Para que serve a reflexologia?

Questionador questionado
14 nov 2023
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Reflexologia, um tipo de massagem para os pés que está incluído no rol das 29 Práticas Integrativas e Complementares (PICs) oferecidas pelo Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), talvez seja uma das mais “inocentes” das terapias sem validação científica bancadas com dinheiro público no país. Em sua enciclopédia de tratamentos alternativos, o médico e pesquisador Edzard Ernst marca a reflexologia como “segura” e classifica a relação geral risco-benefício da prática com um “alerta amarelo” (acupuntura e homeopatia, em comparação, recebem “alerta vermelho”). Uma boa massagem nos pés, afinal, pode ser relaxante e reconfortante.

Um problema é que produzir apenas relaxamento e conforto não são exatamente missões do SUS (vinho e música também podem ter esse efeito, mas ninguém defende distribuir garrafas de merlot ou contas do Spotify nos postos de saúde), e outro, mais grave, é que tanto a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) quanto os promotores da reflexologia prometem muito mais do que isso quando se põem a explicar e defender a prática – sendo que não existe nenhuma evidência de boa qualidade que esse “muito mais” seja real.

A teoria por trás da reflexologia postula que meridianos de “energia vital” conectam os órgãos do corpo à sola dos pés. Portanto, a massagem aplicada a pontos definidos dos pés (e, em algumas interpretações da prática, também das mãos e orelhas) seria capaz de afetar o funcionamento desses órgãos. É daí, inclusive, que vem o nome da terapia (que trataria do “reflexo” do interior do corpo em suas extremidades). A reflexologia é mais um tipo de filosofia “homuncular”, que vê uma miniatura do ser humano (um “homenzinho”) projetada em partes do corpo, como a iridologia ou a auriculoterapia – também práticas pseudocientíficas.

Dada essa base teórica, a reflexologia não se propõe apenas a oferecer ao paciente alguns minutos de massagem agradável, mas a interferir no funcionamento de órgãos e sistemas fisiológicos. A descrição encontrada no site do Ministério da Saúde diz o seguinte (itálicos meus):

Prática terapêutica que utiliza estímulos em áreas reflexas – os microssistemas e pontos reflexos do corpo existentes nos pés, mãos e orelhas – para auxiliar na eliminação de toxinas, na sedação da dor e no relaxamento. Parte do princípio que o corpo se encontra atravessado por meridianos que o dividem em diferentes regiões, as quais têm o seu reflexo, principalmente nos pés ou nas mãos, e permitem, quando massageados, a reativação da homeostase e do equilíbrio nas regiões com algum tipo de bloqueio. Também recebe as denominações de reflexologia ou terapia reflexa por trabalhar com os microssistemas, áreas específicas do corpo (pés, mãos, orelhas) que se conectam energeticamente e representam o organismo em sua totalidade.

Toda a conversa sobre “meridianos”, “reflexos”, “bloqueio” e “energia” é pseudocientífica e deriva de um modelo vitalista do organismo humano que não encontra lugar na biologia ou na medicina modernas, tendo sido ultrapassado e deixado de lado por descobertas realizadas nos últimos 200 anos. Mais preocupante, a linguagem sobre “eliminação de toxinas” e “equilíbrio nas regiões com algum tipo de bloqueio” abre espaço para a aplicação da reflexologia no tratamento de condições que podem requerer intervenção médica real.

De um ponto de vista mais amplo, a mera insinuação de que condições reais – de depressão a câncer, passando por doenças infecciosas – podem ser causadas por “bloqueios energéticos” imaginários deseduca o público, contradiz séculos de avanços científicos e não deveria ser promovida por órgãos de Estado, como o Ministério da Saúde.

Saindo do serviço público para a esfera privada, uma obra popular sobre o tema, “A Bíblia da Reflexologia”, promete benefícios bem específicos, como ajudar a engravidar e a manter uma gravidez saudável, reduzir sintomas gastrointestinais, promover o emagrecimento e – aquilo que toda intervenção “alternativa” e “natural” diz fazer – o fortalecimento o sistema imune. Nenhuma dessas promessas tem base científica.

 

Evidência

Existe uma grande quantidade de estudos sobre reflexologia publicados no mundo (incluindo muitos conduzidos por brasileiros). Uma revisão de 2011 concluiu que “a melhor evidência clínica não demonstra de forma convincente que a reflexologia seja um tratamento eficaz para qualquer condição médica”. Edzard Ernst aponta que revisões mais recentes sugerem algum benefício da massagem nos pés para distúrbios do sono ou como apoio no tratamento de ansiedade e depressão, mas que esses resultados se baseiam em trabalhos de baixa qualidade e “devem ser vistos com cautela”.

A abundância de estudos que, à primeira vista, sugerem benefício, mas que numa análise crítica se mostram falhos, inconclusivos ou inadequados não é exclusividade da reflexologia. Trata-se de fenômeno comum no universo das práticas alternativas, ou ditas “integrativas e complementares”. A maior parte dos trabalhos que parece validar terapias alternativas cai em pelo uma de três categorias de falácia científica. Conhecendo as categorias, não é difícil pegar o fio da meada e achar o erro. São elas:

 

Exploratório vs. confirmatório 

Um "estudo exploratório" tem como objetivo apontar rumos para pesquisa – é o equivalente de dizer "ei, pessoal, parece que tem algo interessante aqui". Por sua própria natureza, o estudo exploratório apenas sugere o fenômeno; estudos confirmatórios, mais rigorosos, são necessários para ver se a vereda aberta realmente leva a algum lugar, ou se não passa de um beco sem saída. A pesquisa em medicina alternativa é feita quase que 100% de estudos exploratórios, cuja significância é sistematicamente exagerada pelos defensores de tais práticas.

 

Pseudo-controles

O padrão máximo de evidência, em pesquisa médica, é o representado por estudos clínicos duplo-cegos, randomizados e controlados por placebo. Isso quer dizer que você trabalha com dois grupos, selecionados ao acaso dentro da população de interesse ("randomizado"), um dos quais é o grupo que vai receber o tratamento em teste e o outro, um produto inerte ("placebo"), e que idealmente nem os voluntários, nem as pessoas encarregadas de administrar o tratamento/placebo sabem qual grupo é qual ("duplo-cego").

Há várias razões, tanto na medicina alternativa quanto na tradicional, que muitas vezes impedem que esse design seja implementado de modo completo. Mas pelo menos a presença de um grupo de controle é, geralmente, necessária para que o trabalho tenha algum verniz de credibilidade. Praticantes de terapias alternativas, no entanto, são hábeis em tornar os controles, na prática, irrelevantes. Um truque comum é comparar uma prática da qual é razoável esperar um forte efeito placebo (como no caso da reflexologia, que envolve intensa interação humana) a uma “lista de espera”, onde o paciente simplesmente não recebe nada, ou a uma condição em que o potencial para o efeito placebo manifestar-se é muito menor.

Isso porque nem todos os placebos são criados iguais. Sabe-se, por exemplo, que uma pílula de açúcar cara causa mais "benefícios" do que uma barata. Estudo publicado no British Medical Journal em 2008 já apontava que o efeito placebo é aditivo: "Os fatores que contribuem para o efeito placebo podem ser progressivamente combinados, de um modo que se assemelha a uma escala graduada de aumento da dose", diz o trabalho. "O componente mais robusto é a relação paciente-terapeuta".

 

A+B versus A

Muitos estudos sobre terapias alternativas comparam os resultados obtidos por pacientes que seguem um curso de tratamento tradicional (A) com os que seguem um tratamento tradicional acompanhado de uma terapia alternativa (A+B), e concluem que o grupo A+B se saiu melhor. Dado o caráter aditivo do efeito placebo, no entanto, esse tipo de resultado não prova nada: a simples presença de "B", qualquer que seja "B", já deveria produzir algum benefício, por puro conforto psicológico.

 

História

A reflexologia reivindica para si uma história milenar, supostamente remontando ao Antigo Egito. Na verdade, a teoria por trás da prática foi inventada nos Estados Unidos por William Fitzgerald (1872-1942), que na época da Primeira Guerra Mundial acreditou ter descoberto que o corpo humano se divide em dez zonas longitudinais, sendo que cada zona termina em um dos dedos dos pés.

Mapas de reflexologia supostamente mostram quais órgãos “pertencem” a quais zonas, mas como todo o sistema é imaginário, há mapas que se contradizem entre si, sendo que alguns incorporam conceitos e pontos da acupuntura. Para facilitar a vida dos reflexologistas, é possível encontrar no mercado meias com as zonas e os órgãos já devidamente desenhados, supostamente sobre os pontos “corretos”.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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