Um “número de tortura” é uma performance circense em que o ator parece suportar algum tipo de agressão física sem sofrer dano ou demonstrar dor ou desconforto. A categoria inclui engolidores de fogo, engolidores de espadas, faquires que se deitam em camas de pregos, gurus que se deixam perfurar por agulhas nos braços, no pescoço ou caminham sobre brasas.
Outro tipo de número de tortura é aquele em que o performer executa suas manobras insalubres no corpo de outra pessoa, que pode ser um parceiro treinado ou um pobre voluntário desavisado. Nesses casos incluem-se as chamadas “cirurgias espirituais”, o ato de deslizar uma lâmina de encontro ao globo ocular e os cursos de autoajuda que culminam com os discípulos caminhando sobre um leito de brasas.
Algumas dessas apresentações se valem de falsificações e de técnicas de palco para distrair o público e desviar sua atenção. As cirurgias ditas “espirituais”, em que tripas e miúdos de animais são apresentados como se fossem material extraído do corpo do paciente, são feitas dessa maneira. No entanto, muitos efeitos simplesmente se baseiam em princípios pouco conhecidos da física ou da anatomia humana. O importante é perceber que todas se baseiam em algum truque, seja um princípio científico obscuro ou uma enganação.
Deitar-se num leito de pregos, por exemplo, é possível graças ao número das pontas e ao espaçamento entre elas: se houver uma área de contato grande o suficiente entre os pregos e o corpo, as pontas são capazes de sustentar o peso do artista sem penetrar a pele. Uma cama com apenas um prego seria uma ameaça muito maior que uma com centenas, ou milhares.
Já caminhar sobre brasas é um feito que explora a baixa condutividade térmica de certos tipos de madeira, das cinzas e da pele humana. O termo "condutividade" se refere à tendência, maior ou menor, que um material tem de transmitir calor: carvão ou madeira em brasa transferem calor muito devagar; por isso são bons para assados, não para frituras.
O exemplo mais comum da importância das diferenças de condutividade térmica é o interior de um forno de cozinha, enquanto se assa um peru: embora, lá dentro, o ar, o peru e a travessa de metal (que contém a ave) estejam todos na mesma temperatura, é seguro esticar a mão e deixar a pele em contato com o ar quente por alguns segundos; é até seguro tocar rapidamente o peru. Mas não é seguro encostar na a travessa: a condutividade do metal é muito maior que a do ar, ou da carne.
Como a condutividade das brasas é baixa – e a das cinzas, menor ainda: muitas “passarelas de brasas” são remexidas com rastelos, de modo que uma camada de cinzas fique na superfície –, é razoavelmente seguro caminhar sobre elas, desde que numa velocidade adequada, para que a sola dos pés não fique muito tempo em contato com a madeira quente. Ainda assim, há o risco de labaredas irromperem inesperadamente, e de pequenos fragmentos de brasa ficarem presos entre os dedos, causando queimaduras graves.
A história do ilusionismo está repleta de casos de mágicos profissionais que se revoltam e denunciam o uso dessas técnicas por pessoas que tentam reivindicar poderes sobrenaturais. Um mágico profissional utiliza esses truques apenas para entretenimento.
Harry Houdini (1874-1926) não só evitou que a revista Scientific American passasse vergonha reconhecendo a “legitimidade” da falsa médium Mina Crandon (1888-1941), como produziu um livro revelando os truques usados por engolidores de fogo e de espadas, entre outros. Décadas atrás, James Randi dedicou-se a expor os truques do suposto paranormal israelense Uri Geller.
Randi também já demonstrou como é possível, com algum treino, inserir uma lâmina entre olho e pálpebra sem causar dor ou ferimentos. Para isso, é essencial que se evite o contato do objeto com a córnea, que é extremamente sensível. Ele produziu um ensaio analisando os “milagres” de João de Deus, publicado no livro Paranormal Claims: A Critical Analysis.
Há alguns anos, o ex-mágico e investigador americano Joe Nickell publicou o livro Secrets of the Sideshows. Esses “sideshows” eram espetáculos circenses de mau gosto, populares nos Estados Unidos, onde se apresentavam supostas “aberrações humanas” e se executavam feitos supostamente “sobrenaturais”.
Há toda uma seção do livro de Nickell dedicada a “human pincushions” (“almofadas de alfinete humanas”) e “blockheads” (pessoas que martelam pregos na própria cabeça, narina adentro, exatamente como na manobra que João de Deus faz com um fórceps).
Os “almofadas de alfinete” são pessoas que espantam a audiência enfiando agulhas nas bochechas, nos braços, na pele do pescoço e em outras partes do corpo. Esse número é facilitado pela da localização de áreas da pele onde há pouca vascularização e sensibilidade à dor, como a parte interna dos antebraços ou os ombros. Mas depende, mais crucialmente, de uma boa dose de sangue-frio e de um estoque de agulhas sempre muito bem esterilizadas. O recorde mundial de perfurações no corpo foi obtido em 2003 pelo canadense Brent Moffatt, que inseriu 702 agulhas em si mesmo, ao longo de oito horas.
Já a introdução de pregos ou outros objetos alongados narinas acima é, segundo Nickell, “um dos números menos torturantes” da categoria.
O autor cita um panfleto de seis páginas, com instruções de truques de circo, que descreve o método e o fato anatômico que o torna possível: “o buraco no seu nariz não sobe entre os olhos, como a maioria das pessoas acredita, mas passa por cima do céu da boca e vai até o fundo da garganta”. É nesta cavidade, “surpreendentemente longa”, que o prego (ou fórceps) se aloja – se o ângulo da cabeça estiver bem ajustado e a manobra for realizada corretamente.
Há quem diga que esses truques todos não servem de argumento contra a existência de fenômenos fantásticos reais – por exemplo, haver milhares de cópias e reproduções da Mona Lisa não anula o fato de que o quadro verdadeiro existe, guardado no Louvre.
Levando a metáfora artística mais a sério, no entanto, é preciso notar que, primeiro, é sempre possível distinguir o produto real da cópia – mesmo que seja preciso chamar um especialista para fazê-lo; segundo, a existência da obra de arte original é um dado da realidade, muito bem estabelecido. Quando se fala em poderes fantásticos, porém, não só as cópias são exatamente idênticas aos supostos originais, como a mera suposição da existência de “originais” é muito mais uma questão de fé do que de fato.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência