Mega-Sena e as intuições enganosas sobre probabilidade

Questão de Fato
23 dez 2020
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mega-sena

 

Com a chegada do fim do ano temos o tradicional anúncio da Mega-Sena da Virada. A Mega-Sena é um jogo em que podemos apostar de seis a quinze números, escolhidos entre um total de sessenta. Diferente dos concursos regulares dessa loteria, a “Mega da Virada” não acumula o prêmio para o próximo sorteio: necessariamente haverá um ganhador - se ninguém acertar os seis números, reduz-se a quantidade de acertos necessários até que se tenha um ou mais ganhadores.

Este texto, porém, não tem o objetivo de discutir a questão da probabilidade de se tornar milionário. Afinal, no próprio site onde se realiza a aposta é possível ver que a probabilidade de se ganhar fazendo uma única aposta de seis números é em torno de uma chance em cinquenta milhões. O objetivo é discutir de uma maneira mais ampla o conceito de probabilidade, através de alguns exemplos.

Há alguns anos um colega de trabalho me chamou para participar de um bolão para a Mega da Virada. A sugestão era fazer apostas de seis números: cada participante falaria um conjunto de seis números. Confesso que era engraçado ver como as pessoas pensavam para escolher seis números aleatórios. Quando chegou a minha vez de escolher, escolhi os números de um a seis. O olhar de espanto acompanhado de um "é sério isso?" mostrava que probabilidade não era o forte da pessoa.

A falta de habilidade se confirmou alguns minutos depois quando o organizador do bolão retornou com uma tabela e um gráfico mostrando a frequência dos números que haviam saído na história da Mega-Sena e sugerindo que os números com menor frequência teriam uma probabilidade maior de serem sorteados. Em tempo, a probabilidade de acertar qualquer sequência de seis números é exatamente a mesma.

O episódio acima é bastante comum e entra no rol das questões contraintuitivas envolvendo a probabilidade: chama-se falácia do jogador. Considere uma moeda honesta: ao jogá-la para cima, a probabilidade de cair cara ou coroa é 50%. Imagine que, ao jogar a moeda cinco vezes, caiam cinco caras. Pergunta: qual a probabilidade de se obter coroa na próxima jogada? É maior, menor ou igual a 50%? A resposta é: exatamente 50%. Em outras palavras, os lançamentos do passado não influenciam os lançamentos futuros, e a probabilidade não vai mudando a cada jogada.

Considere a seguinte descrição: uma mulher chamada Linda, de 31 anos de idade, solteira, sincera e muito inteligente. Cursou filosofia na universidade. Quando estudante, preocupava-se profundamente com discriminação e justiça social e participou de protestos contra as armas nucleares. Com base nas informações dadas classifique com notas de 1 a 8, sendo a nota 1 para a situação mais provável e 8 para a menos provável (tente fazer o teste antes de ver o resultado):

Linda é professora do ensino fundamental

Linda trabalha numa livraria e faz aulas de yoga

Linda é ativista do movimento feminista

Linda é assistente social psiquiátrica

Linda participa da Liga pelo Voto Feminino

Linda é bancária

Linda é corretora de seguros

Linda é bancária e ativista do movimento feminista

Uma entrevista com um grupo de 88 pessoas retornou o seguinte resultado em ordem decrescente de probabilidade:

2,1 - Linda é ativista do movimento feminista

3,1 - Linda é assistente social psiquiátrica

3,3 - Linda trabalha numa livraria e faz aulas de ioga

4,1 - Linda é bancária e ativista do movimento feminista

5,2 - Linda é professora do ensino fundamental

5,4 - Linda participa da Liga pelo Voto Feminino

6,2 - Linda é bancária

6,4 - Linda é corretora de seguros

Existe algum problema no resultado acima? Se você não conseguiu identificar o problema vamos ressaltar três alternativas:

2,1 Linda participa do movimento feminista

4,1 Linda é bancária e participa do movimento feminista

6,2 Linda é bancária

O problema está na opção "Linda é bancária E participa do movimento feminista" que aparece com uma probabilidade menor do que a opção do lado direito do E (participa do movimento feminista) e maior do que a do lado esquerdo (bancária). A probabilidade de dois eventos ocorrerem simultaneamente (bancária E movimento feminista) nunca pode ser maior do que cada um dos eventos individualmente - se isto não lhe parece trivial, vamos considerar o exemplo a seguir

Você sai na rua e olha para uma pessoa qualquer, qual a probabilidade dela ser uma mulher? Podemos chutar algo como 50% de chance. Ao adicionar características para essa mulher, a chance do encontro diminui, ou seja, a chance de encontrar uma mulher usando chapéu é menor do que 50%. Qual seria a chance de encontrar uma mulher usando chapéu, com tamanco, bermuda, unhas pintadas e andando de monociclo? Com certeza muito menor do que os 50%.

O experimento descrito acima foi publicado originalmente no artigo Extensional versus intuitive reasoning: The conjunction fallacy in probability judgment, de Amos Tversky e Daniel Kahneman, e também aparece no excelente livro O Andar do Bêbado, de Leonard Mlodinow. Outros exemplos parecidos podem ser encontrados no livro Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases, organizado por Daniel Kahneman, Amos Tversky e Paul Slovic. Advogados consideram que as situações descritas com mais detalhes são mais prováveis de terem acontecido se comparadas com situações com menos detalhes. Em medicina, 91% de um grupo de residentes apresentado a uma pessoa com um quadro de embolia pulmonar consideram mais provável que o paciente apresente "paralisia parcial E falta de ar" do que somente paralisia parcial.

Imagine que você participará do seguinte jogo em um programa de televisão: na sua frente são colocadas três portas fechadas, sendo que atrás de uma delas existe um prêmio e atrás das outras duas não existe nada. Você começa o jogo escolhendo uma porta. Em seguida, o apresentador do programa abre uma das outras duas portas, sendo que é sempre revelada uma porta vazia (o apresentador sabe onde se encontra o prêmio). Você agora tem duas portas à sua frente, pergunta: a probabilidade de você ganhar o prêmio é maior se você trocar de porta ou continuar com a porta escolhida inicialmente? Ou será que as probabilidades são iguais a 50% para cada uma das portas? Este jogo, realizado pelo apresentador Monty Hall no programa Let's Make a Deal, nos anos 1970, ficou conhecido como "Problema de Monty Hall".

O problema, porém, não ficou conhecido pelo programa em si, mas pela enxurrada de cartas raivosas que Marylin vos Savant recebeu nos anos 1990 por causa da resposta que deu às perguntas acima na sua coluna "Ask Marilyn" da revista Parade. A resposta de Marilyn foi: "Sim, você deve trocar. Na primeira porta escolhida você tem 1/3 de chance de ganhar e na outra porta você tem 2/3". As cartas enviadas não desmereciam somente a resposta, mas também atacavam Marilyn, muitas com comentários misóginos, dizendo que ela havia errado. De acordo com as cartas, com apenas duas portas havia uma chance em duas de escolher a porta certa. Óbvio ululante.

O fato é que Marilyn estava certa. Quando o apresentador abre a porta vazia, ele adiciona uma informação importante ao problema: ele sabe onde está o prêmio e abre intencionalmente uma porta vazia. A porta aberta pelo apresentador não foi aleatória. Assim, se você trocar de porta, a chance de mudar para a porta certa é de 2/3, já que inicialmente existe 2/3 de chance de ter iniciado com uma porta vazia.

As situações descritas acima mostram apenas alguns exemplos de como podemos nos enganar com questões envolvendo probabilidades. Uma outra situação bastante comum acontece quando duas pessoas descobrem que fazem aniversário no mesmo dia. A coincidência não tem nada de improvável, muito pelo contrário. A probabilidade de duas pessoas fazerem aniversário no mesmo dia em um grupo aleatório de 23 pessoas é um pouco mais de 50%. Essa probabilidade sobe para 97% em um grupo de 50 pessoas.

Voltando à Mega da Virada, este ano resolvi aumentar a minha chance ganhar. Ao jogar  sete números, 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7, eu aumentei em sete vezes a minha chance de ganhar, já que existem sete maneiras diferentes de extrair seis números desse conjunto, se não for levada em consideração a ordem em que a escolha é feita (para a Mega-Sena, não importa se eu peguei o “2” antes do “6”, por exemplo). Na prática, a chance de vencer continua desprezível por causa da probabilidade inicial. Boa sorte a todos!

 

Marcelo Yamashita é doutor em Física, professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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