Cuidado com a informação online sobre nutrição

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14 ago 2024
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panquecas

 

A desinformação na internet não é um fenômeno novo, especialmente quando falamos de nutrição. É algo tão pronunciado que já foi alvo de inúmeras chacotas, algumas delas bastante engraçadas. Um exemplo disso é o vídeo do “Porta dos Fundos” em que a nutricionista, a cada cinco segundos, pesquisa se há alguma nova “evidência” sobre os benefícios ou malefícios de um alimento. Embora seja vídeo humorístico, ele sintetiza perfeitamente o momento que vivemos, especialmente no cenário da nutrição.

A verdade é que somos bombardeados por uma quantidade imensa de conteúdos sensacionalistas. Para exemplificar o problema, em menos de um ano foi noticiado que o jejum intermitente, além de auxiliar na perda de peso, pode prolongar a longevidade dos praticantes, ao mesmo tempo em que aumenta o risco de doenças cardiovasculares. É bom saber que viverei mais, mas correndo mais risco de morrer de ataque cardíaco.

Quem dera que isso fosse apenas uma reclamação de um cérebro idoso preso em um corpo jovem. No entanto, pelo que li em alguns estudos, minha contestação possui fundamentos.

 

Câmaras, bolhas e nutrição

Caso este seja o seu primeiro contato com os conceitos de echo chambers (“câmaras de eco”) e filter bubbles (bolhas de filtro), vale uma breve explicação. Embora não haja um consenso definitivo, o dicionário de Oxford define echo chambers como “ambientes em que uma pessoa encontra apenas opiniões e crenças que coincidem com as suas próprias, de modo que seus pontos de vista atuais são reforçados e ideias alternativas não são levadas em conta”. Já filter bubbles podem ser definidas como “ambientes virtuais de isolamento intelectual produzidos pelo algoritmo, em que o usuário é exposto apenas a conteúdos e opiniões congruentes ao que já consumiu anteriormente”. É importante ressaltar que essas definições são superficiais em relação ao debate acadêmico amplo sobre o assunto.

Embora não existam trabalhos que tratem especificamente de como os conceitos de echo chamber e filter bubble poderiam influenciar a área da nutrição, é possível traçar alguns paralelos interessantes com base nos resultados apresentados no artigo “A Review of Health Misinformation on Digital Platforms: Challenges and Countermeasures”.

Os autores destacam que a disseminação de desinformação em saúde nas plataformas digitais não é um fenômeno aleatório, mas sim o resultado de fatores intricados e interconectados: (1) amplificação algorítmica (algoritmos projetados para maximizar o engajamento dos usuários podem amplificar conteúdos sensacionalistas ou emocionalmente potentes, provocando reações intensas, o que resulta em maior visibilidade e disseminação rápida); (2) echo chambers e filter bubbles; (3) viés cognitivo (esse fenômeno ocorre principalmente na forma do viés de confirmação e da heurística da disponibilidade, onde o indivíduo tende a favorecer informações que confirmam suas crenças e a confiar em informações prontamente disponíveis, mesmo que imprecisas); (4) apelo emocional (a desinformação frequentemente utiliza apelos emocionais para capturar a atenção e gerar engajamento. Conteúdos que evocam medo, indignação ou excitação têm mais chances de serem compartilhados); (5) métricas de engajamento do usuário (plataformas priorizam publicações com curtidas, compartilhamentos e comentários); (6) falta de alfabetização, ou letramento, digital (os usuários podem não ser capazes de distinguir fontes confiáveis de não confiáveis).

Além disso, salienta-se que as desinformações sobre saúde, em muitas ocasiões, servem para promover terapias alternativas, curas milagrosas ou suplementos não verificados, influenciando indivíduos que buscam soluções para questões de saúde — algo que já discutimos aqui, aqui e aqui.

Eu até queria utilizar de um clichê comum e afirmar que o “campo da nutrição não é imune às desinformações”, mas o que percebo, em muitas ocasiões, é que o nosso terreno é um dos mais férteis para esse tipo de plantio – o que explica a quantidade avassaladora de esquetes humorísticas.

Acredito que todos já se depararam com uma suposta alegação de benefício ou risco de consumir determinado alimento, ou com alguma matéria sensacionalista que incita a consumir um alimento que vai curar qualquer problema de saúde e trazer a pessoa amada em sete dias. Ou ainda, evitar algum alimento que supostamente trará uma morte dolorosa em dois dias. Também, há aquela blogueira fitness que não é formada na área, mas jura que o açúcar vicia mais que a cocaína e que os suplementos são a melhor maneira de manter a saúde em dia.

Mas, como tratei em outro artigo, é importante reconhecermos que a culpa também é nossa, e está ligada à maneira como fazemos pesquisas e reportamos ao mundo.

 

A qualidade das informações

Foi publicado em 2023, no Public Health Nutrition, um periódico voltado a epidemiologistas e especialistas em promoção da saúde interessados no papel da nutrição na prevenção de doenças, uma revisão sistemática intitulada “Quality and accuracy of online nutrition-related information: a systematic review of content analysis studies”.

O objetivo da revisão foi apurar, em relação ao que se publica online sobre nutrição, o nível de qualidade — entendido como a confiabilidade, avaliada por um conjunto de critérios que inclui equilíbrio, imparcialidade, referências e transparência — e de precisão, ou seja, a correção factual. Além disso, a revisão buscou determinar se havia variação entre esses dois fatores em sites, redes sociais ou “editores de informação”, definidos como sites oficiais de órgãos do Estado ou de empreendimentos comerciais.

Para o levantamento dos dados, os autores buscaram pesquisas com revisão por pares, publicadas em inglês, entre fevereiro de 1989 e janeiro de 2021, que avaliaram a qualidade e/ou precisão de informações sobre nutrição em ambientes online, como sites e redes sociais. “Informações relacionadas à nutrição” foram definidas como: dados sobre alimentação saudável, padrões alimentares, nutrientes, requisitos nutricionais, composição nutricional de alimentos, suplementos nutricionais, desfechos de saúde associados a alimentos e padrões alimentares, segurança alimentar, ética alimentar e culinária.

A análise final incluiu 64 trabalhos publicados entre 1996 e 2021. Observou-se uma tendência de crescimento no número de publicações ao longo do tempo: em 1996, havia apenas um estudo publicado, enquanto em 2020, o ano com maior quantidade de publicações, foram registrados 11 estudos. Em 2021, houve apenas três publicações, mas como a data de corte caiu em janeiro daquele ano, a quantidade pode estar subestimada.

No que diz respeito às características mais relevantes encontradas, a maioria das pesquisas (82,8%) avaliou informações publicadas em sites. Os tópicos mais estudados foram o manejo de doenças (26,6%), nutrição "geral" (23,4%) e nutrição materna e infantil (15,6%). Além disso, a maioria dos estudos (54,7%) não se concentrou em informações publicadas em uma região específica. Porém, aqueles que fizeram essa investigação adicional geralmente avaliaram informações publicadas em países de alta renda (43,8%).

O número de publicações nas redes sociais e/ou número de sites analisados nos estudos variou de quatro a 2.770, com uma média de 165,7 publicações ou sites por pesquisa.

Os estudos foram classificados por qualidade segundo uma versão adaptada da ferramenta The Academy of Nutrition and Dietetics Quality Criteria Checklist, baseada em questionários desenhados para determinar validade (os dados do estudo são confiáveis?) e relevância (os dados são relevantes para a saúde humana?).

Os estudos poderiam ser classificados como negativos (baixa validade), neutros (relevância duvidosa, mas de resto bons) ou positivos (boa relevância e boa validade). A maioria dos estudos foi classificada como neutra (51,6%) ou negativa (28,1%), com apenas 13 estudos recebendo uma classificação positiva. Entre os principais motivos para essas classificações estava o risco de viés na seleção da amostra, uma vez que era raro que a triagem de conteúdo envolvesse mais de um pesquisador. Além disso, os critérios de inclusão/exclusão e os métodos de busca não apresentaram detalhamento suficiente. Outro fator importante foi o risco de viés na avaliação da qualidade e precisão das informações, pois alguns estudos não utilizaram ou relataram métodos para medir a confiabilidade dos resultados, e não informaram quantos avaliadores participaram dessa etapa.

Após esse primeiro compilado de dados, os autores classificaram a qualidade e/ou a precisão das informações revisadas pelos estudos incluídos como: (1) pobre, caso a conclusão final do estudo analisado fosse cautelosa ou desfavorável; (2) moderada, se a conclusão final não fosse negativa ou positiva; (3) boa, caso a conclusão final fosse positiva e não expressasse preocupações; ou (4) variada, caso a conclusão final explicitamente declarasse que as informações eram de qualidade ou precisão variável.

Como resultado, observou-se que 48,8% dos estudos que investigaram a qualidade da informação nutricional disponível online concluíram que essa informação é “pobre”. Os estudos que analisaram a qualidade das informações em sites e em mídias sociais apresentaram 47,1% e 62,5% de classificação “pobre”, respectivamente.

No que diz respeito à qualidade e precisão dos editores de informação, os resultados variaram entre os estudos. Por exemplo, três estudos indicaram que sites governamentais apresentaram pontuações de qualidade mais baixas em comparação com outras categorias, como sites de notícias e organizações não governamentais. No entanto, quatro outros estudos atribuíram as pontuações mais altas de qualidade a sites governamentais. Esse padrão de divergência também foi observado em relação aos sites comerciais, com alguns estudos destacando-os favoravelmente, enquanto outros indicaram que suas informações eram de baixa qualidade.

Além disso, organizações e instituições acadêmicas receberam as avaliações de qualidade mais favoráveis em quatro estudos, e fornecem informações mais precisas de acordo com cinco.  Esse parecer favorável também foi dado a publicações feitas por “nutritionist” e “dietitian” – em algumas partes do mundo, há uma diferença nas nomenclaturas: o "dietitian" é o equivalente ao nutricionista no Brasil, enquanto o "nutritionist" é um título autoproclamado por pessoas que falam sobre nutrição, muitas vezes atuando como influenciadores ou coaches de fitness.

Os autores concluem que informações de baixa qualidade e imprecisas relacionadas à nutrição são prevalentes em sites e redes sociais. A qualidade das informações nas redes sociais recebeu uma classificação geral inferior na comparação com a dos sites.

Além disso, os resultados desta revisão indicam que os "editores de informação" não garantem qualidade ou precisão, já que apresentaram alta variabilidade entre os estudos.

Para melhorar a qualidade e precisão das informações nutricionais disponíveis em sites e redes sociais, os autores sugerem que especialistas credenciados e profissionais de nutrição publiquem e promovam suas próprias informações de alta qualidade e precisão. Além disso, as redes sociais e plataformas online devem implementar uma maior regulação e fiscalização das informações publicadas em seus ambientes.

Apesar de concordar parcialmente com a conclusão dos autores, admito que sou bastante cético sobre a ideia de que, para resolver o problema das informações de baixa qualidade, é necessário que profissionais credenciados da área da nutrição postem informações de qualidade.

Para deixar claro, não sou contrário a isso; uma vez que, além de acompanhar alguns perfis de profissionais brilhantes, como os de Igor Eckert, Felipe Almeida e Daisy Mota (ciênciadoexercicio), estou aqui escrevendo para a RQC porque tive a sorte de ter contato com as publicações da revista durante meu período de faculdade e acabei buscando referências mais confiáveis do que as que utilizava.

Entretanto, essa experiência anedótica não muda o fato de que a solução proposta não aborda a raiz do problema. A internet continua sendo uma terra sem fiscalização.

Acredito que todos nós já nos deparamos, pelo menos uma vez, com algum perfil profissional, geralmente com credenciais até adequadas, que utiliza jargões científicos e jura utilizar a ciência como seu norte, ou que todas suas práticas são baseadas em evidência. Mas, no fim das contas, esse profissional não passa de um picareta que seleciona estudos de forma tendenciosa.

Infelizmente, nesse contexto, é quase irrelevante apontar os erros ou fazer um post a respeito do conteúdo. As pessoas que o seguem provavelmente continuarão acreditando que ele está correto, e você, que não concorda com a opinião dele, errado.

Além disso, um novo problema pode surgir, denominado por mim como a expressão em latim "Quis custodiet ipsos custodes", ou, para os geeks de plantão, "quem vigia os vigilantes?". Prometo que este será o último cenário hipotético deste artigo. Vamos supor que dois perfis – blogs ou sites – postem informações divergentes sobre um determinado assunto e, em tese, ambos sejam profissionais sérios da área.

Quem estaria realizando uma postagem com informações de alta qualidade? Possivelmente, você responderia que seria aquele que apresenta as melhores evidências, com o que concordo. No entanto, em muitas ocasiões, não basta simplesmente “ler” as melhores evidências; é necessário interpretá-las.

Existem diversos exemplos disso, mas acredito que há dois mais fáceis de serem visualizados: em pleno século 21 há pessoas que acreditam que homeopatia funciona, mesmo todas as evidências em contrário. E, pasmem, dentro desta amostra há inúmeros profissionais de saúde, como a psiquiatra, homeopata e consteladora familiar que debateu no Inteligência LTDA com o psicólogo Daniel Gontijo e o diretor do IQC Paulo Almeida, e afirmou categoricamente que existem inúmeros estudos que comprovam a eficácia das bolinhas de açúcar.

O segundo exemplo, talvez um pouco mais claro, foi a polêmica ocasionada pela IARC alterando a classificação do aspartame – um adoçante não calórico – para "possivelmente carcinogênico", o que levou inúmeros perfis de nutrição fazerem posts execrando-o e indicando outros edulcorantes, como o xilitol. Novamente, esses profissionais estavam ao "lado" das evidências, mas não souberam interpretá-las. O que nos leva de volta à questão inicial: quem vai decidir o que é uma publicação de alta qualidade?

Sendo muito sincero, eu não tenho uma resposta formada e, por conta disso, acredito que não estejamos diante de uma solução definitiva, pensando no sentido de sanar o problema, mas de uma ferramenta que pode auxiliar no desenvolvimento do pensamento crítico de muitos usuários que, com sorte, terão uma maior capacidade de discernir tais publicações.

 

O que fazer?

Deixando claro, não existe, até o momento, uma diretriz padrão ouro que resolva completamente este problema. Felizmente, alguns autores têm se debruçado sobre a questão.

Por exemplo, Ishizumi, A. et al. publicaram neste ano, na Lancet, um artigo intitulado “Beyond misinformation: developing a public health prevention framework for managing information ecosystems”, no qual apresentam uma revisão narrativa com o objetivo de identificar intervenções para gerenciar a infodemia — um termo que se refere ao excesso de informações, algumas precisas e outras não, que dificulta encontrar fontes idôneas e confiáveis.

Essa revisão busca integrar intervenções que podem fazer parte de um modelo de prevenção em saúde pública, preenchendo lacunas deixadas nos esquemas existentes. Geralmente, tenho um pé atrás com revisões narrativas, pois podem ser tendenciosas e ter como objetivo principal contar uma história. No entanto, acredito que o trabalho apresenta algumas ideias interessantes.

Na revisão, foram incluídos artigos e resumos na língua inglesa, independentemente da data de publicação ou metodologia aplicada, que descrevessem intervenções de gestão da infodemia que tivessem sido implementadas ou que tivessem implicações explícitas para o desenvolvimento de novas intervenções.

Além disso, foram incluídos documentos online não revisados por pares (diretrizes, relatórios, manuais, sites) que discutem a questão ou desafios relacionados, bem como o feedback de especialistas e praticantes que trabalham nesta área, para mitigar a possibilidade de omissão de conceitos-chave.

As possíveis intervenções identificadas vão do combate a periódicos predatórios (que confundem a opinião pública e reduzem a confiança na ciência) a estratégias de fact-checking (para confrontar a informação que já se encontra disseminada), passando por medidas intermediárias, como a “saturação” do ambiente com informações de qualidade, para reduzir os “espaços vazios” que a desinformação poderia ocupar, e processos de escuta comunitária para monitorar as preocupações emergentes do público e detectar os focos iniciais de má informação.

Os autores destacam a necessidade de desenvolver indicadores para medir o efeito da exposição à desinformação, à falta de informação e à sobrecarga de informação, particularmente em relação aos seus impactos na intenção e adoção de comportamentos de saúde. Além disso, esses indicadores poderiam promover pesquisas para identificar comunidades ou indivíduos suscetíveis a infodemias.

Como podemos ver, há um longo caminho a ser percorrido e, possivelmente, ainda enfrentaremos muitos desafios com as desinformações. Se eu precisasse sintetizar tudo em um único conselho, seria: fique atento aos conteúdos que consome, aos perfis que segue e, principalmente, às informações compartilhadas por pessoas em quem você confia – geralmente, seu senso crítico não está tão alerta quando se trata de alguém com opiniões semelhantes às suas. Em tempos de tanta desinformação, questionar e demonstrar ceticismo é uma forma de defesa pessoal.

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

OKORO, Y. et al. A Review of Health Misinformation on Digital Platforms: Challenges and Countermeasures. International Journal of Applied Research in Social Sciences. Volume 6, Issue 1, P. No, 23-36, January 2024. Disponível em: https://fepbl.com/index.php/ijarss/article/view/689.

DENNISS, E.; LINDBERG, R. e MCNAUGHTON, S. Quality and accuracy of online nutrition-related information: a systematic review of content analysis studies. Public Health Nutr. 2023 Jul; 26(7): 1345-1357. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC10346027/.

ACADEMY OF NUTRITION AND DIETETIC (2016). Evidence Analysis Manual: Steps in the Academy Evidence Analysis Process. Chicago: Academy of Nutrition and Dietetics. Disponível em: https://www.andeal.org/vault/2440/web/files/2016_April_EA_Manual.pdf.

ISHIZUMI, A. et al. Beyond misinformation: developing a public health prevention framework for managing information ecosystems. The Lancet Public Health. Volume 9, Issue 6, E397-E406, June 2024. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lanpub/article/PIIS2468-2667(24)00031-8/fulltext

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