O que é evolução, afinal? (I)

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16 set 2024
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elefantes Unspalsh/Getty Images

 

Um dos maiores obstáculos no caminho de um de meus objetivos principais — escrever um livro sobre evolução — é que sempre me vejo tentando iniciar o livro com um capítulo sobre o que é evolução. Pode parecer simples, e talvez seja, mas definir evolução é uma daquelas discussões de cunho semântico muito difíceis de lidar. Gastei uma boa hora da minha vida sintetizando o que refleti em outras tantas horas, mas não me dou por satisfeito. Hoje, convido você a refletir: afinal, o que é evolução?

A etimologia da palavra evolução traz mais problemas do que resolve. Na primeira edição de “A Origem das Espécies” Darwin nem usa o termo “evolution”. Usa apenas a forma verbal “evolved”, no último parágrafo; a última palavra, inclusive. Ele preferiu o termo “descent with modification” (descendência com modificação, como veremos a seguir), pois como ressalta Gould (2000):

“Darwin nunca considerou 'evolução' como um descritor porque o sentido usual da palavra no inglês implica um conjunto de consequências contrárias às características mais particulares de seu próprio mecanismo revolucionário de mudança — a hipótese da seleção natural”.

Etimologicamente, “evolução” vem do latim “evolvere”. O significado literal é “desenrolar”, implicando “um desenrolar no tempo de uma sequência previsível ou pré-estabelecida, com uma característica inerente de progresso, ou pelo menos de direção” (Gould, 2000). Justamente algo com que Darwin não poderia concordar, uma vez que o processo evolutivo, regulado pelo seu mecanismo preferencial (a seleção natural), provê adaptação a ambientes locais, que são, na escala de tempo geológico, efêmeros e imprevisíveis, definitivamente não-determinísticos. Para Darwin (e para nós!), evolução não é o desenrolar de uma história já escrita, com começo, meio e fim pré-definidos.

Se a etimologia não ajuda, talvez uma outra forma de abordar o problema seja identificando o que não é evolução. Evolução não significa progresso em direção a um objetivo último, um ápice. Evolução não é uma via de mão única. É por isso que não faz sentido perguntar porque os macacos não continuam evoluindo para se tornar humanos — não há razão alguma para supor que deveriam.

Evolução biológica não é como Pokémon. Seres vivos individuais não “evoluem”, exceto metaforicamente (como alguém “evolui” na carreira). Evolução biológica é sobretudo um fenômeno populacional — seja de populações de organismos, ou “populações” abstratas de genes, ou a composição de espécies dentro de um agrupamento hierárquico mais abrangente.

Evolução também não implica que a morfologia de uma espécie vai estar em constante mudança. Na verdade, sabemos que as espécies, uma vez formadas, tendem a se manter morfologicamente estáveis pelo restante de sua existência — há oscilação na morfologia, mas não mudança cumulativa e persistente. Aliás, esse é o cerne da Teoria dos Equilíbrios Pontuados, como já discutimos aqui. Além disso, é possível evoluir (genética e bioquimicamente) sem mudar morfologicamente.

Por fim, evolução não é sinônimo de Seleção Natural. A seleção natural é um mecanismo gerador de evolução e, portanto, não deveria ser incluída na definição,. Há outros mecanismos de mudança evolutiva — já discutimos isso aqui e aqui. Por sinal, o próprio Darwin fazia questão de enfatizar isso, inclusive se sentindo ultrajado quando seus críticos reduziam tudo à seleção natural. Ele escreveu na sexta edição de “A Origem das Espécies” (1872, p. 421):

Mas, desde que as minhas conclusões têm sido, recentemente, fortemente deturpadas, e desde que se tem afirmado que atribuo as modificações das espécies exclusivamente à seleção natural, permitir-se-me-á, sem dúvida, fazer notar que, na primeira edição desta obra, assim como nas subsequentes, sempre reproduzi numa posição bem evidente — isto é, no fim da introdução — a frase seguinte: “Estou convencido que a seleção natural tem sido o agente principal das modificações, mas jamais o foi exclusivamente”. Isto foi em vão. Tamanho é o poder da constante má interpretação.

Pois bem. Tudo isso e ainda não respondemos à pergunta que motiva esse texto. Vamos tentar abordá-la mais diretamente agora.

Na primeira edição de “A Origem das Espécies”, Darwin usou o termo “descendência com modificação” em vez da palavra evolução, como já ressaltei. Algumas pessoas, então, presumem essa definição. Pergunta: é possível haver descendência com modificação, mas sem mudança que possa ser considerada evolutiva?

Por exemplo: se a média de altura dos indivíduos de uma população vai se tornando cada vez maior, geração a geração, mas isso não se deve à disseminação de nenhuma variante genética, devemos considerar essa mudança como de natureza evolutiva? Isso é evolução? Se não, então descendência com modificação pode não ser uma definição muito boa.

Uma definição minimalista muito comum, embasada na genética de populações, é ensinada a todos os estudantes de Ciências Biológicas e repetida quase como um credo: “evolução é a mudança na frequência dos alelos em uma população ao longo das gerações”.

 A Wikipédia traz essa definição de uma forma levemente mais elaborada: “Do ponto de vista genético, a evolução pode ser definida como qualquer alteração no número de genes ou na frequência dos alelos de um ou um conjunto de genes em uma população e ao longo das gerações”. Para quem deixou a biologia para trás no ensino médio: “alelos” são diferentes versões de um gene – como o “dominante” e o “recessivo” das aulas do cursinho.

Essa definição tem o benefício de ser consistente com o que biólogos têm em mente quando dizem que “observaram evolução em tempo real”. Podemos pensar, por exemplo, na evolução da resistência a antibióticos ou pesticidas. Essa definição minimalista de descreve, portanto, algo que só podemos chamar de fato. Ninguém contesta que evolução, nesse sentido, ocorre. Além disso, de uma perspectiva da genética de populações, essa definição minimalista é quase inevitável, devido ao fundamental Equilíbrio de Hardy-Weinberg.

O equilíbrio de Hardy-Weinberg afirma que as frequências de alelos e genótipos em uma população permanecerão constantes de geração a geração, na ausência de forças evolutivas como mutação, migração, seleção natural ou deriva genética. Ele funciona como um modelo nulo porque estabelece a expectativa de que, sob condições ideais, não haverá alteração na frequência dos alelos. Isto é, quando as frequências alélicas observadas em uma população desviam do esperado pelo equilíbrio de Hardy-Weinberg, isso indica que algum fator evolutivo está atuando.

A definição minimalista de evolução, contudo, não é perfeita. Ela tem problemas, então devemos abordá-los. Também devemos abordar definições mais abrangentes e menos reducionistas, que podem ser igualmente úteis. É o que faremos na semana que vem.

 

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

OBRAS CITADAS

DARWIN, Charles R. 1872. The origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. London: John Murray. 6th edition; with additions and corrections. Eleventh thousand.

GOULD, Stephen Jay. What does the dreaded ‘E’ word mean, anyway?. Natural History, v. 109, n. 1, p. 28-40, 2000.

PARA SABER MAIS

Podcast “Infinitas Formas”, Episódio 01 — o que é evolução?

https://open.spotify.com/episode/3pqmE7d1cMV7gNVlj1SKh0?si=9a6483ce0a6d4877

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