Olimpíadas e a pseudociência no esporte

Questão de Fato
27 mai 2021
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Conhaque, vinho, cogumelos alucinógenos e sementes de gergelim eram utilizados como estimulantes por atletas gregos da Antiguidade, na tentativa de melhorar o desempenho. Órgãos de animais e humanos eram ingeridos na esperança de aumentar força, vitalidade e a coragem. Hoje, a ingestão de substâncias que, comprovadamente, melhoram desempenho de atletas é considerada doping pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) e, portanto, ilegal.

Porém, há práticas que prometem melhora de performance que são utilizadas legalmente por diversos atletas: o fato de não terem sido proibidas e classificadas como doping sugere que não existe evidência de que sirvam para alguma coisa, mas isso não detém os entusiastas. De ventosaterapia até o uso pulseiras de equilíbrio, diversas pseudociências estão enraizadas nos esportes de alto desempenho. Vamos ver o que existe de ciência por trás de algumas delas e se faz sentido o COI deixar que sejam utilizadas livremente.

 

Ventosaterapia

Uma prática sem comprovação científica ganhou destaque internacional por conta do nadador americano Michael Phelps. Em diversas provas nas Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, era comum notar hematomas grandes, vermelhos e perfeitamente redondos cobrindo o corpo do atleta. Os hematomas são resquícios da utilização de uma antiga terapia chinesa conhecida como ventosaterapia.

A ventosaterapia funciona aquecendo copos de vidro antes de colocá-los sobre a pele, normalmente na região das costas e ombros. Conforme o copo esfria, a pele da região é sugada para seu interior. Técnicas mais modernas contam com um copo acoplado a uma bomba para criar a sucção, mas os efeitos são os mesmos. Os defensores da terapia acreditam que a ventosa remove substâncias nocivas, toxinas e ainda aumenta o fluxo sanguíneo e do qi (chi). Chi, segundo a medicina alternativa chinesa, é a “energia vital” que circula pelo corpo e pelo mundo ao nosso redor.

Diversos estudos que se propuseram a avaliar a eficácia da terapia, e reportaram sucesso, têm falhas metodológicas graves. Por exemplo, falta de um grupo placebo ou a comparação com um tratamento convencional. O método de avaliação geralmente é uma autodeclaração sobre a intensidade da dor antes e depois do tratamento. Devemos lembrar que uma pessoa que receba qualquer tipo de tratamento tende a reportar algum tipo de melhora subjetiva, seja por efeito placebo ou por querer agradar o pesquisador e colaborar para o desfecho positivo do estudo.

Por fim, os resultados de benefícios trazidos pela ventosaterapia são insignificantes quando comparados a um grupo que não recebeu tratamento algum.

Além disso, a aplicação constante da técnica em uma mesma área pode ocasionar a coagulação do sangue e, em casos mais graves, a necrose da área afetada, como reportado aqui.

Há ainda atletas que unem duas pseudociências para tratar a dor: acupuntura com ventosaterapia. Sim, primeiro aplica-se a agulha em uma região e em seguida, por cima da agulha, coloca-se a ventosa. Já falamos sobre acupuntura aquiaqui e aqui. Spoiler: a prática também não tem evidências de eficácia para tratar as dores musculares de atletas.  

Fitas de kinésio 

Dois acessórios em forma de fitas são tão comuns nos esportes, que é difícil encontrar alguém que não tenha um palpite para o que servem. O problema é que o palpite parece ter vindo de falsos conceitos, repetidos diversas vezes até se enraizarem como supostas verdades.

As fitas de kinésio, com suas cores extravagantes, são aplicadas sobre a pele para, supostamente, melhorar o desempenho além de reduzir lesões, a dor e a rigidez dos músculos. Os estudos que mostram algum benefício das fitas foram conduzidos com um número pequeno de participantes e na ausência de controles adequados, como, por exemplo, um grupo de voluntários que utilize uma fita qualquer, que não a de kinésio. Estudos e análises sistemáticas mais completos, com um número maior de participantes, concluem que há pouca evidência de qualidade para apoiar o uso das fitas de kinésio em relação a outros tipos de bandagem elástica no tratamento ou prevenção de lesões esportivas.

Este é, portanto, um exemplo de marketing de um efeito não específico, que pode ser obtido com produtos mais baratos, como se fosse uma característica especial de um produto caro. Nem mesmo está claro, a partir das evidências existentes, que o efeito das fitas de kinésio, caso exista, é mais positivo ou negativo. Por fim, o tal efeito, se houver, é tão pequeno que fica difícil imaginar que traga algum benefício, principalmente para atletas de alto desempenho.

Ainda no ramo das fitas, temos as tiras de respiração nasal (também conhecidas como tiras dilatadoras nasais) frequentemente utilizadas por ciclistas, jogadores de futebol, corredores de longa distância e, até mesmo, em cavalos de corrida. A alegação do suposto benefício é que as fitas seriam capazes de dilatar as narinas, consequentemente haveria o aumento do fluxo de ar para os pulmões e também da função cardiovascular e, com isso, ocorreria uma melhora no desempenho geral de atletas.

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Embora estudos tenham mostrado que essas tiras aumentem a área da cavidade nasal, este aumento não se traduz em elevação do consumo máximo de oxigênio ou de funções cardiorrespiratórias.  

O que nos leva a crer que ambas as fitas são populares pela falsa sensação de melhora de desempenho e também pelo estilo, a aparência esportista que elas proporcionam aos usuários.

 

Pulseiras de equilíbrio

Uma famosa marca de pulseiras energéticas anuncia o seguinte sobre o seu produto:

“As pulseiras [marca] são infundidas com tecnologia de ressonância de frequência seletiva (SFR), o que as torna diferentes de todas as outras pulseiras do mercado. Um estudo recente concluiu que a tecnologia SFR pode promover equilíbrio, força e resistência

 

Só pelo “tecnologia de ressonância de frequência seletiva” já é possível torcer o nariz para tudo que vem depois. Mesmo assim, um grupo de pesquisadores resolveu avaliar se as pulseiras cumprem o que prometem: equilíbrio, força e resistência.

O trabalho contou com a participação de 24 voluntários (10 homens e 14 mulheres) em um estudo duplo-cego e controlado por placebo. Assim, não haveria variáveis de confusão ou tendências sutis que poderiam distorcer os resultados.

Apesar do número pequeno de participantes, o interessante é que cada um dos voluntários tomou parte em três sessões de tratamento: a primeira com a pulseira comercial supostamente energizada com SFR, a segunda com um bracelete de borracha que funcionou como placebo e uma terceira sessão sem utilizar qualquer pulseira. Se a pulseira mostrasse qualquer vantagem, seria possível perceber pelo menos algum ganho individual. Conclusão? Os resultados indicam que as pulseiras “energizadas” não afetaram a força, flexibilidade ou equilíbrio dos participantes.

Com preços variando de R$ 60 a R$ 200, as empresas que vendem as pulseiras aproveitam de truques simples de física para enganar pessoas, fazendo-as pensar que elas devem pagar esse preço por algo que custa menos de US$ 1 para fabricar. Dá para ver como o truque funciona neste link.

 

Bolsa e banho de gelo

Aplicar uma compressa com gelo é tão comum que até mesmo em casa temos o costume de fazê-lo quando pisamos de mau jeito em algum lugar ,ou batemos com força alguma parte do corpo. No esporte, é tão comum que se tornou praticamente uma cultura. Muitas equipes profissionais têm banhos de gelo em suas instalações de treinamento e os atletas quase sempre recebem uma bolsa de gelo no momento em que ocorre uma lesão. Mais uma vez, no entanto, há poucas evidências para apoiar a prática em casos específicos.

Um artigo de revisão publicado na revista Sports Medicine sugere que, para músculos doloridos, o gelo nem sempre é a panaceia que a maioria de nós acredita e que, em alguns casos, pode ser contraproducente. A revisão é corroborada por um outro estudo no Journal of Strength and Conditioning Research, publicado em 2013, que, em sua conclusão, diz que “o resfriamento tópico, uma intervenção clínica comumente usada, parece não melhorar, mas sim retardar a recuperação de dano muscular induzido por exercícios”.

Assista a quase qualquer jogo de futebol, em qualquer nível, e você provavelmente verá muitos dos jogadores cobrindo partes do corpo com bolsas de gelo durante o intervalo, preparando-se para voltar a jogar.

Um ensaio clínico randomizado, em pequena escala, publicado em 2011 não encontrou nenhum benefício perceptível da aplicação de gelo nas lesões musculares. Os músculos resfriados não cicatrizaram mais rápido, e nem a dor é menor quando comparada à de músculos não tratados. O grande problema dos estudos com o gelo é que é difícil desenhar experimentos mais completos, uma vez que você não pode cegar os participantes: o que seria um placebo para queda de temperatura? As pessoas geralmente conseguem dizer se seus músculos estão ficando frios ou não. Isso é especialmente verdade no banho de gelo, onde o atleta submerge em uma banheira.

Diversos autores escrevem que, na maioria dos estudos que examinaram, o banho de gelo foi bastante eficaz para entorpecer a dor. Mas também reduziu significativamente a força e a potência muscular por até 15 minutos após o término da terapia. Também tendia a diminuir a coordenação motora fina. Alguns dos estudos revisados descobriram que as pessoas tiveram a sensibilidade de membro prejudicada, ou a sensação de o membro submerso estar fora do corpo, após o banho de gelo.

Os voluntários de outro estudo não conseguiam pular tão alto, correr tão rápido, nem arremessar ou golpear uma bola tão bem depois de 20 minutos do banho de gelo. Ou seja, aplicar gelo e depois voltar a praticar qualquer esporte em um curto período, afetará negativamente o desempenho do atleta.

Isso significa que, para a maioria dos atletas, pode haver momentos em que não há problema em tratar com gelo os músculos doloridos – como depois de um treino intenso ou quando sofrem lesões graves – desde que não voltem a fazer exercícios.

 

 

Se funcionar, é doping?  

Mas por que alguns produtos são proibidos e outros não? E se os tratamentos alternativos trazem benefícios para quem utiliza, então não deveriam ser banidos, como se fossem doping?

Bom, os produtos proibidos distinguem-se dos que podem ser utilizados simplesmente porque os primeiros comprovadamente trazem uma vantagem para quem os utiliza. Os produtos liberados e que prometem ganho de desempenho tendem a ser falsos.

Um exemplo recente aconteceu nas provas de velocidade na natação nas Olimpíadas de 2008 com os trajes LZR, conhecidos por simular a pele de tubarões e foram os principais responsáveis por uma onda de quebra de recordes mundiais. No intervalo de dois anos em que os trajes foram aceitos em competições oficiais, centenas de recordes foram quebrados. Resultado: a Federação Internacional de Natação baniu os trajes das competições. Isso porque o traje comprovadamente proporcionava uma vantagem para quem o utilizava, acima e além do preparo físico de cada atleta. As práticas citadas anteriormente não interferem significativamente nos resultados dos atletas ao ponto de preocupar comitês internacionais de esportes. As práticas são vistas mais como um ritual semelhantes aos da Antiguidade, e que não caracterizam trapaças.

A visibilidade dos esportistas de elite que utilizam técnicas pseudocientíficas faz com que muitos atletas de fim de semana presumam que os produtos ou técnicas utilizadas sejam legítimas. Os charlatães contam com esse efeito para encorajar e consolidar seu domínio sobre o consumidor desinformado. É de se esperar que nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 2021, quase 28 séculos depois dos primeiros jogos olímpicos da Grécia Antiga, continuaremos a testemunhar rituais pseudocientíficos em busca da vitória.

 

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia, coordenador de projetos educacionais do Instituto Questão de Ciência e atual diretor nacional do Pint of Science no Brasil

 

REFERÊNCIAS

Tiras nasais: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10949017/

Fitas kinésio: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1836955314000095

Gelo: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/22121908/ , https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/21059665/

Ventosas: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/23057611 , https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/27073404/

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