Reduzindo e simplificando a complexidade irredutível

Questão de Fato
13 fev 2019
Sahelanthropus tchadensis
Sahelanthropus tchadensis, possível ancestral comum de humanos e chimpanzés/Didier Descouens - CC BY-SA 4.0

O movimento antievolução, tal como o conhecemos hoje, começou nos EUA. No início do século 20, a evolução começou a ser ensinada no ensino médio americano. Logo em seguida, formou-se um movimento cristão – predominantemente protestante –  com muito medo de que o estudo da evolução afastasse os jovens da crença em Deus. No período de 1919 a 1927, foram feitas várias tentativas legais de banir o ensino da evolução nas escolas americanas, com sucesso temporário. Essas proibições ganharam projeção internacional  depois que um professor do Tennessee, chamado John Scopes, foi condenado por ensinar evolução em uma escola pública, contrariando a lei estadual vigente.

A evolução voltou a ser ensinada nas escolas públicas dos EUA no fim da década de 1950, gerando a segunda onda antievolucionista. Em 1968, a Suprema Corte dos EUA decidiu que leis proibindo o ensino de evolução eram inconstitucionais. Religiosos da época, ainda preocupados com a alma das crianças, tentaram então determinar que, ao menos, a Bíblia fosse ensinada ao lado da ciência biológica. O problema era que a Constituição americana confere status laico às instituições públicas, como escolas financiadas pelo contribuinte. Por algum tempo, a saída mais elegante pareceu ser, então, conferir status científico ao mito da criação. Em 1972, foi criado o Instituto de Pesquisa da Criação (Institute for Creation Research – ICR).

Para frustração dos envolvidos, em 1987, a Suprema Corte decidiu que a “Ciência da Criação” era apenas uma posição religiosa, e portanto, não deveria ser ensinada nas escolas como uma teoria científica. Mas os criacionistas não desistiam facilmente, e o movimento seguiu crescendo.

Cristãos protestantes continuaram pregando a criação como ciência, simplesmente para poder escapar da legislação que proibia o ensino religioso nas escolas mantidas com dinheiro público. Se a criação pudesse ser apresentada como ciência, o problema estaria resolvido. Uma organização devotada a promover o criacionismo, Answers in Genesis, chegou a inaugurar um Museu de História Natural no Kentucky em 2007, com um custo aproximado de US$ 27 milhões. Ali, pela bagatela de US$70,00 você pode fazer a visita ao acervo e, ainda, ter uma experiência exclusiva na “réplica” da Arca de Noé. O livro “Um dilúvio de evidências” sai por US$13,00 na loja de lembrancinhas. O Museu já recebeu 3,5 milhões de visitantes desde a inauguração.

Design Inteligente

Foi neste contexto, de mascarar a Bíblia como ciência, que surgiu a “teoria” do Design Inteligente (DI), criada para driblar as barreiras legais ao ensino de criacionismo nas escolas. A proposta era abrir espaço para o ensino de “explicações alternativas” à evolução, sempre dentro das aulas de ciências. O Design Inteligente nunca teve nenhum interesse em fazer pesquisa científica. Foi – e continua sendo – uma jogada política para infiltrar religião nas escolas públicas dos EUA.

O DI não oferece nenhuma explicação científica para a origem do Universo, dos seres vivos ou das espécies. Toda o seu embasamento “científico” consiste em tentar refutar a Teoria da Evolução, apontando supostos furos ou incoerências na síntese moderna, como é chamada a combinação entre as ideias atuais sobre evolução, desenvolvidas a partir dos trabalhos originais de Darwin e Wallace, com os conhecimentos mais avançados sobre genética e bioquímica.

Dentre essas tentativas, o argumento mais recorrente usado pelos defensores do DI é o da “complexidade irredutível”. Esse argumento postula a existência de sistemas biológicos de tal complexidade que seria impossível reduzi-los a um processo passo-a-passo, supostamente necessário para que fossem produto da seleção natural. O maior defensor da complexidade irredutível é Michael Behe, que publicou, em 1997, o livro “A caixa preta de Darwin”, onde oferece vários exemplos de tais sistemas.

Ratoeiras

Tudo o que Behe conseguiu demonstrar, no entanto, foi uma total incompreensão de como a evolução funciona. Segundo o autor, um sistema complexo, para ser produto de evolução darwiniana, teria de ser desmontável  em várias partes, e cada parte deveria ter tido uma função que oferecesse vantagem seletiva ao organismo, sempre no rumo indicado pela estrutura final. Para ilustrar essa linha de pensamento, Behe usa o exemplo de uma ratoeira, e do flagelo bacteriano, estrutura complexa que algumas bactérias utilizam para locomoção.

Vamos começar com a ratoeira. Behe argumenta que uma ratoeira, para funcionar plenamente, precisa de todas as suas partes. Se retirarmos uma das partes, ela já não funciona. E as partes sozinhas também não servem para nada. Assim, a ratoeira é um sistema de complexidade irredutível. Não podemos reduzi-la a uma evolução onde cada etapa, cada parte da ratoeira, conferisse uma vantagem ao caçador de ratos e, portanto, pudesse ser um produto de seleção natural. Além disso, Behe advoga que inúmeras mutações seriam necessárias para cada etapa chegar ao seu destino final.

Ele ignora o fato de que a evolução não é dirigida. Diferentemente de algo desenhado PARA uma função, nenhum organismo vivo evolui com uma determinada finalidade. A evolução ocorre às cegas e ao acaso. Assim, as diversas partes de uma ratoeira poderiam, digamos, ter sido selecionadas por conferir vantagens que não têm nenhuma relação com a morte de roedores.

A “função” das partes não está necessariamente relacionada à função final da ratoeira. As partes também podem não ter conferido nenhuma vantagem, mas simplesmente não sendo prejudiciais, permaneceram ali. Keneth Miller ilustrou muito bem isso quando usou um gatilho de ratoeira como alfinete de gravata, em um julgamento sobre DI nos EUA.

Flagelos

No caso do flagelo bacteriano, o exemplo queridinho do DI, Behe argumenta que, para a estrutura funcionar como funciona – no papel de uma espécie de “motor de popa” que permite a certas bactérias se deslocar na água – as 42 proteínas que a compõem precisariam ter sido selecionadas, separadamente, por conferir alguma vantagem à locomoção da bactéria, o que não ocorre.

Se qualquer uma destas proteínas for removida, o flagelo não funciona. Além disso, para formar o flagelo, cada proteína precisaria ter sido selecionada antes do flagelo existir, sem função aparente. Então por que essas proteínas teriam sido selecionadas? Assim, segundo o DI, bingo! O flagelo é um sistema complexo irredutível, e não pode ser adequadamente explicado por evolução darwiniana.

Mas a evolução não funciona assim. O fato é que cada uma dessas 42 proteínas tem outra função na célula, além da envolvida em compor o flagelo. Ou seja, cada uma das 42 proteínas já estava lá, cumprindo outras funções na bactéria, antes de ter sido cooptada para formar o “motorzinho”. Existem também combinações destas proteínas que já apresentavam outras funções na célula. Resumindo:  as proteínas já existiam e, tanto isoladamente como combinadas, já eram úteis para o organismo antes de se encontrarem no flagelo.

Para utilizar essas proteínas já existentes e compor um flagelo, obtendo, agora, a vantagem extra da motilidade, a célula só precisaria de algumas mutações extras. Este modelo ilustra bem um dos processos pelo qual o flagelo poderia surgir, de acordo com a evolução.

O flagelo bacteriano não é portanto, um modelo de complexidade irredutível. Além de distorcer o conceito de evolução darwiniana tentando reduzi-lo a uma “seleção natural dirigida passo-a-passo”, os defensores do DI ignoram outros mecanismos de evolução, como a transferência horizontal de genes e a deriva genética.

 Mutações não são a única forma de a natureza produzir mudanças. A transferência horizontal de genes entre bactérias é extremamente comum. Graças a ela, frequente troca de material genético e informações ocorre. Em plantas, mecanismos de hibridização ocorrem tanto naturalmente quando por seleção artificial, conferindo características diferentes aos novos cultivares, e que não surgem por mutações. O próprio genoma humano oferece evidências de transferência de genes vindos de outros organismos. Temos um gene de placenta que é homólogo a um gene de envelope de vírus. Nossas células só conseguem respirar graças à mitocôndria, organela que se originou de uma bactéria.

De volta ao pó

A deriva genética também causa variação que nada tem a ver com seleção natural. Trata-se da prevalência de genes ou características que permanecem graças a interferências aleatórias do meio, ou porque uma população morre antes de se reproduzir e seus genes acabam sumindo. Um bom exemplo de deriva genética são cataclismos. Se uma população completa de animais de olhos azuis morre por causa de um terremoto, e uma população da mesma espécie, mas com uma variação de olhos castanhos, sobrevive porque estava em outro lugar, os olhos castanhos serão selecionados não por conferir qualquer vantagem ao organismo, mas simplesmente por acaso.

Além do argumento da complexidade irredutível ser facilmente redutível a pó, os proponentes do DI também não apresentam produção científica de qualidade para fortalecer sua teoria. Não há publicações em periódicos em número relevante, e os autores também não oferecem nenhuma hipótese científica para a origem das espécies, além da explicação religiosa de que tudo teria sido desenhado por um criador inteligente.

Por mais que tente se disfarçar, o Design Inteligente não é ciência. É apenas uma manobra política e burocrática, liderada por frentes religiosas, para empurrar o criacionismo parra dentro das escolas. Tendo fracassado nos EUA,  seus articuladores buscam  terreno fértil em outros países. No momento, o Brasil é um alvo fácil e atraente.

Natalia Pasternak é pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora nacional do festival de divulgação científica Pint of Science para o Brasil e presidente do Instituto Questão de Ciência

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