Ciência nacional: muita publicação, pouca inovação

Questão de Fato
24 mar 2021
cogs

 

O Brasil não faz feio quando o assunto é produção científica. Entre 2006 e 2018, de acordo com dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), o número de artigos de pesquisadores brasileiros, publicados em periódicos científicos indexados pelo Scopus (um dos maiores bancos de dados de resumos e citações de trabalhos com revisão por pares), passou de 32.918 (1,72% do total mundial) para 74.195 (2,63%), o que elevou o país do 15º para 13º lugar no ranking mundial de produção de conhecimento. O problema é que quase nada dessa ciência é transformada em tecnologia, em produto, ou seja, em riqueza e benefícios para a sociedade.

Em períodos semelhantes, de 2007 a 2020, por exemplo, o Brasil caiu da 40ª para 62ª posição no ranking do Índice Global de Inovação, elaborado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (WIPO, na sigla em inglês). “E se considerarmos apenas os países latino-americanos, ficamos em 4º lugar, posição nada louvável em um continente que também não se destaca por inovar”, acrescenta Paulo Roberto Feldmann, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP).

O desenvolvimento de vacinas contra a COVID-19 é um exemplo dessa incapacidade do Brasil de transformar ciência em inovação e produtos. Há pelo menos uma dúzia de estudos ou projetos para criar um imunizante para combater o novo coronavírus, mas dificilmente o país conseguirá viabilizar algum. “Todos ainda estão em fase pré-clínica, mas alguns podem ser promissores, como o que vem sendo feito pelo professor Jorge Kalil, do Instituto do Coração [Incor, da Faculdade de Medicina da USP], instilação nasal”, diz o médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP (FSP-USP) Gonzalo Vecina Neto, fundador e ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Para ele, são promessas interessantes de vacinas e o Brasil tem condições de desenvolver esse tipo de produto. Vecina cita como exemplo o imunizante contra dengue, que é muito mais complexo do que um contra a COVID-19, porque há sorotipos diferentes. “Estamos no final do seu desenvolvimento”, conta. “Ele já está em estudos clínicos de fase 3, com 16 mil pacientes, conduzidos pelo Instituto Butantan”.

O grande problema, segundo Vecina, é que os testes clínicos de fase 1, 2 e 3 são muito caros. “O Butantan está gastando, no caso da vacina da dengue, quase R$ 400 milhões, e só porque está economizando bastante”, explica. “Por isso, tenho grande receio. Nossas pesquisas de imunizantes novos vão morrer na porta dos estudos clínicos. Ou seja, os pré-clínicos terão sido realizados e poderão ter bons resultados, mas os clínicos dificilmente iremos fazer, porque não existe neste momento quem queira ou possa financiá-los. Como o mundo está cheio de vacinas, só se uma das nossas for muito diferente, como a do Incor, poderá inspirar a alguém correr o risco de produzi-la. O Estado não irá fazer esta aposta”.

O químico Luiz Carlos Dias, do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (IQ-Unicamp), também enfrentou essa questão dos custos do desenvolvimento de medicamento. Por encomenda de um laboratório nacional, ele e colegas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desenvolveram um processo rápido e prático para obtenção de estatinas, em especial a atorvastatina cálcica, muito utilizada para redução dos níveis de colesterol no sangue.

O novo processo é mais eficiente e com menor custo, comparado aos empregados atualmente. “Além disso, nós substituímos os solventes tóxicos e inflamáveis por outros provenientes de fontes renováveis, reduzimos o número de etapas de produção, usamos insumos mais baratos e realizamos as reações em condições mais brandas e com menor impacto ambiental, tornando esta rota inédita, curta e atrativa”, conta Dias.

O problema, segundo o pesquisador, é que esse processo implica em novidades. “E as empresas não se interessam por isso, pois apostam nos genéricos, que vêm prontos de Índia e China e são mais baratos”, explica. “Para preparar a atorvastatina no Brasil, mesmo pela rota inédita, teríamos que importar as matérias primas de mercados externos, pois dependemos deles, e os laboratórios consideram o lucro e preferem comprar já pronto”.

 

Políticas equivocadas

Mas os custos da inovação não são o único obstáculo que impede o Brasil de transformar ciência em novos produtos e em riqueza econômica. A administradora Lívia Maria Queiroz Lima, diretora da Divisão de Suporte à Propriedade Intelectual (DIVPI) do Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) da Universidade Federal do Ceará (UFC), lembra da adesão do Brasil ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPs), em 1994, que obriga os signatários a respeitar patentes e a propriedade intelectual de outros países. “A partir de então, as escolhas das nações em desenvolvimento, como a nossa, foram decisivas para o cenário que apontamos hoje, quase 30 anos depois”, diz.

De acordo com ela, como houve endurecimento da proteção dos inventos produzidos em países já desenvolvidos, o Brasil, em vez de se industrializar com o foco nas exportações (como bem fez a Coreia do Sul), investiu na estratégia de substituição de importações. “Com isso, minou todo o potencial criativo da pesquisa e da indústria nacionais, entranhando em nossa cultura a ‘arte de imitar’ ou de incrementar tecnologias já existentes, nos deixando com pouca relevância no desenvolvimento de ideias disruptivas”, explica Lívia.

Como consequência disso, ela diz, as empresas nascidas e desenvolvidas no Brasil passaram a não investir em pesquisa e desenvolvimento (P&D) próprios, não contratando, portanto, pós-graduados para suas equipes técnicas, limitando-se a inovar a partir de transferências tecnológicas de outras companhias internacionais. “Assim, os mestres e doutores acabam estreitando suas oportunidades, limitadas às universidades do país, isto é, ‘nascendo e morrendo’ na e para a Academia, sem melhorar a qualidade da mão de obra nas indústrias”, explica Lívia. “Ou a ir para o exterior, exportando, dessa vez, todo o potencial intelectual fruto de investimento de recursos públicos do nosso país”.

Um dos resultados dessa situação é que no Brasil há mais pesquisadores nas universidades do que nas empresas. “A proporção é de 70 % para 30%”, informa Feldmann. “No mundo é o contrário. Em quase todos os países desenvolvidos, 80% deles estão na iniciativa privada. O que ocorre no nosso país está errado, mas é fruto de não termos grandes companhias locais e, consequentemente, não há investimento em pesquisa. A Embraer é um bom exemplo que fazia isso, mas agora não faz mais, pois deixou de ser brasileira. Ou seja, realiza na matriz, a Boeing, que é dos EUA”.

Feldmann observa ainda que, enquanto a ciência nasce nas universidades, pois são elas que fazem pesquisa básica, a tecnologia é fruto das empresas, que é quem ganha pondo boas ideias cientificas no mercado e se motivam a desenvolver produtos inovadores, justamente para usufruir desses ganhos. “Se verificarmos quem fabricou as vacinas mais importantes, veremos que foram companhias privadas dos países onde elas foram concebidas dentro do laboratório das universidades”, diz. “Isso aconteceu na China, Reino Unido, Alemanha, Rússia, Índia e Estados Unidos”.

De acordo com ele, fabricantes de vacinas são quase sempre grandes empresas e altamente experientes na área farmacêutica.  “Acontece que no Brasil não existe este tipo de companhia, pois acabamos com elas ao longo desses 35 anos de desindustrialização pelo qual estamos passando”, lamenta. “A Fiocruz e o Butantan são uma espécie de engarrafadoras de refrigerantes (sabem colocar o líquido no frasco, mas não fabricam a matéria-prima), que não têm capacidade de fabricação para todos componentes e insumos necessários”.

O economista Antônio Márcio Buainain, do Instituto de Economia, da Unicamp, pensa um pouco diferente. “É bom que o Brasil tenha muitos pesquisadores nas universidades, um número de todo modo menor do que nas dos países líderes em inovação, e nas de ponta em todo o mundo”, explica. “É ruim que tenhamos tão poucos nas empresas. Portanto, minha resposta é que é bom e ruim. Deveríamos ter mais mestres e doutores nas indústrias, mas no contexto atual, o sistema não necessita e nem demanda isto. E acho uma bobagem tentar, de forma artificial, incentivar as companhias a contratar cientistas. Quando elas precisarem, sabem onde encontrá-los”.

Buainain acrescenta que, independentemente do perfil do empresariado brasileiro, é preciso reconhecer que o contexto do país é, ao contrário do que se propaga, de anti-inovação. “Eu tenho muitas críticas à postura de uma parte dos empresários país, mas acho que, na média, são extraordinários, por conseguirem sobreviver em um ambiente tão adverso como o que temos aqui”, diz. “As proteções e benefícios alcançam poucos, em poucos setores. A maioria vive a lei da selva, que é a do mercado, ao mesmo tempo desregulado e ultra regulado. Vive, de um lado, a insegurança política, institucional, econômica, sem contar com fatores externos importantes para ser competitivo, como infraestrutura decente e mão de obra qualificada”.

 

Populismo

Do lado das pesquisas, Buainain diz que é importante indicar que o apoio a elas no Brasil é muito restritivo e se limita, fundamentalmente, à etapa inicial. “Ficamos, no máximo, no P, e assim mesmo com muita limitação; não avançamos para o D, do desenvolvimento, etapa na qual os resultados dos trabalhos científicos se transformam em tecnologia”, explica. “Vamos falar sério: no Brasil a gente brinca de inovação e em geral a política de CT&I tem sido pautada pelo mesmo populismo que caracteriza a maior parte das políticas públicas no Brasil”.

De acordo com ele, salvo raríssimas exceções – “e de imediato só me vem à mente a Fapesp” (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) –, os recursos são fragmentados em muitos projetos e acabam gerando pouco impacto relevante. “Esse populismo tem pelo menos o mérito de manter vivo o sistema, que pode reagir quando é solicitado”, ressalva. “Estamos vivendo isso na pandemia: como um SUS subfinanciado, abandonado, agiganta-se para responder à crise. O mesmo ocorre nas universidades”.

Para Feldmann, também falta ao Brasil uma política de proteção às empresas locais e políticas para formação de grandes conglomerados como na Coreia, Japão ou China. “A quase totalidade das inovações hoje no mundo é gerada em grandes companhias”, explica. “Só elas têm cacife para fazer os investimentos necessários.  Há mais de 30 anos o Brasil resolveu parar de proteger as indústrias locais achando que, se fossem obrigadas a competir com as estrangeiras, iriam se aprimorar. Aconteceu o contrário e elas foram destruídas. Naquela época o Brasil possuía 50 delas na relação das 2000 maiores do mundo. Neste ano, tivemos apenas 18”.

Segundo ele, para mudar esse quadro a primeira coisa é criar proteções e vantagens para a indústria brasileira. “A segunda é permitir que universidades públicas realizem convênios com a iniciativa privada, visando produzir pesquisas e desenvolver inovações tecnológicas”, defende “Hoje, a universidade pública brasileira está proibida de se aproximar das empresas, porque há uma visão obsoleta em boa parte delas de que a iniciativa privada só vai querer direcionar o resultado dos estudos em seu próprio benefício”.

 

Evanildo da Silveira é jornalista 

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