Os caminhos que levam às vacinas contra COVID-19

Questão de Fato
2 jun 2020
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O caminho da vacina para COVID-19 é longo e cheio de incertezas. Será que trará imunidade? Por quanto tempo? Que tipo de vacina será o mais promissor?

O que sabemos é que, historicamente, vacinas têm sido a melhor solução para doenças causadas por vírus.

Isso porque é complicado fazer um antiviral genérico, da mesma maneira como temos antibióticos de amplo espectro para bactérias. Vírus são parasitas intracelulares, que usam a maquinaria da célula hospedeira para se multiplicar. Assim, temos que tomar muito cuidado quando desenvolvemos medicamentos antivirais, para que não ataquem nossas próprias células.

Bactérias, por outro lado, são independentes, replicam-se por conta própria e têm estruturas particulares, ausentes em células humanas. Essas estruturas são ótimos alvos para antibióticos.

Também por essas diferenças, as respostas imunes para vírus e bactérias são diferentes. Como os vírus ficam dentro das células, o alarme do sistema imune é dado de dentro pra fora. Partes do vírus são expostas na membrana celular, como se a células estivessem colocando o vírus na janela, para o sistema imune ver. Isso leva células “assassinas” para o local, que eliminam as células infectadas.

Quando os vírus estão fora das células, ou quando são apresentados em células especiais do sistema imune, chamadas “apresentadoras de antígeno”, entra em ação também uma resposta de anticorpos. Bactérias, que não invadem células, costumam ativar muito mais anticorpos. Essas respostas, celular e de anticorpos, estão interligadas.

Vacinas exploram a chamada resposta imune adaptativa, que é específica para cada invasor individual, e gera memória, isto é, deixa o sistema imune preparado para encarar um retorno de vírus ou bactérias que já foram enfrentados antes. Essa resposta envolve tanto ação celular, como a das células “assassinas”, quanto a de anticorpos.

Uma vacina para vírus deve buscar uma boa resposta tanto de anticorpos, como celular.

Estudos recentes publicados nas revistas Science e Cell mostram que o SARS-CoV2 parece se comportar como um vírus padrão, provocando resposta imune de anticorpos e celular tanto em animais como em humanos. Isso é uma boa notícia para vacinas.

 

Tipos de vacina

 

Vacinas à moda antiga

Esse tipo de vacina usa os vírus inteiros, atenuados (enfraquecidos) ou inativados. Vírus atenuados são obtidos por cultivos sucessivos em linhagens celulares, até que se chegue a uma variante incapaz de causar doença. As vacinas de caxumba, sarampo, rubéola, catapora e rotavírus são feitas assim. A vacina da pólio do tipo Sabin também é atenuada. Já o tipo Salk é de vírus inativado. Para inativar um vírus podemos usar calor ou agentes químicos. Um exemplo é a vacina sazonal de influenza.

Trabalhar com vacinas à moda antiga tem a vantagem de ser um processo conhecido, e que sabemos que funciona, mas é também o que envolve maior custo e esforço de logística, porque precisamos cultivar o vírus em grande escala, precisamos de laboratórios especializados, de segurança, e a produção não é tão eficiente em termos de doses por litro. No caso do SARS-CoV2, estamos falando de cultivar em larga escala um vírus respiratório altamente contagioso, com evidências de contágio por perdigotos e aerossol.

A empresa chinesa Sinovac está desenvolvendo uma vacina de vírus inativado para COVID-19, e já realiza testes em humanos, tendo mostrado bons resultados em camundongos e macacos, com boa quantidade de anticorpos neutralizantes – que realmente impedem a entrada do vírus nas células – e proteção total ou parcial após a exposição deliberada do animal ao vírus – o que chamamos de “desafio”.

 

Vacinas moleculares

Consistem em usar uma sequência genética do vírus que codifique para uma proteína especifica, característica do vírus, que será reconhecida pelo sistema imune. A ideia é que esse material genético chegue à célula humana e aproveite a maquinaria celular para produzir a proteína, que será apresentada para o sistema imune.

A vantagem é que o vírus não está lá, apenas uma sequência de seu material genético. Isso torna a vacina extremamente segura, e fácil de fabricar, pois não é necessário cultivar o vírus. Estas vacinas podem ser de dois tipos: de DNA ou RNA

 

Vacinas de DNA

Por ser uma tecnologia muito nova, ainda não existem vacinas de DNA no mercado. A ideia básica é clonar uma sequência de DNA em um vetor e inseri-la na célula humana. Isso geralmente é feito por um processo chamado eletroporação, que produz pequenos furos na membrana celular, facilitando a entrada do DNA. A empresa Inovio está desenvolvendo uma vacina de DNA para COVID-19 e, aqui no Brasil, o Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), também.

A Inovio publicou bons resultados na revista Nature, e já está na fase I de testes em humanos. A fase I é quando testamos a segurança da vacina em um número pequeno de voluntários. Outra boa noticia são os bons resultados de vacinas de DNA em macacos, apresentados em artigo publicado na revista Science.

 

Vacinas de RNA

Assim como a de DNA, esta vacina utiliza uma sequência genética, só que de mRNA (RNA mensageiro). A ideia é a mesma, levar a molécula para dentro da célula hospedeira, onde ela será usada para produzir uma proteína do vírus. A vantagem é que a molécula de RNA é ainda mais fácil de produzir do que a de DNA, e também é versátil, ou seja, uma vez que a tecnologia está pronta e testada, é fácil adaptar a estratégia para novos vírus. Isso possibilita uma reposta rápida para futuras epidemias. Ainda não existe nenhuma vacina de RNA no mercado.

A empresa Moderna, nos EUA, está trabalhando nisso, e anunciou bons resultados preliminares em comunicado de imprensa – oito voluntários apresentaram boa resposta de anticorpos -, mas ainda não publicou nenhum trabalho revisado por pares. No entanto, as ações da bolsa subiram, e muitos funcionários da empresa venderam suas ações logo após o comunicado, o que gerou suspeitas. No Brasil, uma vacina de mRNa está sendo desenvolvida no ICB-USP.

A maior vantagem desta tecnologia é a rapidez e versatilidade de produção, o que torna essa estratégia vacinal facilmente escalável para uma produção em massa. A desvantagem é que é uma técnica completamente nova, e a própria Moderna já relatou efeitos adversos em voluntários.

 

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Vacinas de vetores – adenovírus

Estas vacinas usam um outro vírus como vetor para carregar uma sequência de DNA do vírus desejado, e enganar o sistema imune. É como se estivéssemos fantasiando o adenovírus, que só causa um resfriado comum, de SARS-CoV2. O sistema imune reconhece as proteínas do SARS-CoV2 e reage de acordo, gerando memória imune. Também são vacinas muito versáteis, porque uma vez que o vetor de adenovírus está pronto, testado e aprovado, basta trocar a sequência genética, e temos uma nova vacina para um novo vírus.

A vacina da Universidade de Oxford, na Inglaterra, usa essa estratégia e é uma das mais adiantadas, já em testes com humanos. Também demonstrou bons resultados em macacos, com boa produção de anticorpos. Ela protegeu os animais após o desafio, mas não totalmente: eles não desenvolveram doença, mas encontrou-se vírus no nariz dos animais, mostrando que a proteção pode não ter sido total.

Ainda assim, se a vacina for segura e eficaz em transformar a COVID-19 em um resfriadinho, já é vantagem. Além disso, a viabilidade dos vírus no nariz não foi testada, então pode ser que nem sejam infecciosos.

A empresa Jonhson & Jonhson também está desenvolvendo uma vacina de adenovírus. A companhia chinesa CanSino publicou recentemente os resultados de testes com humanos de sua vacina de adenovírus. Diferentemente da vacina de Oxford, a CanSino usou um adenovírus humano, e alguns voluntários já apresentavam anticorpos contra o adenovírus, que causa resfriado comum. Essa reação cruzada atrapalhou a produção de anticorpos contra o SARS-CoV2.

 

Vacinas de proteínas e VLP ("Virus Like Particles")

Essa estratégia baseia-se na produção de proteínas virais, usando diversos tipos de vetores, que podem ser outro vírus, como vírus de insetos, ou até plantas. A ideia aqui é utilizar proteínas purificadas do vírus, que serão reconhecidas pelo sistema imune.  A vantagem, assim como as vacinas moleculares, é não haver necessidade de trabalhar diretamente com o vírus. A desvantagem é que a produção em larga escala pode ser demorada. As empresas Sanofi e Novavax estão investindo nessa categoria.

A Novavax está utilizando nanopartículas carregando proteínas virais, o que as torna mais parecidas com um vírus de verdade, e mais capazes de induzir imunidade. O time do ICB-USP aposta na mesma estratégia, e o time do Incor utiliza a tecnologia de VLPs, que na prática são partículas virais “vazias”, como se fosse só a “casca” do vírus. Já a empresa canadense Medicago apostou na produção de proteínas do vírus em plantas de tabaco transgênicas. A empresa anunciou resultados preliminares positivos de anticorpos em camundongos, e pretende iniciar a fase I em humanos.

 

Quem chega primeiro?

 

A questão da “corrida” pela vacina não é uma busca pelo primeiro lugar. A primeira vacina não será necessariamente – e nem provavelmente – a melhor. A vantagem de ter tantos grupos e tantas estratégias diferentes sendo testadas é imaginar que pelo menos uma ou duas funcionem de fato. Temos que lembrar que estamos falando de vacinar 7 bilhões de pessoas. Isso não será feito com um única formulação vacinal.

Pode ser que a primeira vacina a ser liberada não apresente uma proteção muito alta, ou não sirva para idosos. Pode ser que não seja esterilizante, isto é, ainda permita que as pessoas ainda transmitam o vírus. Mesmo que ofereça proteção parcial, ou que permita uma doença mais amena, uma vacina será útil e possibilitará uma boa flexibilização da quarentena e de medidas preventivas até que uma vacina mais robusta seja desenvolvida.

Outro fator a ser considerado é a capacidade de produção. Isso também requer diferente grupos e estratégias. Nem todo país terá condições de produzir todos os tipos de vacinas, ou mesmo de importar, transportar, armazenar e distribuir. Uma vacina de mucosa, por spray nasal, por exemplo, é mais interessante do que uma vacina injetável, tanto do ponto de vista econômico como de logística. Uma vacina de dose única certamente é melhor do que uma de doses múltiplas, desde que a proteção seja similar. Assim, diferentes variáveis terão que ser levadas em conta, dentro de diferentes contextos.

Não estamos falando de uma vacina. Estamos falando de várias. E mais do que isso, estamos falando em mudar para sempre nossas estratégias vacinais, pois fica claro agora que precisamos desenvolver vacinas rápidas e versáteis, se queremos estar preparados para novos vírus emergentes, que certamente virão.

 

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, presidente do Instituto Questão de Ciência e coautora do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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