A gente costuma ouvir que “nunca antes estivemos tão doentes como agora”. A frase é usada em memes e artigos contra vacinas, transgênicos, medicamentos, pesticidas etc., para explicar por que tudo isso deve ser evitado. Mas é verdade? Estamos realmente mais doentes do que no passado? Como existem muitas maneiras de ficarmos doentes, seria interessante desmembrar a pergunta. Por exemplo, não se morre mais de varíola. Então, neste artigo, vamos focar no câncer: temos mais casos de câncer hoje em dia?
Faz sentido pensar que os casos de câncer estão crescendo, porque, afinal, todos conhecemos alguém com câncer. E essas notícias nos deixam com a impressão de que convivemos com um número cada vez maior de carcinogênicos. Para complicar, a confiança nas agências regulatórias vem caindo nos dois lados do espectro político. O financiamento e o apoio a agências (como a EPA, Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos) que deveriam testar e nos proteger de agentes cancerígenos foram vítimas da política ideológica. Então, vamos analisar os números e ver se nossa impressão de que os casos de câncer estão aumentando é correta.
Entendendo as estatísticas sobre câncer
O Natiional Cancer |Institute (NCI) tem uma enorme quantidade de dados sobre incidência, prevalência e mortalidade por câncer nos Estados Unidos, mas é importante entender a diferença entre esses conceitos, porque os números e tendências também são diferentes:
Prevalência é definida como “a proporção da população que apresenta uma característica específica num dado período”. Ela inclui pessoas recentemente diagnosticadas, e as diagnosticadas no passado. É o caso, por exemplo, do número de pessoas vivendo com um diagnóstico de câncer de mama a cada 100 mil habitantes dos EUA.
Incidência é o número de novos casos diagnosticados a cada ano.
A taxa de incidência é o número de novos casos diagnosticados a cada ano numa população, numa relação entre tempo/ano e tamanho da população. Como, por exemplo, em número de novos casos de câncer de mama para cada 100 mil pessoas em 2017. A estatística pode ser ajustada para a idade dessa população, tornando-se mais precisa.
Mortalidade é o número total de mortes causada por determinada doença (como câncer de mama) numa dada população.
Com essas definições em mente, aqui vão algumas estatísticas recentes, referentes a 2018.
Incidência: a estimativa é de que 1,7 milhão de novos casos de câncer foram diagnosticados os EUA, em 2018.
Mortalidade: Cerca de 610 mil pessoas morreram de câncer nos EUA em 2018.
Taxa de incidência: 439 por 100.000 pessoas por ano foram diagnosticadas com câncer nos EUA.
Taxa de mortalidade: 163 por 100 mil pessoas por ano morrem de câncer. (Esta é uma média: a mortalidade é maior em homens, particularmente em afro-americanos).
Estima-se que 38% da população receberá diagnóstico de câncer em algum momento da vida.
Quais são os tipos mais comuns de câncer?
Câncer não é uma única doença, e cada tipo de câncer tem fatores genéticos e ambientais em seu desenvolvimento. A despeito das estatísticas detalhadas, reunir todos esses tipos de câncer não nos dá um retrato preciso do que realmente acontece. Por isso, entender tendências para tipos específicos da doença também é importante.
Com isso em mente, a primeira pergunta é: qual é o tipo mais comum de câncer? O câncer de pele. Segundo a Academia Americana de Dermatologia, cerca de 9.500 pessoas são diagnosticadas com câncer de pele diariamente. Em seguida, os mais comuns são os de mama, pulmão e próstata.
A incidência de câncer está aumentando?
Observando a incidência, ou número de novos casos de câncer, percebemos um aumento ano após ano. Mas a população também está crescendo, e vivendo cada vez mais. Por isso, a taxa de incidência se torna mais significativa. Por sorte, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) tem todos esses dados . Se olharmos a taxa de incidência de todos os diferentes tipos de câncer, vamos ver que a taxa está caindo, de 481 por 100 mil, em 1999, para 435 por 100 mil, em 2016.
Todos os tipos de câncer, Estados Unidos
Fonte: US Cancer Statistics Working Group. US Cancer Statistics Visualizations Tool, com base em dados analisados em novembro de 2018, referentes a 1999-2016; US Department of Health and Human Services, Centers for Disease Control and Prevention e National Cancer Institute, Junho de 2019.
Incidência de todos os tipos de câncer de 1999 a 2016 nos EUA
Fonte: US Cancer Statistics Working Group. US Cancer Statistics Visualizations Tool, com base em dados analisados em novembro de 2018, referentes a 1999-2016; US Department of Health and Human Services, Centers for Disease Control and Prevention e National Cancer Institute, Junho de 2019.
Por que a incidência de alguns tipos de câncer está caindo?
A taxa de incidência total de câncer está caindo para a maioria dos tipos da doença. Isso inclui câncer de pulmão, mama, colo de útero e próstata, entre outros. Vários fatores contribuem para isso, particularmente a campanha antitabagismo. Mas o fato de haver disparidades sociais nas taxas de incidência e mortalidade do câncer enfatizam o peso de fatores socioeconômicos, como os ambientais e nutricionais. Será interessante observar o impacto da vacina contra o HPV nos próximos anos.
Que tipo de câncer é diagnosticado com mais frequência?
A incidência de câncer de fígado vem crescendo mais depressa que a de outros tipos, provavelmente por causa da hepatite C, particularmente entre os “baby boomers” (pessoas nascidas entre 1946 e 1964) e que somam 75% dos casos de hepatite C. Além disso, álcool e obesidade também contribuem para o desenvolvimento da doença.
Taxa de incidência de câncer de fígado nos EUA de 1999-2016
Câncer de fígado e câncer das vias biliares, EUA
Fonte: US Cancer Statistics Working Group. US Cancer Statistics Visualizations Tool, com base em dados analisados em novembro de 2018, referentes a 1999-2016; US Department of Health and Human Services, Centers for Disease Control and Prevention e National Cancer Institute, Junho de 2019.
Outros tipos de câncer cuja incidência está aumentando incluem câncer de pele, provocado por exposição ao sol sem uso de filtros protetores e uso de bronzeamento artificial; de garganta, provocado por infecções por HPV, e cuja incidência deve cair com a vacinação.
A mortalidade por câncer está aumentados?
De acordo com o National Cancer Institute (NCI), na última década, a mortalidade por câncer também teve queda, de 1,8% entre os homens e 1,4% entre as mulheres, no período de 2006 a 2015. Também houve queda na mortalidade por câncer infantil. Na verdade, a mortalidade por câncer vem caindo há 25 anos por causa dos avanços em diagnóstico, e sobretudo no diagnóstico precoce, melhora dos tratamentos e queda no tabagismo.
Mas essa queda na mortalidade não é a mesma para todos os tipos de câncer. Por causa da redução no número de fumantes, as mortes por câncer de pulmão foram as que mais diminuíram, em impressionantes 50%, entre homens, nos últimos 25 anos. No entanto, as mortes por tumores malignos associados à obesidade, como os de pâncreas e fígado, estão aumentando.
Nos EUA, também há discrepâncias raciais e socioeconômicas nas taxas de mortalidade por câncer. De acordo com o National Cancer Institute :
Afro-americanos têm taxas de mortalidade mais altas que todos os outros grupos para muitos, mas não todos, tipos de câncer.
Mulheres afro-americanas têm muito mais probabilidades de morrer de câncer de mama que mulheres brancas. Essa diferença nas taxas de mortalidade vem aumentando à medida que cresce a taxa de incidência entre elas – no passado, eram mais baixas que entre as mulheres brancas, mas hoje se equiparam.
Homens afro-americanos têm risco mais que duas vezes maior que os brancos de morrer de câncer de próstata e de quase duas vezes maior de morrer de câncer de estômago.
As taxas de mortalidade por câncer colorretal entre pessoas com menos de 65 anos (mortes “prematuras”) são mais altas nos estados americanos com níveis de educação mais baixos. Pessoas com maior nível de instrução têm menos probabilidade de morrer de câncer colorretal precoce, independentemente de etnia ou raça.
Essas disparidades têm múltiplas causas, que vão desde o acesso à saúde, preconceito dos clínicos, que faz com que negros não recebam o mesmo tratamento que os brancos, passando por fatores ambientais, até desvios em testes clínicos, em que minorias não são representadas como deveriam.
A prevalência de câncer está aumentando?
A queda na mortalidade por câncer, tanto por causa de melhor diagnóstico, como por avanços no tratamento, produziu um aumento no número de pessoas que vivem com câncer. Ou seja, a prevalência de câncer cresceu. Se a incidência de câncer (proporção de pessoas diagnosticadas a cada ano) permanecer estável, mas um número menor de pessoas morrer de câncer, então a prevalência (proporção de pessoas vivendo com câncer) cresce.
Em janeiro de 2019, havia cerca de 16,9 milhões de pessoas vivendo com câncer nos EUA . Como a população está envelhecendo, o National Cancer Institute estima que esse número deve chegar a 22,1 milhões de pessoas em 2030. A maior parte dessas pessoas foi diagnosticada nos últimos 5 anos, e cerca de 60% estão na faixa acima dos 65 anos.
Há várias discrepâncias nos dados de prevalência baseadas no tipo de câncer, mas também nos fatores socioeconômicos. A prevalência é maior entre pessoas com planos de saúde, que vão ao médico regularmente e, portanto, têm mais chance não apenas de serem diagnosticadas, mas de receber um diagnóstico precoce. Segundo a American Cancer Society, “o tratamento oncológico de ponta não está universalmente disponível, resultando em disparidades no estágio de diagnóstico, tratamento e prognóstico para populações carentes de atendimento, como é o caso das minorias étnicas e raciais, dos que não dispõem de seguro saúde, das populações rurais com planos que não oferecem ampla cobertura e dos idosos.”
Por que tanta gente acredita que o câncer está ficando mais frequente?
Provavelmente, isso tem muito a ver com o fato de a prevalência, ou seja, o número de pessoas vivendo com câncer, estar aumentando: 38% das pessoas vão ter câncer em algum momento da vida. Como vivemos mais do que nas décadas passadas, isso significa um monte de gente viva, e todos conhecemos alguém que tem ou teve câncer. Além disso, em tempos de redes sociais e com a redução do estigma que cercava a doença , as pessoas estão mais atentas àqueles que convivem com o câncer. Por isso, temos a impressão que a taxa de incidência está crescendo.
O que podemos fazer para prevenir o câncer?
Tendemos a focar em atividades e coisas que dão pouca proteção contra o câncer, como evitar resíduos de pesticidas e produtos químicos de limpeza, e ignoramos os grandes riscos. Boa parte do risco de câncer é genética, que não podemos alterar, e câncer geralmente se desenvolve por acaso. Ainda assim, os maiores riscos para câncer estão no tabagismo, na vida sedentária, obesidade, exposição ao sol sem proteção e baixo consumo de frutas e vegetais. Todos esses fatores de risco podem ser evitados.
Conclusões
A impressão de que o câncer está aumentando se deve ao fato de a taxa total de incidência da doença está caindo, e a mortalidade também. Isso levou a um aumento da prevalência e da visibilidade do câncer. Embora, no geral, esta seja uma boa notícia, essa estatística não serve de consolo para quem enfrenta a doença, seus familiares e amigos. Além disso, há tipos de câncer que não estão diminuindo.
É fundamental que as pesquisas prossigam, para que a tendência de redução da taxa de incidência e a queda na mortalidade se mantenham e afetem todos os tipos de câncer. Também é importante reduzir as disparidades presentes no acesso à saúde, para que esses avanços sejam compartilhados por todos os grupos demográficos, já que muitas comunidades são impactadas mais duramente pelo câncer. A queda na taxa de incidência, portanto, é desproporcional. O câncer tem um peso maior para os afro-americanos e outras minorias raciais, bem como em pessoas com acesso limitado a serviços de saúde, mas o National Cancer Institute assegura que tem projetos para lidar com o problema das disparidades. Mas, para que esses problemas sejam resolvidos, precisamos votar e eleger legisladores e políticos que tenham planos concretos para melhorar o acesso à saúde. Também deveríamos mostrar nossa preocupação com esses temas em alto e bom som para aqueles, já eleitos, quando o poder e o financiamento de nossas agências de pesquisa são ameaçados.
Alison Bernstein é neurocientista e estuda mal de Parkinson, epigenética e neurotoxicologia. Tem doutorado em Ciências Biomédicas pela Universidade dre Washingon
Layla Katiraee é cientista da Roche Sequencing Solutions. Tem doutorado em genética molecular humana pela Universidade de Toronto
Este artigo foi opublicado orioginalmente em https://scimoms.com/are-there-more-cases-of-cancer/ . Traduzido e republicado com permissão das autoras.
NOTA DO EDITOR (10/01/2020): Após a publicação deste artigo, novas estatísticas foram divulgadas dando conta de uma queda histórica nas taxas de morte por câncer nos Estados Unidos. Mais informações podem ser encontradas em https://geneticliteracyproject.org/2020/01/09/cancer-death-rates-fall-2-2-largest-single-year-drop/