituições de pesquisa brasileiras, que não conseguem incorporar todos os interessados em seguir na carreira acadêmica. A consequência é um número cada vez maior de cientistas competindo por espaço. “Quando somos contratados, se inicia a briga pela busca por recursos para nossos trabalhos, que infelizmente estão cada vez mais escassos, o que leva a um aumento na competitividade”, explica. “Há uma disputa enorme por financiamento e bolsas de pesquisas para nossos alunos, em todos os níveis, desde a iniciação científica”.
Impacto
As consequências dessa competição acirrada não tardaram a aparecer. De acordo com Dias, uma delas é a perda de colaboração efetiva entre profissionais, pelo receio de ser superado por um colega, que poderia publicar resultados relevantes antes, o que lhe tiraria o protagonismo. “Outro problema são as revistas científicas, nas quais nossos trabalhos são publicados”, diz. “O número de publicações vem aumentando muito nos últimos anos, não necessariamente em qualidade, o que levou ao surgimento de diferentes periódicos, de baixo a altíssimo nível. Existe muita competição entre as revistas científicas e para classificá-las foi criado o fator de impacto”.
Dias diz ainda que isso gera distorções e várias estratégias foram sendo criadas por pesquisadores para publicar mais e nos melhores periódicos, nos quais os artigos têm maior visibilidade. “Esses fatores, infelizmente, algumas vezes, comprometem a ética científica e muitos casos de fraude também surgiram, pela pressão por publicar cada vez mais e nas melhores revistas”, explica. “Não existe muito compartilhamento de informações, dados de experimentos nem sempre são descritos com todos os detalhes, para dificultar propositalmente a reprodutibilidade de resultados por outros grupos, não permitindo que possam dar prosseguimento a estudos em naquele assunto”.
A publicação apressada, com resultados incompletos ou mesmo ruins é outra consequência deletéria na competição no meio científico. “A grande pressão que os pesquisadores sofrem para ter uma alta produtividade em relação ao número de publicações faz com que todos queiram publicar mais e mais rápido”, diz Simone, da UFRGS. “Porém, muitas vezes são esquecidos alguns valores e até questões éticas. As publicações frequentemente são feitas de forma incompleta e com resultados duvidosos. Tudo para serem os primeiros da lista de produtividade”.
De acordo com Correa Neto, o resultado paradoxal disso é o gradual estabelecimento de hegemonias e consequentemente ausência de competição. “Isso é péssimo para a ciência, pois não estimula o debate, o desafio e a inovação”, diz. “Além disso, em termos de recursos humanos, talentos e vocações serão desperdiçados, pois poucas pessoas são absorvidas por poucos centros de pesquisa. A renovação e o crescimento dos quadros serão limitados. Consequência: de novo, menos estímulo ao debate, ao desafio e à inovação, coisas que estão no cerne do método científico”.
Há ainda um desestímulo à capilaridade da ciência em termos regionais. O estabelecimento de novos centros e o crescimento dos menos tradicionais ou menores é também desestimulado. “Regiões inteiras ficam sem centros de pesquisa e temas relevantes deixam de ser estudados”, lamenta Correa Neto. “E o ciclo vai se realimentando. Resumindo, deixada descontrolada, a competição pode ter efeitos negativos. Eu diria que até mesmo pode se aproximar do nefasto darwinismo social”.
Evanildo da Silveira é jornalista