O longo caminho de volta

Editorial
31 out 2022
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Os últimos quatro anos da história do Brasil foram atípicos na relação entre o poder político e a ciência. A tradição brasileira que sempre havia sido respeitosa – respeito às vezes sincero, às vezes meramente protocolar, mas sempre presente – viu-se, com a chegada de Jair Bolsonaro ao Planalto, transformada em seu oposto. Governos anteriores poderiam ser criticados por manter políticas científicas talvez inadequadas, fracas ou insuficientes; o governo Bolsonaro promoveu, ativamente, uma política obscurantista.

Do negacionismo climático à trágica promoção de remédios inúteis e da rejeição da vacina, passando pelo estrangulamento do orçamento federal para a área, executado sob o olhar complacente do ministro encarregado de defendê-la, parece não ter havido ação ou decisão sobre ciência, ou envolvendo ciência, em que o governo que ora se encerra não tenha errado.

Se essa unanimidade no erro foi causada por malícia ou incompetência é debate para psiquiatras e historiadores, mas o fato bruto em si basta para sugerir que o próximo governo, com outras cabeças, prioridades e lideranças, saberá fazer melhor.

Não houvesse outros motivos, só esse já bastaria para excitar otimismo com o que virá no governo de Luís Inácio Lula da Silva. Mas outros motivos há: as presenças de figuras como o físico Ricardo Galvão, ex-diretor do Inpe e uma das vítimas da sanha negacionista do governo atual, e da ex-senadora e ex-ministra, deputada federal eleita, Marina Silva no círculo próximo do futuro presidente são bons sinais.

É preciso notar, no entanto, que em nenhum momento a palavra “ciência” foi citada no discurso da vitória proferido por Lula na noite de domingo (a expressão “pesquisa científica” surge exatamente uma vez, no contexto da preservação da Amazônia). Em comparação, “fé” aparece duas vezes, “Deus”, oito, e “Jesus Cristo”, uma. Também, ao fazer o muito necessário apelo à união nacional, Lula disse: “Vou precisar de todos: partidos políticos, trabalhadores, empresários, parlamentares, governadores, prefeitos, gente de todas as religiões”. “Professores”, “cientistas”, “universidades”, “pesquisadores” – não foram lembrados.

No entanto, Lula sabe – se não, as pessoas que o cercam certamente sabem – que sem a ciência será impossível construir aquilo que, segundo o próprio presidente eleito, é o maior desejo do povo brasileiro. Citando um trecho-chave do discurso:

“O povo brasileiro quer viver bem, comer bem, morar bem (...) quer ter saúde, educação e políticas públicas de qualidade”.

 

Nada disso – comer bem, viver bem, saúde, políticas públicas de qualidade – é possível quando a ciência não é estimulada, respeitada, praticada e, o principal, levada em conta na formulação das ações do governo. Engenheiros que projetam edifícios desconsiderando as leis da física veem suas obras virem abaixo. Líderes que governam países desconsiderando a ciência causam morte e miséria.

 

São Paulo

Impossível tratar do impacto do pleito histórico de 30 de outubro de 2022 sobre a ciência brasileira sem considerar o resultado da eleição paulista. São Paulo é o estado que reúne os maiores motores da pesquisa científica nacional – as “três grandes” universidades (USP, Unicamp, Unesp) e a maior agência de fomento, a Fapesp.

Nesse aspecto, a eleição de Tarcísio de Freitas para o comando do estado parece menos auspiciosa do que a de Lula para presidente. Em que pesem os acenos do recém-eleito futuro governador rumo à moderação, comprometendo-se a trabalhar em parceria com o futuro presidente, resta o fato de que Freitas se prestou ao papel de ser a face do obscurantismo bolsonarista em terras paulistas durante toda a campanha eleitoral.

Além disso, duas intenções já anunciadas pelo governador eleito – retirar as câmeras de vídeo do uniforme dos policiais e acabar com a exigência de vacinas no serviço público (citada em seu discurso de vitória) e nas escolas (citada em entrevistas durante a campanha) não só violam consensos científicos bem sedimentados como, ao fazê-lo, põem vidas em grave risco, inclusive vidas de crianças pequenas e bebês.

O Instituto Questão de Ciência e esta revista manterão a mesma vigilância crítica manifestada desde sua fundação em 2018. Obscurantismo científico já infectava o poder público antes da chegada de Bolsonaro ao poder, e segue entranhado, por exemplo, na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) do Ministério da Saúde, instituída, aliás, durante o primeiro governo Lula.

Os últimos quatro anos viram o problema crônico do desprezo político pela ciência tornar-se agudo, causando morte e sofrimento em escala inaudita neste século. Quanto a isso, somos otimistas de que, ao menos no plano federal, a grande crise logo terá passado.

A ciência brasileira, no entanto, tem um longo caminho a percorrer para voltar à situação (já então nada ideal) anterior ao início do pesadelo de 2019, e agora talvez sem o apoio estratégico do governo paulista. Para avançar além do território perdido, precisará abrir mão da complacência política e do corporativismo feroz que sempre foram marcas presentes no trato institucional com o restante da sociedade e, principalmente, com os detentores do poder. 

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