O boato, desmentido já diversas vezes, existe sob várias formas, e circula há mais de uma década: a água aquecida em fornos de micro-ondas torna-se inadequada para regar plantas ou para consumo humano. A versão mais recente vem sob a forma de vídeo, compartilhado via WhatsApp, cita um experimento em que plantas regadas com água que passou por um desses fornos morrem, em vez de crescer e brotar. Tudo bobagem.
O Snopes, um dos mais tradicionais sites internacionais de checagem de boatos, registra um e-mail com a história das “plantas mortas por água de micro-ondas” em circulação desde 2006. O e-mail alega ainda que as micro-ondas “corrompem o DNA” dos alimentos. Como água não tem DNA, a “denúncia” como um todo fica meio sem sentido.
O Snopes classifica as afirmações e alertas sobre riscos à saúde trazidos pelo consumo de produtos aquecidos em micro-ondas como infundadas e falsas, assim como os serviços brasileiros e-Farsas (que tratou do assunto em 2013) e Boatos.org (que cobriu o caso neste ano).
Além disso, o divulgador de ciência Tulio Baars publicou, e, 2014, os resultados de um experimento em que fez crescer plantas regadas com águas de “diferentes tipos”, e não detectou prejuízo nenhum causado pelo líquido que havia passado por um micro-ondas.
Fornos de micro-ondas emitem, como o nome diz, micro-ondas – radiação eletromagnética com mais energia do que as ondas de rádio, mas menos do que a radiação infravermelha e, por tabela, a luz visível ou as radiações ionizantes, como raios-X. Essas ondas aquecem alimentos porque põem em movimento moléculas chamadas polares, que têm uma propriedade eletromagnética especial.
A água, presente na maioria dos produtos alimentícios, é uma molécula polar. As micro-ondas não afetam a composição dessas moléculas: apenas fazem com que se movam, gerando calor. No entanto, um vídeo alarmista recente se refere aos alimentos aquecidos em micro-ondas como “comida morta (...) totalmente sem vida”. São alegações que remetem à velha filosofia do vitalismo.
“Vitalismo” é a hipótese ou doutrina de que os fenômenos ligados à vida e à saúde são causados e conduzidos por uma forma de “energia vital” – uma vibração sutil presente em todos os seres vivos e, em menor escala, em substâncias inanimadas como água ou certas rochas.
Por exemplo: para o vitalista, a absorção dos nutrientes presentes na comida é apenas parte da história da nutrição. Tão importante – ou mais – que proteínas ou vitaminas é a “energia” do alimento (e por “energia” ele não está se referindo à energia química dos açúcares e gorduras, mas a uma “vibração sutil” indefinida).
O mesmo raciocínio vale para doenças: vírus, bactérias ou agentes tóxicos nos afetam não necessariamente por causa de suas interações bioquímicas com o organismo humano, mas pelas “vibrações negativas” que carregam.
Em termos de história da ciência, o vitalismo foi superado como hipótese viável em algum momento entre os séculos 19 e 20, e isso graças a uma série de avanços na química orgânica, bioquímica, da comprovação da teoria dos germes e da existência de micro-organismos.
Nos últimos 100 anos, essa perspectiva não mudou, muito pelo contrário: tanto a biologia molecular quanto a microbiologia mostram que os fenômenos peculiares dos seres vivos são materiais e físicos, e independem de “energias” ou “vibrações” externas a essa realidade.
Como metáfora, no entanto, o vitalismo segue tendo sua utilidade – como quando dizemos que “esta discussão acabou com a minha energia” – e, como noção intuitiva, oferece algum verniz de plausibilidade a terapias cientificamente desacreditadas, como reiki e homeopatia, e também a boatos como o dos fornos micro-ondas.
A ideia de que as ondas, de alguma forma destroem a “vida”, ou a capacidade de sustentar vida, da água e dos alimentos, mesmo sem causar nenhuma mudança físico-química relevante, é um resquício da intuição vitalista, assim como a ideia de que alimentos orgânicos têm uma “vibração” diferente dos demais, por exemplo.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da revista Questão de Ciência