Cuidado com a pseudociência dos coaches de emagrecimento

Questão de Fato
18 mar 2022
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Especialistas chamam de “terrorismo nutricional” as “dicas” de dieta que proíbem ou recomendam enfaticamente certos alimentos. Advertem ainda que dietas radicalmente restritivas com o objetivo de emagrecer não só não funcionam no médio e longo prazo como podem servir de gatilho para transtornos psiquiátricos graves. Profissionais da área de nutrição alertam para os perigos do aconselhamento nutricional irresponsável feito por celebridades e influenciadores de redes sociais, um tema que veio à tona recentemente por causa de uma polêmica no Big Brother Brasil.

Maíra Cardi é o pacote completo da subcelebridade brasileira: influenciadora digital e ex-participante do BBB, hoje ela faz carreira como coach de alimentação saudável e se denomina “empresária do emagrecimento” – título que consta de sua biografia no Instagram, onde acumula 7,6 milhões de seguidores. Detalhe: Maíra não é graduada em nutrição, não tem registro no Conselho Federal de Nutrição (CFN) e apresenta no currículo apenas cursos técnicos realizados nos EUA.

O marido, o ator Arthur Aguiar, seguiu os passos da esposa e participa da temporada de 2022 do BBB. Apesar dos trabalhos recentes na Globo, Arthur é mais famoso por um papel de juventude no drama adolescente Rebeldes, da Record – e por ter conseguido o perdão de Maíra após traí-la 16 vezes.

 

Pãozinho

Alguns meses antes do início do reality show, Arthur contou com a ajuda da mulher para fazer uma virada brusca na dieta: parou de se empanturrar com alimentos industrializados e se comprometeu a seguir um cardápio restrito montado pela esposa, que lhe fez perder 9 kg em um mês. Foi só o programa começar, porém, que Arthur desfez o combinado e mandou um pãozinho para dentro.

Maíra reagiu: "Amor, você não podia ter comido pão! Você acabou de destruir todo o trabalho que eu fiz no seu corpinho! Nove quilos se foram à toa, 30 dias batalhando nesse corpinho para estar aí, bonito, à mostra pro Brasil inteiro ver, e você me comeu pão? Não faça isso!" O Twitter ficou tão revoltado com as restrições alimentares que até os chifres acabaram perdoados pelo público – e a história pôs em pauta o problema das dietas abusivas.

Pouco depois, Maíra publicou um vídeo no Instagram em que uma amiga forçava um doce em sua boca – e chamou de “estrupro alimentar” a atitude de oferecer comidas calóricas de maneira insistente para pessoas com regimes restritivos. Inúmeros nutricionistas formados apareceram nos comentários para explicar que a expressão, além de desrespeitosa com vítimas de violência sexual, contradiz tudo que as evidências têm a dizer sobre uma alimentação realmente saudável.

 

Marketing e evolução

Precisamos começar em Darwin para entender por que Arthur cedeu ao pãozinho (e por que você, leitor, pode comer pãozinho sem culpa). Obter comida era a motivação central da vida de um ser humano caçador-coletor em uma tribo nômade – e esse foi o único modo de organização social existente pela maior parte dos 300 mil anos do Homo sapiens: a agricultura e a pecuária, acompanhados da formação de cidades, começaram há no máximo 12 mil anos.

A dieta caçadora-coletora tinha suas vantagens. A primeira era a variedade. Virava refeição tudo de comestível que se pode encontrar numa saída pela mata nativa: folhas, frutas, raízes, cogumelos, sementes e animais de várias espécies e tamanhos.

A geneticista de populações Tábita Hünemeier, do Instituto de Biologia (IB) da USP, estudou a fome crônica que afetou as populações pré-históricas do México quando, há 8,7 mil anos, elas abandonaram a caça e a coleta por um cardápio que consistia 70% em milho oriundo da agricultura. A desnutrição resultante foi tão intensa que a seleção natural favoreceu uma mutação genética que aumenta a retenção de colesterol nas células. Hoje, em virtude disso, a população mexicana sofre acima da média com obesidade.

A desvantagem da caça e da coleta é a alternância imprevisível entre períodos de abundância e escassez. Era importante se empanturrar de carnes gordurosas ou frutas com alto teor de açúcar quando elas estivessem disponíveis, para criar reservas que sustentassem o corpo em momentos de privação.

Isso, com uma ajudinha nada desprezível de técnicas de marketing e design, torna um menu do tipo do McDonald’s atraente e emocionalmente gratificante.

Uma pessoa que se abstém completamente do consumo de carboidratos ou gorduras está passando fome voluntariamente, mas seu sistema nervoso não sabe disso, porque jejum voluntário não faz o menor sentido: “se meu humano pode comer, por que ele não comeria?” Isso põe um preço alto na cabeça de alimentos calóricos: quando a pessoa de dieta finalmente encontrá-los, a recompensa emocional será explosiva, porque o corpo quer correr atrás do prejuízo.

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A esse mecanismo de compensação, instalado pela seleção natural, soma-se a culpa. Pessoas que comem angustiadas por estarem desrespeitando a dieta comem mais do que pessoas que se permitem os alimentos que desejam em quantidades moderadas, com uma frequência razoável.

 

Sanfona

O resultado é que a maior parte das pessoas que buscam emagrecer perde algo entre 5% e 10% de sua massa corporal nos primeiros seis meses de dieta. Após alguns anos, dois terços acabam com peso idêntico ou maior ao que tinham antes do início do processo. Esses resultados são de uma revisão sistemática de 31 estudos, que acompanharam pessoas de dieta por uma janela de tempo entre 2 e 5 anos.

Esse trabalho foi publicado em 2007. Na época, a autora principal, Traci Mann, declarou à imprensa: “Concluímos que a maioria dos voluntários estaria melhor se não tivesse feito dieta. Eles teriam permanecido basicamente com a mesma massa, e seus corpos não teriam sofrido o desgaste de perder peso e ganhar de volta”.

Um outro estudo, que acompanhou 19 mil homens saudáveis ao longo de quatro anos, concluiu que a variável “ganho de peso” tinha uma correlação maior com a variável “fez dieta em algum ponto do passado" que com qualquer outro dado coletado.

“Dietas restritivas de emagrecimento não funcionam”, diz a psiquiatra Vanessa Pinzon, do Ambulatório de Transtornos Alimentares (AMBULIM) do Hospital das Clínicas da USP. “A cilada está montada quando falamos que alguém teve uma recaída na dieta. Isso deixa subentendido que a dieta é um método razoável, e que a culpa é da pessoa que não conseguiu cumpri-la. Mas a verdade é que ninguém consegue manter uma dieta por mais de seis meses, e estou sendo generosa. A pessoa sofre com a privação metabólica e com a privação emocional”.

Além disso, permanecer com um peso menor após a dieta não é necessariamente sinal de que o regime deu certo. “Muitas pessoas que não voltam a engordar após a dieta desenvolveram transtornos alimentares”, explica a nutricionista e engenheira agrônoma Sophie Deram, que coordena o Projeto de Genética dos Transtornos Alimentares no AMBULIM. “Não é um sucesso, é uma doença psiquiátrica muito grave, como anorexia ou bulimia. O sucesso na dieta não é um sucesso de saúde”.

 

Dieta rica em confusão

Profissionais como Sophie e Vanessa usam a expressão “terrorismo nutricional” para definir o bombardeio paralisante de informações desencontradas sobre alimentação. Alguns exemplos típicos: a constante entrada e saída do ovo na lista de alimentos vetados ou recomendados, a orientação de substituir todo o arroz branco por integral, a quantidade exata de vinho semanal que faz bem (se é que alguma quantidade faz) – ou a ideia de que margarina é a salvação e manteiga, uma grande vilã. Essas recomendações dicotômicas se traduzem em dietas dicotômicas, sugeridas por sites ou coaches sem qualificação.

O primeiro problema é que a mídia tem dificuldade em traduzir responsavelmente as limitações de achados científicos para o público, especialmente na área da nutrição. Se um único estudo observacional (que acompanha voluntários sem controlar estritamente as variáveis e fatores de confusão) encontra uma correlação fraca entre um alimento e a incidência de uma doença, isso não é suficiente para decretá-lo aliado ou vilão. Para isso, diga-se, existem papers chamados revisões sistemáticas, em que se avalia toda a literatura publicada sobre um assunto, numa janela de tempo, para buscar um consenso.

Um exemplo: esta revisão sistemática de estudos que correlacionam consumo de carne vermelha a câncer e problemas cardiovasculares concluiu que o número de estudos ainda é baixo demais para traçar conclusões definitivas, mas que as evidências disponíveis até agora (classificadas como de certeza “baixa” ou “muito baixa”) mostram que dietas sem bife “têm pouco ou nenhum efeito na incidência e na mortalidade por câncer e em resultados cardiometabólicos”.

Outra questão é a reconhecida crise de replicabilidade dentro da própria ciência: resultados clássicos que pautaram políticas públicas e reportagens no passado acabam se revelando falsos décadas depois, ao se repetirem os experimentos.

Na nutrição, em especial, esse fenômeno acompanha as estratégias de grandes empresas do ramo alimentício para preservar a reputação de seus produtos: financiamento de pesquisas enviesadas, lobby político e boas relações com agências reguladoras – algo descrito pela nutricionista mythbuster Marion Nestle em seus livros Food Politics (2002) e Soda Politics (2015).

Nestle, cujo sobrenome não tem nenhuma associação com a Nestlé, escreve uma série de textos intitulada “estudo patrocinado da semana” em seu blog. Ela seleciona um artigo científico financiado e identifica o trecho (ou trechos) onde ocorre a distorção. Numa seleta de 168 estudos analisados entre 2015 e 2016, 156 traziam conclusões favoráveis aos produtos dos patrocinadores. Ou seja: nem uma grande família de estudos a favor de um alimento, compilada numa boa revisão sistemática, é sinal inequívoco de consenso científico. Pode ser só sinal de dinheiro na mão dos atores certos.

 

Comer bem

O primeiro ponto é que dietas que excluem toda uma classe de alimentos (ou dão preferência a certos nutrientes) em geral se aplicam apenas a situações muito específicas: pacientes que serão submetidos a determinadas cirurgias, atletas de alto desempenho ou pessoas com certas doenças e alergias. Vegetarianos e veganos também entram aqui por razões ideológicas e filosóficas, e precisam buscar alternativas para os nutrientes de origem majoritariamente animal.

Pessoas saudáveis devem e precisam comer alimentos de todos os tipos, inclusive os que são declarados “inimigos” pelo senso-comum e pelos coaches. Lipídios também são nutrientes. E não há fórmula universal: pessoas de sexos, hábitos e faixas etárias diferentes têm necessidades diferentes. Alguém com 45 anos que bebe doze latas de cerveja todo sábado não vai acordar no final de semana seguinte tomando café da manhã com quinoa e queijo branco – reduzir o consumo de dois engradados para um já é um avanço.

Fazer uma planilha de Excel geralmente não é saída: o ideal é que a pessoa tome as rédeas do próprio cardápio e estabeleça uma relação afetiva com a escolha e o preparo do que vai comer (descobrindo, por exemplo, maneiras de cozinhar vegetais que agradem e permitam a ela reduzir a proporção de ultraprocessados da alimentação). Essa busca inclui deixar-se comer um docinho sem culpa na sobremesa, o que evita que você ataque um pacotão de bolacha à noite por frustração.

A comida é parte da herança cultural de um povo, e está associada a momentos positivos (as refeições, em geral, são o principal momento em que famílias, amigos e colegas se reúnem). Pessoas que levam uma marmita de salada numa feijoada dominical – e até afetam superioridade moral pelo autocontrole – estão se privando não apenas de carne seca e caipirinha, mas de sua memória afetiva e seus laços.

As dietas restritivas também tiram de campo a intuição. O sistema digestório e o cérebro têm uma série de mecanismos para controlar o ritmo e a quantidade em que você come. Esses mecanismos podem se desregular em virtude de problemas psicológicos ou metabólicos, mas pessoas saudáveis podem confiar no que a cabeça diz: se está com fome, coma – e pare quando estiver saciado, sem forçar. Bebês são ótimos nisso, mas muitos adultos precisam reaprender a ler os próprios sinais. “É fundamental, dentro do tratamento do paciente, ele se reconectar com as sensações”, diz Deram. “Saber a diferença entre fome, sede e cansaço. Uma paciente já me falou que, até quando tem vontade de fazer xixi, ela come algo primeiro. Qualquer mal-estar vira comida”.

 

Sem demônios

Embora alimentos frescos sejam uma opção melhor que os ultraprocessados, demonizar a indústria também é uma forma de terrorismo nutricional: mães youtubers exemplares que montam lancheiras de revista para seus filhos (os comentários do fenômeno da Twitch Casimiro sobre a lancheira da Nina, uma que inclui até pepino fatiado, se tornaram um clássico instantâneo) estão humilhando involuntariamente outras mães, que não têm renda ou tempo para fazer o mesmo para suas crianças. “As mães são torturadas: têm que plantar o trigo, colher o trigo, fazer o pão, porque tudo é supostamente muito perigoso e inadequado”, diz Vanessa Pinzon.

Comer bem pode ser bem simples – pelo menos em relação ao desafio de seguir uma dieta abusiva, que já começa perdido. A alimentação só se torna um problema (seja fisiológico, seja psiquiátrico) quando tentamos fingir que a comida é algo que não é. Comer é parte da cultura, é uma fonte de prazer e socialização e é um instinto de sobrevivência. Vilanizar batatas fritas é como negar que sexo é bom ou que você sente alívio quando finalmente faz xixi após chegar em casa apertado: a negação de necessidades básicas a um animal que evoluiu para cumpri-las a qualquer custo.

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Agradecemos as conversas com o nutricionista Mauro Proença, que escreve sobre nutrição na Revista Questão de Ciência.

 

Bruno Vaiano é jornalista

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