A perigosa promoção da Medicina Tradicional Chinesa no Brasil

Editorial
28 out 2019
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guerreiros de terracota

Soa emblemático do trabalho de desmonte e depreciação do ensino superior público, promovido pela atual administração federal, que um dos frutos da passagem do presidente Jair Bolsonaro pela China tenha sido a assinatura, em Pequim, de um convênio para o ensino de Medicina Tradicional Chinesa (MTC) na Universidade Federal de Goiás (UFG). 

Desta vez, no entanto, tudo indica que tanto Bolsonaro quanto seu ministro da Educação, Abraham Weintraub, são inocentes do malfeito – a menos que a razão que tenha levado a UFG a firmar o convênio seja desespero, causado pelos cortes de verbas promovidos pelo governo. 

Como a revista britânica The Economist já havia notado alguns anos atrás, o governo chinês vem usando seu considerável poder econômico, canalizado através da rede global de “Institutos Confúcio”, para estimular o ensino e o uso de MTC, um de seus principais produtos de exportação e de projeção de “soft power”,  pelo mundo. O atual presidente chinês, Xi Jinping, fez da promoção global da MTC um de seus grandes objetivos desde que chegou ao poder, em 2012. 

Documento oficial do governo chinês, publicado no final de 2016, declarava que a China iria “apoiar o desenvolvimento global da medicina tradicional” e que “é chegada a hora de uma renascença da MTC”. Como parte do esforço, Pequim promoveu a cooptação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a causa da medicina tradicional, um movimento que atraiu duras críticas no meio científico.

Que a UFG tenha se deixado seduzir pelo canto da sereia é compreensível, mas não menos lamentável: leva-nos a imaginar o que aconteceria se alguma universidade federal fosse confrontada com a promessa de um aporte generoso de verbas, em troca da criação de um instituto de astrologia, ou de terraplanismo.

Esta publicação já tratou dos problemas que cercam a MTC em diversos outros textos, mas aqui vai um resumo: “Medicina Tradicional Chinesa” é uma expressão guarda-chuva cunhada por Mao Zedong, líder da revolução comunista que conquistou o poder na China em 1949, para agregar diversas formas de folclore sobre saúde e curandeirismo tradicional existentes na China – mais ou menos como se a ditadura brasileira de 1964-85 tivesse resolvido juntar num mesmo balaio o passe espírita, a pajelança, a ayuhasca, as receitas de chá da vovó, os rituais de benzedeira e chamar tudo de “Medicina Tradicional Brasileira”. 

É óbvio que o resultado seria uma maçaroca inconsistente, uma mistura de intervenções algumas úteis, algumas plausíveis, algumas risíveis, muitas inúteis e algumas perigosas. Sem testes científicos adequados, o paciente dessa hipotética modalidade tupiniquim estaria entrando num jogo de roleta-russa cada vez que consultasse seu “médico tradicional”. 

A MTC funciona exatamente desse modo. E sua criação por Mao atendeu não a algum tipo de convicção profunda do revolucionário, mas a uma necessidade política: era preciso levar algum tipo de serviço de saúde à população chinesa, e simplesmente não havia médicos suficientes, ou meio de formá-los com a velocidade necessária. Daí, a MTC.

Os esforços de padronização das práticas díspares incluídas sob o guarda-chuva maoísta levaram a uma série de princípios – como o de que o corpo humano é percorrido por meridianos de energia, ou que a saúde depende do equilíbrio entre yin e yang e dos cinco elementos do taoísmo (terra, fogo, água, madeira e metal) – que nada tem a ver com o que a biologia, a fisiologia e a medicina descobriram nos últimos 400 anos, descobertas que permitiram que a expectativa de vida dobrasse no período, e que doenças como a varíola fossem erradicadas.

A MTC também traz riscos graves para o meio ambiente. Sua base mágica e supersticiosa estimula a crença de que certas partes de animais – como chifres de rinoceronte ou ossos de tigre – têm poderes curativos, por conta daquilo que folcloristas chamam de “magia simpática”: rinocerontes e tigres são animais imponentes e fortes, logo o consumo de suas partes deve transferir frações desse “poder” para o paciente. Recentemente, o governo chinês afrouxou restrições para o uso de animais ameaçados de extinção na MTC.

Nunca é demais lembrar que uso tradicional não é um indicador confiável de segurança e eficácia. A erva Aristolochia, usada durante séculos para tratar problemas de saúde que vão de artrite a dores menstruais (pelo motivo, altamente “científico”, de que o formato das folhas lembra um útero) é, na verdade, tóxica e cancerígena: o número de mortes causados pela erva, ao longo da história, é incontável. Milênios de sabedoria popular não foram capazes de deduzir esse fato, revelado por estudos científicos conduzidos com métodos adequados.

Mais recentemente, descobriu-se que a Psoraleae, uma planta usada tradicionalmente na Ásia, pode causar danos graves ao fígado. Ela contém inúmeras moléculas biologicamente ativas, muitas das quais podem ser benéficas para a saúde humana, ou talvez sejam venenos; sem estudos adequados, é impossível saber o que é o quê.

A história ensina que, do ponto de vista da saúde humana, o modo correto de tratar qualquer tipo de “medicina” tradicional – chinesa, brasileira ou o que quer que seja – é como geradora de hipóteses a serem testadas por métodos crítico-científicos. Foi assim que a MTC obteve seu maior sucesso, com a descoberta da artemisinina, remédio eficaz contra malária. 

Não é isso, no entanto, que os centros de “estudo” de MTC, espalhados ao redor do mundo pelo governo chinês, fazem: eles se dedicam a disseminar a doutrina, não a testá-la. Os estudos que conduzem são, quase sempre, primos-irmãos dos estudos sobre homeopatia conduzidos por homeopatas: pressupõem o que deveriam demonstrar; são desenhados como instrumentos de confirmação, não de teste.

Que uma universidade do (ainda) respeitável sistema público federal brasileiro se rebaixe a penhorar o próprio nome numa iniciativa dessas é uma lástima. Só nos resta esperar que a ação seja revertida o quanto antes – ou, ao menos, que não se dissemine a outros campi, como falsa solução para a crise real de penúria que se abate sobre a educação brasileira. 

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