A nova Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde 11 (CID-11), da Organização Mundial da Saúde (OMS), lançada em 2019 e que entrará em vigor em 2022, lista 55 mil doenças, lesões e causas de morte de seres humanos. Isso coloca nossa espécie como a mais afetada e que mais morre por doenças conhecidas. Isso não significa, no entanto, que os animais vertebrados silvestres também não tenham um grande número delas e não morram em epidemias. Mas eles são menos estudados.
Em relação aos humanos, há muito mais informações. Segundo dados recentes disponíveis da OMS, em 2014 estimava-se que houvesse 39,9 milhões de pessoas com HIV no mundo, com 1,2 milhões de mortes. Em 2015, houve 9,6 milhões de casos de tuberculose, que causaram 1,1 milhão de mortes. Ocorreram ainda 214 milhões de casos de malária, com 438 mil óbitos. Sem contar as mortes causadas por inúmeras outras doenças, como as cardiovasculares, o diabetes e o câncer. Agora, em 2020, a pandemia de COVID-19 atingiu cerca de 38 milhões de pessoas em todo o mundo e levou à morte um milhão delas.
Mas não é de hoje que o ser humano sofre e morre por causa de epidemias e pandemias. É provável que elas tenham surgido e se tornado mais comuns a partir da revolução agrícola, ocorrida há 12.500 anos. Foi quando a Humanidade deixou de viver da caça e da coleta e começou a cultivar a terra, domesticar animais e a se aglomerar em aldeais e, mais tarde, cidades.
Embora existam desde a aurora da civilização, algumas das epidemias mais devastadoras ocorreram já na Era Comum. A maior delas foi a Peste Negra, cujo auge ocorreu entre 1343 e 1353. Estima-se que tenha causada a morte de algo entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas. Mais tarde, em 1918, veio a pandemia de Influenza, conhecida como gripe espanhola, que matou entre 40 milhões e 50 milhões, e agora, neste século 21, a COVID-19.
Para o médico e biólogo Luiz Ricardo Lopes de Simone, do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), certamente o ser humano é a espécie com o maior número de doenças conhecidas. “Entretanto, isso se dá mais pela intensidade de pesquisa sobre nossa espécie do que, necessariamente, ausência de doenças em outras”, explica. “Nem conhecemos todas as que temos no nosso planeta (devemos conhecer, quando muito, metade; e tem gente mais pessimista, falando que não conhecemos nem 10%), muito menos sabemos quais doenças as afligem”.
Segundo o biólogo e doutor em Epidemiologia e Zoologia Wladimir Jimenez Alonso, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), não há a menor dúvida de que os animais têm uma enorme diversidade de doenças também. “Mas nos concentramos no estudo das humanas, por motivos óbvios”, lembra. “Dito isto, há causas de mortes na lista da CID que não esperamos encontrar entre animais, como, por exemplo, embriaguez e acidente de trânsito”.
São causas de morte que dizem respeito a atividades exclusivamente humanas. “Elas incluem entorpecentes, overdoses, guerras armadas, conflitos religiosos, violência urbana, racismo, violência contra mulheres e grupos minoritários e tudo que for, de certa forma, mais ‘puramente social’ que biológico”, explica o doutor em Ecologia, Diogo Loretto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Mesmo assim, podemos argumentar também que viver em sociedade é parte de nossa biologia, então não seria possível fugir disso. No entanto, o Direito nos acha muito diferentes de todo o resto no planeta; o pessoal das ciências sociais também, daí essas distinções”.
No aspecto biológico, a situação é diferente, no entanto. “Não há motivo a priori para acharmos que seríamos mais acometidos por doenças epidêmicas que outras espécies”, diz Loretto. “Ao menos em relação ao surgimento dessas possíveis doenças. Quanto à capacidade de disseminação, a história é outra. Uma vez surgida uma enfermidade, hoje em dia, o que nos diferencia (sociedade urbana contemporânea) das espécies silvestres é a nossa distribuição geográfica (planetária) e nossa capacidade de locomoção”.
Isso porque, acrescenta ele, quando o ser humano vivia em pequenos grupos familiares ou em organizações tribais (como muitos povos tradicionais e indígenas ainda vivem hoje, nas florestas tropicais do mundo, nas savanas africanas, nas ilhas da Polinésia), novas doenças que surgissem tinham pequena chance de se tornarem pandêmicas, porque havia relativamente poucas pessoas. “Nossa distribuição era agregada em pequeníssimos grupos sociais e nossa capacidade de locomoção era muito limitada”, explica Loretto.
Por isso, se eram doenças graves, o máximo que poderia ocorrer seria a extinção local de grupos familiares, sem que as demais populações humanas distribuídas no "vale ao lado", na paisagem adjacente, e demais continentes suspeitassem do que havia ocorrido. “Hoje temos uma mobilidade incrível”, observa Loreto. “Em poucas horas vamos de um continente ao outro e carregamos conosco nossos ‘passageiros’ microscópicos também. As espécies silvestres raramente (talvez apenas em eventos muito particulares de booms populacionais) atingem densidades tão elevadas quanto as atingidas por nós nas nossas metrópoles”.
Essas grandes cidades, por aglomerarem muita gente, com grande capacidade e hábitos de locomoção diária para múltiplas atividades, com pessoas de muitos círculos familiares distintos, são enormes facilitadores para a disseminação de doenças altamente infecciosas, como a COVID-19. “Para espécies silvestres, no entanto, o funcionamento é mais parecido com as nossas populações tradicionais, indígenas isolados e povos insulares de distantes ilhas”, diz Loretto. “Uma doença muito grave matará os que estão muito próximos, sem que dê tempo de se disseminar e virar uma epidemia com grandes proporções dentro da espécie. Nesse caso, a doença ‘se mata’ também ao matar muito rápido seu hospedeiro. O quão isso é frequente nos animais silvestres? Difícil tentar estimar”.
O que se conhece são algumas epidemias, mas sem a mesma dimensão e divulgação das pandemias humanas. Atualmente, por exemplo, um fungo vem dizimando anfíbios pelo mundo todo e um câncer está colocando em risco muitas populações do diabos-da-tasmânia. “Não conseguimos estimativas acuradas da morte de animais por doenças, principalmente quando em vida livre e por problemas de saúde como problemas cardiovasculares e câncer”, diz a bióloga Paula Prist, consultora técnica da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). “Mas sabemos que eles também são acometidos por epidemias que dizimam grande parte de suas populações”.
Ela cita como exemplo o vírus da cinomose, que foi responsável pela extinção do cachorro-do-mato-africano no Parque Nacional de Chobe, em Botswana em 1991, e pela morte de 30% da população de leões do Parque Nacional do Serengueti, em 1994. “O vírus do Oeste do Nilo provoca a morte de centenas de aves no Estados Unidos todos os anos, e no Brasil, temos o exemplo da febre amarela, que levou à morte milhares de macacos bugios na Região Sudeste nos anos de 2017-2019”, acrescenta.
De acordo com Paula, além desses casos, ainda há o ebola, que leva à morte centenas de chimpanzés e gorilas na África, e cujas estimativas indicam que desde o ano 2000 já matou um terço da população de gorilas-do-ocidente. “Portanto, levando em consideração as proporções de perda dessas populações, podemos sim dizer que os animais também têm uma alta proporção de mortes por doenças, apenas não sabemos a real extensão disso”, diz.
Apesar dessa mortandade, pode-se dizer que isso não é a regra. “O que ocorre é que, na natureza, frequentemente não há muita oportunidade para os animais desenvolverem doenças graves, pois qualquer debilidade leva a um maior risco de predação, fracasso na busca de alimento e abrigo”, lembra Alonso. “Como boa parte da população humana tem suas necessidades básicas praticamente garantidas, e possibilidade de cuidados médicos, que possibilitam a sobrevivência mesmo na presença de co-morbidades, as doenças acabam adquirindo uma maior importância em nossas vidas”.
Mas o ser humano tem uma vantagem para lidar com elas, a inteligência, sua capacidade de gerar, adquirir e transmitir conhecimento. “Somos a espécie mais forte do planeta por causa da ciência, tecnologia e organização social que adquirimos durante evolução”, explica o psicólogo e doutor em Saúde Pública Emil Kupek, do Centro de Ciências de Saúde da UFSC. “Como espécie, criamos uma dependência destes fatores e seríamos mais frágeis às doenças sem eles do que os animais que nunca os tiveram. Estender os benefícios decorrentes destes fatores a toda população humana, sem desequilibrar a relação com as demais espécies, é um grande desafio histórico. Espero que sejamos sábios o suficiente para vencê-lo”.
De acordo com Alonso, por sua vez, poucos seres humanos teriam a capacidade de sobreviver por muito tempo em alguns ambientes naturais sem apoio do resto da sociedade e da tecnologia e conhecimento adquiridos até agora (roupas, alimentos, medicina). “Mas, dentro da nossa sociedade, cada um de nós tem uma expectativa de vida inimaginável em relação a nossos antepassados”, diz. “O ser humano é possivelmente a espécie com maior capacidade de adaptação a condições diversas e adversas. Com tecnologia, transmissão de conhecimento, e cooperação podemos viver hoje em lugares e condições extremamente adversos à nossa fisiologia”.
Evanildo da Silveira é jornalista