Dieta do tipo sanguíneo não é boa nem para vampiro

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11 dez 2024
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Christopher Lee como Dracula

 

Não sei o que motivou esse fenômeno, mas tenho percebido um aumento abrupto, nas redes sociais, do número de profissionais do meu campo que agora se autointitulam especialistas na dieta do tipo sanguíneo. Acredito que muitos jovens não conhecem a abordagem, embora tenha sido extremamente popular nos anos 2000. Algumas celebridades, como Claudia Raia e Vera Fischer, atribuíam à dieta a manutenção da boa forma física.

Fazendo uma breve síntese do que se propaga: a dieta pressupõe que as lectinas – proteínas presentes em alimentos como grãos, leguminosas e outros vegetais, como tomate e abobrinha – podem reagir negativamente com os mesmos elementos do sangue que são detectados num teste de tipo sanguíneo.

Por isso, segue o raciocínio, seria fundamental conhecer o tipo sanguíneo e buscar orientação de um profissional que compreenda a complexidade do tema. Entre os benefícios atribuídos a essa dieta destacam-se: melhor digestão e metabolismo, redução da inflamação, aumento da energia, alívio de dores – especialmente em pacientes com doenças reumáticas – e, claro, emagrecimento.

Existem  pouquíssimos estudos sérios sobre a dieta do tipo sanguíneo, e os resultados dessas pesquisas contradizem a teoria.

Isso, em outras palavras, indica que esses profissionais de internet ou estão desatualizados, ou carecem de senso crítico. Os conselhos regionais e federais – tanto de Medicina quanto de Nutrição – não reconhecem esse tipo de conteúdo, que, em alguns casos, conta com mais de mil comentários, sendo potencialmente perigoso por disseminar desinformação.

Contudo, como tive um familiar que me presenteou, quando entrei na faculdade, com um livro considerado essencial no campo da naturopatia sobre esse tema, acredito que seja proveitoso – e um pouco torturante para mim – investigar a fundo essa estultice.

 

O nascimento da teoria

Ao que tudo indica, o criador da dieta do tipo sanguíneo foi James L. D’Adamo, um influente naturopata americano (a naturopatia não é uma especialidade médica, embora no Brasil alguns médicos a pratiquem, mas um sistema eclético que reúne diversas modalidades de terapias alternativas, como “detox” e homeopatia).

Sua primeira publicação sobre o tema foi o livro One Man’s Food...is Someone Else’s Poison, lançado em 1980. A obra introduziu a hipótese da dieta do tipo sanguíneo. O foco, para a finalidade deste artigo, é  o capítulo 3, The D’Adamo Discovery. Ali, D’Adamo descreve que, antes de sua descoberta, os naturopatas se dividiam em duas correntes: os que defendiam o regime vegetariano como ideal, e os que acreditavam que a dieta perfeita para todos incluía quatro elementos básicos – carne, leite, vegetais e frutas.

Apesar de algumas discordâncias, esses grupos compartilhavam uma crença comum: toda a Humanidade poderia ser tratada de uma única maneira.

Diferentemente deles, D’Adamo acreditava que, assim como não existem duas pessoas exatamente iguais, também não seria lógico propor que todas consumissem os mesmos alimentos.

Depois de uma série de experiências em diferentes clínicas e diversos pacientes, D’Adamo finalmente hipotetizou que o tipo sanguíneo poderia determinar as necessidades nutricionais de cada indivíduo, e passou a observar como diferentes pessoas, de diferentes tipos sanguíneos (A, B, AB e O), reagiam à composição de suas dietas.

Valendo-se de conceitos sem validade científica – como “nível vibracional” – D’Adamo classificou os alimentos a fim de alinhá-los ao tipo sanguíneo e à "energia corporal" de seus pacientes. Nesse contexto, proteínas animais e laticínios eram classificados como alimentos de "alta vibração", enquanto vegetais, frutas e grãos eram considerados de "baixa vibração". A postura de D’Adamo é messiânica: ele se vê uma um “escolhido” que traz uma importante revelação ao mundo.

Curiosamente, embora tenha sido o criador da teoria, James D’Adamo não foi o principal nome associado a ela. Esse papel foi desempenhado por seu filho, Peter D’Adamo, naturopata e autor do livro  “A Dieta do Tipo Sanguíneo: Saúde, Vida Longa e Peso Ideal de Acordo com seu Tipo de Sangue - o presente que recebi.

 

A continuação do legado

Peter D’Adamo conta no livro ter se dedicado a investigar a teoria desenvolvida pelo pai, e diz ter encontrado evidências ligando o tipo sanguíneo a determinadas doenças.

Foi ele que investigou a relação das lectinas com os diferentes tipos sanguíneos, acreditando que as lectinas presentes em alimentos seguiam uma lógica semelhante à do sangue. Assim, da mesma forma que o corpo de pessoas de um certo tipo sanguíneo tende a rejeitar sangue de um tipo incompatível, haveria incompatibilidade entre certos indivíduos e certas lectinas.

O autor sugere um exame de urina para detectar acúmulo de lectina no corpo. Segundo ele, o consumo regular de alimentos ricos em lectinas ou de difícil digestão pode alterar o resultado de um exame normalmente usado para a detecção de certos tumores. Para garantir a qualidade da amostra, é necessário que o paciente evite o consumo, por pelo menos 24 horas, de alimentos como abacate, abacaxi, banana, nozes, tomate, entre outros.

Só para exemplificar a teoria de Peter D’Adamo, eu, como uma pessoa do tipo AB, estaria fadado a ganhar peso – independentemente de quantas calorias houver na minha dieta – ao ingerir milho e trigo. Curiosamente, ele também afirma que eu perderia peso ao consumir laticínios e frutos do mar, sem considerar as calorias envolvidas.

Mais estranho ainda, alimentos como carne de frango e bovina seriam "nocivos" ao meu tipo sanguíneo, enquanto carne de avestruz seria "neutra" e carne de cordeiro, "benéfica". E, claro, existe leitura de personalidade: pessoas do tipo AB não gostam de se preocupar com detalhes, não guardam rancor, são carismáticas, populares e amáveis. No lado negativo, não merecem confiança.

Como podemos observar, a versão 2.0 da dieta do tipo sanguíneo sofre dos mesmos problemas da versão original: o uso excessivo de casos clínicos como prova cabal de eficácia e o desconhecimento da metodologia científica.

 

As evidências

Embora a literatura científica sobre esse assunto seja escassa, alguns pesquisadores investigaram a plausibilidade da dieta do tipo sanguíneo e seus desfechos em saúde.

Por exemplo, em 2014, Wang, J. e colegas publicaram um artigo intitulado "ABO Genotype, 'Blood-Type' Diet and Cardiometabolic Risk Factors", com o objetivo de determinar a associação entre as dietas do tipo sanguíneo e os biomarcadores de saúde cardiometabólica, além de avaliar se a genética responsável pelo tipo sanguíneo modifica essas associações.

Para isso, foram recrutados 1.639 participantes do Toronto Nutrigenomics and Health Study, um estudo transversal realizado com adultos jovens de 20 a 29 anos. Os participantes foram selecionados entre outubro de 2004 e dezembro de 2010 e responderam a um questionário geral sobre saúde e estilo de vida, que incluía questões sobre características pessoais, sexo, grupo etnocultural e idade.

A ingestão alimentar foi avaliada uma vez por mês, por meio de um questionário alimentar semiquantitativo adaptado com 196 itens.

Cada dieta do tipo sanguíneo foi inicialmente analisada na população total, sem levar em consideração os grupos sanguíneos.

Resumidamente, a dieta do tipo A recomenda o alto consumo de grãos, frutas e vegetais; a dieta do tipo B sugere o consumo elevado de laticínios e ingestão moderada de outros grupos alimentares; a dieta do tipo AB é semelhante à do tipo B, mas com mais restrições alimentares; e a dieta do tipo O promove o alto consumo de carnes e evita produtos à base de grãos.

Ao analisar as relações entre adesão à dieta e os fatores de risco para doenças cardiometabólicas, controladas pelo grupo sanguíneo, observou-se que não houve interações significativas entre o escore dietético e o grupo sanguíneo para a maioria dos fatores de risco.

Com base nos resultados, os autores destacam que a adesão a certas dietas do tipo sanguíneo está associada a um perfil favorável para determinados fatores de risco cardiometabólicos em adultos jovens. No entanto, essas associações não estão relacionadas ao grupo sanguíneo dos indivíduos.

A associação positiva entre a adesão à dieta do tipo A e um perfil cardiometabólico favorável não é surpreendente, considerando que essa dieta enfatiza o alto consumo de frutas e vegetais e o baixo consumo de carne — um padrão alimentar semelhante às recomendações de várias agências de saúde.

A adesão à dieta do tipo AB também foi associada a níveis favoráveis de vários fatores de risco, apesar de permitir um maior consumo de produtos lácteos e derivados de carne. Em tese, esse desfecho positivo pode ser atribuído a itens específicos recomendados ali, como o consumo de ovos e peixes como fontes de proteína animal, além de evitar o consumo de manteiga.

Da mesma forma, a associação positiva entre a dieta do tipo O e níveis mais baixos de triglicerídeos pode ser explicada pela baixa ingestão de carboidratos. Se a investigação parasse por aqui, teríamos a falsa impressão de que a adesão às dietas do tipo sanguíneo traria efeitos favoráveis.

Entretanto, ao comparar os níveis de fatores de risco para doenças cardiometabólicas entre os indivíduos com o grupo sanguíneo correspondente à dieta (por exemplo, pessoas tipo A fazendo a dieta tipo A) e os de grupos “errados” (por exemplo, pessoas com sangue tipo O fazendo a dieta tipo AB), constatou-se que não houve relação significativa entre adesão à dieta e o grupo sanguíneo para a maioria dos fatores de risco. Isso sugere que os efeitos de seguir as dietas do tipo sanguíneo são independentes do grupo sanguíneo da pessoa — quem diria.

Os autores concluem que a pesquisa demonstrou que a adesão à dieta do tipo sanguíneo está associada a perfis favoráveis de risco para doenças cardiometabólicas, uma vez que, em grande parte, essas dietas são prudentes e refletem hábitos alimentares saudáveis. No entanto, os resultados mostraram que as associações observadas eram independentes do grupo sanguíneo e, portanto, não sustentam a hipótese de que cada grupo sanguíneo requer uma dieta específica.

Vale mencionar, porém, que esse estudo traz limitações significativas, como o uso de um questionário alimentar mensal. Não me estenderei nessa primeira limitação, visto que já a discutimos diversas vezes aqui na RQC, mas apenas para relembrar: embora essas ferramentas nutricionais sejam importantes para orientar a avaliação da alimentação das pessoas, elas não são muito confiáveis para determinar com precisão o que foi realmente consumido, uma vez que são principalmente afetadas pela memória dos participantes.

Além disso, é importante destacar que, devido ao design metodológico utilizado, é possível que os resultados encontrados pelos autores tenham sido influenciados por variáveis de confusão.

Dito isso, essa não foi a única pesquisa que tentou encontrar algum respaldo para a teoria da "dieta do tipo sanguíneo". Um ano antes do estudo de Wang sair, Cusack L. et al. haviam publicado "Blood type diets lack supporting evidence: a systematic review".

Nesse artigo, os pesquisadores conduziram uma revisão sistemática, concentrando-se exclusivamente nos desfechos relacionados à saúde provenientes da adesão às dietas.

Foram identificados 1.415 artigos; no entanto, ao aplicarem-se critérios de qualidade para inclusão no levantamento, restou apenas um. E mesmo esse estudo apresentou diversos problemas. Embora a conclusão tenha sido negativa para a relação entre tipo sanguíneo e dieta, dadas as limitações – amostra pequena, problemas na distribuição de voluntários entre grupos, entre outros –, a rigor a questão seguiu em aberto.

Com base nisso, os autores da revisão concluem que as dietas baseadas no tipo sanguíneo mantiveram uma popularidade significativa por mais de uma década, e são endossadas por inúmeras alegações de benefícios à saúde. No entanto, até o momento, não foi realizado nenhum estudo capaz de examinar tais benefícios. Embora existam evidências que associam uma maior vulnerabilidade de certos tipos sanguíneos a doenças específicas e também estudos que sugerem uma relação entre variação genética e respostas a dietas específicas, atualmente não há evidências que comprovem que a adesão às dietas do tipo sanguíneo proporcione benefícios à saúde.

Se levarmos em consideração que essa revisão já tem 11 anos, chega a ser trágico o meu papel de desmitificar algo tão esdrúxulo quanto a dieta do tipo sanguíneo. Mais ridículo do que isso, só a ineficiência dos conselhos regionais e federais — tanto de Nutrição quanto de Medicina — em fiscalizar conteúdos que promovem ao público materiais inverídicos, pautados em pseudociência, e que, em alguns casos, chegam a reunir mais de mil comentários.

Torço para que, em algum momento, esses conselhos sejam mais assíduos na defesa da ciência e adotem uma postura mais severa, seja por meio da aplicação de multas, suspensões ou até mesmo cassações desses profissionais. Infelizmente, considerando o retrospecto até o momento, acredito que essa seja uma posição otimista da minha parte.

 

Mauro Proença é nutricionista 

 

REFERÊNCIAS

D’ADAMO, J. e RICHARDS, A. One Man’s Food… is Someone Else’s Poison. 1980. Disponível em: https://www.amazon.com/Mans-Food-Someone-Elses-Poison/dp/0399900926. D’ADAMO, P. e Withney, C.  A Dieta do Tipo Sanguíneo. 1ª edição. Editora: Alta Books. 3 de dezembro de 2004.

WANG, J. et al. ABO Genotype, ‘Blood-type’ Diet and Cardiometabolic Risk Factors. PLoS One. 2014 Jan 15;9(1):e84749. Disponível em: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0084749.

CUSACK, L. et al. Blood type diets lack supporting evidence: a systematic review. Am J Clin Nutr. 2013 Jul;98(1): 99-104. Disponível em: https://ajcn.nutrition.org/article/S0002-9165(23)05137-7/fulltext.

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