Victoria Grey tem 34 anos, é de Forest, Missouri, e a primeira pessoa identifica a se submeter a uma das terapias mais aguardadas da década, baseada no uso de CRISPR-cas9, a ferramenta de edição de genoma. Um brasileiro ou brasileira poderá passar pelo mesmo tratamento, aqui mesmo, já no ano que vem ou no máximo até 2023, se tudo der certo com as pesquisas que estão sendo feitas no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Victoria sofre de anemia falciforme, uma doença hereditária provocada por uma mutação genética que altera a forma da hemoglobina, a proteína que contém íons de ferro e faz o transporte de oxigênio no sangue. Por causa dessa mutação, os glóbulos vermelhos de Victoria não são redondinhos, mas têm a forma de foice, o que causa crises de dor, que aumentam com a idade, além da obstrução de vasos capilares, o que pode causar isquemia, dor e necrose de órgãos, anemia, derrames e eleva o risco de infecções bacterianas. A doença é tratada com analgésicos e transfusões de sangue. Transplantes de medula só funcionam em 10% dos casos.
Nos países desenvolvidos, portadores de anemia falciforme têm uma expectativa de vida que varia entre 40 e 60 anos, mas 80% dos 4,4 milhões de pessoas que sofrem da doença estão na África Subsaariana, onde provavelmente a mutação se manteve por oferecer proteção contra a malária: pessoas que têm apenas um alelo mutante do gene que causa a anemia falciforme não sofrem os efeitos deletérios da mutação e contam com uma proteção extra contra o Plasmodium falciparum, parasita causador da malária.
Cerca de 43 milhões de pessoas são portadoras da mutação, a maioria, descentes de africanos como Victoria.
“Eu sempre tive esperança de que alguma coisa fosse aparecer. É impressionante o ponto em que as coisas chegaram, é simplesmente maravilhoso”, disse ela no Sarah Cannon Research Institute em Nashville, Tennessee, onde recebeu milhões de células modificadas por Crispr-cas9.
“É excitante saber que estamos no limiar de uma terapia efetiva para a anemia falciforme, porque os pacientes esperam por algo assim há muito tempo”, afirma David Atschuler, vice-presidente executivo da Vertex Pharmaceutical, de Boston, que realiza a pesquisa em parceria com a CRISPR Therapeutics, de Cambridge, também em Massachusetts. Altschuler é endocrimolosta e geneticista e, antes de assumir a Vertex, foi professor do Departamento de Biologia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e de Genética Humana na Harvard Medical School. Vão ser anos de acompanhamento para verificar se a nova terapia é eficaz e tem efeito permanente.
Grosso modo, na verdade grossíssimo modo, o CRISPR-cas9 está para o DNA assim como as ferramentas Localizar/Substituir estão para a edição de textos no Windows. O CRISPR localiza e corta a “palavra com grafia errada” no texto e a cas-9 coloca a palavra correta no lugar.
É a mesma ferramenta usada no ao passado pelo chinês He Jiankui, da Spithern University of Science and Technology, de Shenzen, para alterar o genoma de embriões humanos e remover um gene, o CCR5, o que daria às meninas gêmeas nascidas do experimento resistência ao HIV, cólera e varíola. Os casos da China e dos Estados Unidos, porém, têm duas diferenças importantíssimas. A primeira é que a suposta alteração chinesa (não há publicação científica comprovando a “experiência”) foi feita em embriões, o que significa que todas as células das gêmeas carregam a alteração, inclusive suas células germinativas, o que quer dizer que a edição será transmitida a seus descendentes, enquanto a de Victoria afeta apenas seus glóbulos vermelhos. A segunda é que a provável alteração nas bebês chinesas teoricamente lhes confere uma vantagem, enquanto a de Victoria tenta curar a forma grave de uma doença.
No caso de Victoria, as células-tronco eritropoiéticas – isto é, que dão origem aos glóbulos vermelhos – foram extraídas da medula e a sequência de DNA responsável pela forma anormal da hemoglobina foi localizada, retirada e substituída pela sequência normal. Em seguida, essas células foram injetadas de volta. A expectativa é que essas células geneticamente modificadas “peguem” e, daqui para a frente, passem a produzir glóbulos vermelhos normais. É o mesmo procedimento que deve ser feito no Brasil no ano que vem.
A pesquisa brasileira, focada no desenvolvimento de novas tecnologias, faz parte do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proad-SUS), que é financiado com recursos de isenção fiscal concedida a hospitais filantrópicos de excelência, como é o caso do Einstein. “A anemia falciforme é uma dessas doenças negligenciadas, que atinge uma população muito específica, a ponto de não termos dados precisos sobre a população brasileira, mas as estimativas falam em cerca de 10 mil pacientes graves, que poderiam se beneficiar desse novo tratamento”, afirma Luiz Vicente Rizo, superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein e responsável pelo trabalho.
A pesquisa é uma parceria com a Stanford University, com apoio do laboratório de Matthew Porteus, que está voltado para o desenvolvimento de doenças sanguíneas monogênicas – isto é, resultantes de uma única mutação genética – como a anemia falciforme, talassemia, hemofilia e imunodeficiência combinada severa (SCID), também conhecida como a “doença do menino da bolha de plástico”. “Temos dois pesquisadores passando uma temporada em Stanford”, conta Rizo.
“Se tudo der certo e se tivermos sorte, poderemos começar os testes clínicos o ano que vem, no mais tardar em 2023,” diz o pesquisador. Sorte? “Toda pesquisa precisa de uma boa dose de sorte para dar certo, especialmente no Brasil, que não facilita a pesquisa, mas complica. Todos os reagentes são importados, por exemplo, e isso significa que os americanos usam material fresquíssimo, mas o nosso tem pelo menos 48 horas, o que pode fazer diferença. Além disso, enfrentamos uma burocracia enorme para importação de células”, explica.
Segundo Rizo, trabalhar com terapia gênica para tratamento de anemias tem algumas vantagens. “Em primeiro lugar, trata-se de alterar o gene da hemoglobina, proteína que só está presente nos glóbulos vermelhos. Em segundo lugar, essas doenças são causadas por um único gene. Além disso, como se trata de reintroduzir células do próprio paciente em seu organismo, não é necessário eliminar toda medula como se faz nos transplantes de medula,” aponta.
Agora é ficar na torcida, tanto para que Victoria se recupere, como para que a equipe brasileira tenha sorte e recursos para avançar com sua pesquisa.
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros