O que é seleção natural?

Questionador questionado
11 fev 2019
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Esboço da "árvore da vida", em caderno de rascunho de Darwin
Esboço da "árvore da vida", em caderno de rascunho de Darwin

Um dos princípios centrais da biologia evolutiva é o conceito de que a evolução é cega. Em outras palavras, não tem previsão ou objetivo. Este princípio é extremamente importante para entender como a evolução funciona, mas é um conceito que muitas vezes é mal compreendido, mesmo entre pessoas que aceitam a evolução. Além disso, essa falta de compreensão muitas vezes leva a argumentos criacionistas, como a alegação de que as baleias e pinguins desafiam a teoria da evolução.

Essas espécies teriam “devoluído”, por perderam habilidades como o voo – no caso do pinguim, claro. Da mesma forma, o argumento da complexidade irredutível (muito utilizado por pessoas que defendem o Design Inteligente) é facilmente derrotado quando entendemos que a evolução é cega.

Esse texto tratará exclusivamente da evolução por seleção natural. Lembre-se que a evolução é simplesmente uma mudança na composição genética de uma população ao longo do tempo, e a seleção natural é um entre vários mecanismos que fazem com que a frequência com que certos genes aparecem na população mude, ou seja, que a evolução ocorra. O conceito de evolução cega é, no entanto, mais pertinente à evolução pela seleção natural.


Como funciona a evolução por seleção natural?

A seleção natural pode ser explicada tendo como base dois pilares: variação hereditária para uma característica e seleção para essa característica. Ambos são quase sempre encontrados em populações reais. Em outras palavras, em qualquer população há variação para uma característica (por exemplo, nem todos os indivíduos têm a mesma altura) e essa variação muitas vezes acaba sendo hereditária (por exemplo, indivíduos altos tendem a produzir descendentes altos).

Além disso, essa variação pode afetar a aptidão para sobrevivência e reprodução (indivíduos altos podem conseguir mais alimentos, o que lhes dá mais energia, o que os deixa produzir mais descendentes), de modo que certos traços são selecionados porque os indivíduos com determinadas características produzem mais descendentes do que indivíduos sem essas características. Como resultado, os genes para a característica benéfica serão mais comuns na próxima geração. Assim, a população evoluirá, porque sua composição genética mudará.

Existem vários esclarecimentos importantes a serem feitos aqui. Primeiro, todo mundo aceita a seleção natural. Até mesmo pessoas que defendem o Design Inteligente. Ela não é “apenas uma teoria”, como já explicamos.

Em segundo lugar, a evolução age apenas em populações, não em indivíduos. Indivíduos simplesmente não podem evoluir. Para constatar mudança evolutiva temos que comparar as frequências dos genes, e se só o que temos é um indivíduo sozinho, não há com o que compará-lo.

Terceiro, em termos evolucionários, “aptidão” refere-se à capacidade de passar genes para a próxima geração, não à força física, velocidade, beleza, carisma ou o que quer que seja. De um modo geral, estar “apto” no sentido físico (em boa forma, digamos) provavelmente traz uma “aptidão”, no sentido evolutivo, mais alta, mas nem sempre. Assim, a frase “sobrevivência do mais apto” é uma espécie de equívoco.

A sobrevivência é importante apenas na medida em que dá ao indivíduo mais tempo para produzir descendentes, e há muitas espécies de vida curta que têm uma aptidão evolutiva alta. Por exemplo, existem espécies de polvos onde as fêmeas morrem depois de depositar sua primeira e única ninhada de ovos. Eles têm uma sobrevivência mais baixa, mas uma alta aptidão.

A seleção natural só atua em características que afetam o potencial reprodutivo. Estas podem ser características que influenciam diretamente a capacidade de sobrevivência, tais como velocidade para fugir de predadores, mas também podem ser características como capacidade de encontrar alimento (mais comida = mais energia = mais descendentes) e a capacidade de atrair um parceiro (ou seja, seleção sexual).

Por que a evolução é cega?

A evolução não tem previsão, nem direção. Em outras palavras, não tem meta ou objetivo em mente. Não tem “mente”. Geração após geração, ela adapta as populações ao ambiente atual, mas se esse ambiente mudar, então uma adaptação que tenha sido útil por milhares de gerações pode ser, repentinamente, prejudicial.

Digamos, por exemplo, que tenhamos um grupo de pássaros que comem sementes que são mantidas em pequenas dobras das plantas. Os pássaros que tiverem bico pequeno e fino conseguirão chegar às sementes. Portanto, em cada geração, as aves com os bicos mais adequados para alcançar as sementes obtêm a maior quantidade de alimento e produzem o maior número de filhotes. Então, por muitas gerações, a evolução molda os bicos das aves para se encaixar nas dobras das plantas.

No entanto, pode ser que em um ano haja uma seca maciça, e todas as plantas das quais as aves normalmente obtêm sementes morrem, mas outras espécies com sementes grandes e espessas sobrevivem. Agora, os bicos delicados, que eram tão úteis, mostram-se prejudiciais, e os bicos mais grosseiros, que não eram tão eficientes, são úteis.

Isso significa que as aves que antes teriam uma aptidão muito alta, agora conseguirão menos alimento, que pode culminar em menos descendentes. Já as aves de bico grosso, que antes tinham uma aptidão baixa, de repente terão uma aptidão alta. É isso que entendemos por “evolução é cega”. Não é possível prever e antecipar necessidades futuras. Tudo o que a evolução natural faz é adaptar a população ao ambiente tal como se apresenta.

Agora, o “problema” com as baleias e pinguins pode ser explicado com mais propriedade. Para aqueles que não estão familiarizados com esse argumento, os criacionistas frequentemente alegam que as baleias são um problema para a evolução, porque a história evolucionária nos diz que todos os organismos terrestres evoluíram de um ancestral marinho, mas as baleias teriam que evoluir de um ancestral terrestre.

Assim, os criacionistas afirmam que as baleias tiveram que evoluir “para trás” ou “devoluir” porque voltaram à água. O mesmo vale para os pinguins, que não são mais capazes de voar. E perder a capacidade de voar é, erroneamente, interpretado como um desenvolvimento prejudicial.

O problema com esses argumentos é que ignoram o caráter cego da evolução. Não há "para a frente" ou "para trás". Em determinado momento, para uma determinada população de organismos marinhos, era benéfico poder caminhar sobre a terra. Portanto, os traços que permitiram que os indivíduos viessem à terra firme foram selecionados.

Então, milhões de anos depois, para uma certa população de mamíferos terrestres, era benéfico poder entrar na água. Portanto, a natureza selecionou os traços que permitiram que os indivíduos entrassem na água. Isso não é, de forma alguma, um problema para a evolução porque, em ambos os casos, as populações foram selecionadas de acordo com o ambiente disponível. Mais importante: isso aconteceu de forma gradual, levou muito tempo e não ocorreu de forma linear.

Também é importante notar que não existe realmente algo como "mais evoluído", porque a evolução não tem direção. Os chimpanzés não são, por exemplo, mais evoluídos do que as bactérias. Os chimpanzés são certamente mais complexos e, certamente, acumularam mais mudanças genéticas, mas não são “mais evoluídos”, porque isso sugere que a evolução é direcional. Tanto os chimpanzés quanto as bactérias estão bem adaptados aos seus ambientes atuais, e isso é tudo que a evolução faz: adapta as populações aos seus ambientes.

Pense desta maneira: um chimpanzé morreria em ambientes onde muitas bactérias se desenvolvem, como cones vulcânicos submarinos, e as bactérias especializadas nesse tipo de meio morreriam na floresta tropical do chimpanzé. Ambos são altamente adaptados para seus ambientes, mas nenhum deles é mais evoluído que o outro.

Gambiarras

Também é importante perceber que, como a evolução é cega, não esperamos que ela produza organismos perfeitos. Pelo contrário, esperamos que os organismos sejam uma miscelânea de traços presentes em gerações anteriores. Em outras palavras, esperamos que eles tenham um grande número de “sobras” evolutivas. Chamamos essas sobras de traços vestigiais.

Um dos melhores exemplos vivos que temos disso é o de peixes que vivem em cavernas escuras, desprovidas de luz, e são cegos. Estes peixes têm olhos que não funcionam e que, muitas vezes, estão recobertos por uma camada de pele. Têm simulacros de olhos, mas não veem.

No passado, havia uma população de peixes vivendo fora de uma caverna, peixes que tinham olhos funcionais. Então, por algum motivo, parte dessa população acabou segregada dentro da caverna escura, onde ter olhos não influenciava a aptidão. Assim, a natureza parou de selecionar a visão, e os olhos lentamente acumularam mutações até se tornarem inúteis.

Entre os animais, há inúmeros exemplos dessas estruturas. Por exemplo, as baleias e certas cobras retêm ossos pélvicos não funcionais. Os humanos também têm muitos vestígios. Nossos ossos da cauda, dentes do siso e várias outras características são vestígios da nossa história evolutiva. São sobras evolutivas que foram benéficas em ambientes e situações anteriores, mas não são mais benéficas hoje em dia.

A complexidade irredutível

A complexidade irredutível afirma que certos sistemas biológicos são altamente complexos ao ponto de a remoção de qualquer parte impedir o sistema de funcionar. Por exemplo, a complexidade irredutível afirma que o flagelo bacteriano não poderia ter evoluído porque requer 42 proteínas para funcionar (para a maioria das espécies de bactérias), e se qualquer uma dessas proteínas for removida, o sistema não funciona mais como um flagelo.

Assim, o argumento é que ele não poderia ter evoluído porque nenhuma proteína seria útil, a menos que todas as outras já estivessem no lugar.

O problema é que esse argumento apresenta o flagelo como um ponto final almejado pela sapiência da evolução – mas, como você sabe agora, não é assim que as coisas funcionam. Cada proteína não precisa funcionar como parte de um flagelo; apenas tem que funcionar para alguma coisa (ou, pelo menos, não atrapalhar a aptidão geral do organismo) e a seleção natural fará  o serviço. A função de uma proteína pode, inclusive, mudar em resposta a novos ambientes, ou como resultado de novas mutações.

Na verdade, sabemos que todas as proteínas dos flagelos são usadas para outras funções na célula, e muitas delas trabalham juntas. Não é difícil imaginar uma série de mutações que agregue essas funções. De fato, conhecemos um caminho hipotético que permitiria que um flagelo evoluísse passo-a-passo, com cada passo sendo selecionado. Apenas a etapa final funciona como um flagelo, mas isso não importa, porque cada etapa ainda funciona a favor do organismo, e isso é tudo que a evolução precisa: porque é um processo completamente cego, que age sem qualquer previsão ou antecipação de necessidades futuras.

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science no estado de São Paulo

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