A complicada caçada aos periódicos predatórios

Artigo
26 abr 2023
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coruja

 

Publicações recentes do site Predatory Reports, acusando várias editoras de publicarem jornais predatórios, geraram uma certa trepidação nas redes sociais. O site, porém, além de não detalhar de maneira transparente os critérios utilizados para a inclusão das publicações em suas listas, ainda é bastante obscuro em dizer quem fez a classificação – consta apenas uma informação vaga de que representa um esforço de pesquisadores voluntários.

Uma verificação mais cuidadosa na relação de títulos condenados, porém, mostra que em alguns casos houve falta de rigor e um “copiar-colar” de todas as publicações de uma editora – algo que não deveria acontecer, tendo-se em vista as possíveis implicações de aparecer publicamente em uma lista desse tipo. Um exemplo é o Frontiers for Young Minds, que em janeiro foi tema de artigo em The Washington Post. O título é apontado como revista predatória, mas sequer é uma revista – é um site, sem periodicidade, com artigos de divulgação científica, alguns de autoria de ganhadores do Prêmio Nobel, voltados para o público infanto-juvenil (alguns revisores dos artigos são crianças). Isso mostra que a lista publicada não é confiável, e que a denúncia de picaretagem deve ser feita com mais responsabilidade.

John Bohannon é um jornalista de ciência que algumas vezes se valeu do truque de submeter artigos cientificamente reprováveis para revistas científicas, a fim de detectar falhas nos processos de revisão pelos pares e publicação. Em 2013, enviou artigo para 304 revistas de acesso aberto, descrevendo as propriedades anticancerígenas de um composto extraído de um líquen.

Segundo o próprio Bohannon, autor do artigo falso, qualquer revisor com um mínimo conhecimento de química do ensino médio seria capaz de identificar imediatamente as deficiências da pesquisa. Acontece que o artigo foi aceito por mais da metade das revistas. Será que a simples aceitação de um artigo ruim pode ser um critério para a classificação de periódicos como predatórios?

Embora possa haver várias revistas predatórias que aceitaram o artigo falso de Bohannon, o simples fato de publicar um artigo que deveria ser rejeitado não é condição suficiente para que o periódico científico seja classificado como predatório. The Lancet, uma das mais importantes revistas da área da saúde, publicou um artigo vexatório, associando vacinas a autismo, que ainda hoje é mencionado pelo movimento antivacina. A própria Nature, uma das mais reconhecidas revistas de ciência do mundo, ainda que com ressalvas em editoriais (aqui e aqui), publicou um artigo notoriamente incorreto, com declaradas falhas de metodologia, que defende a ideia falaciosa da memória da água. A publicação jamais foi retratada.

A lista de publicações predatórias mencionada no primeiro parágrafo tem como base uma primeira seleção polêmica feita por Jeffrey Beall, que fazia uma forte associação entre a revistas predatórias e a política de acesso aberto. Embora haja algum sentido em associar a disseminação dos periódicos predatórios à política de acesso aberto, já que a esta política abre caminho para a cobrança de taxas dos autores, e a finalidade de uma revista picareta é coletar o máximo possível dessas taxas, a generalização é completamente falsa. Muitas revistas de boa qualidade são de acesso aberto, ainda que os preços cobrados para publicação sejam exorbitantes.

Para investigar a seriedade de algumas publicações, em 2015 a cientista Anna O. Szust se candidatou para ser editora de 360 revistas científicas. O detalhe, porém, é que essa cientista não existe: o perfil falso foi criado por um grupo de pesquisadores poloneses com o objetivo de expor revistas explicitamente predatórias - a palavra oszust, em polonês, significa fraude. O curriculum vitae (CV) da Anna era propositalmente inadequado para o cargo de editora: os artigos de O. Szust não apareciam em nenhuma base bibliográfica e nenhum deles tinha uma única citação. Os livros listados no CV também não existiam.

Diferente e muito mais grave do que revelou a armação criada por Bohannon, onde um artigo de má qualidade foi aceito por algumas revistas, é permitir que uma pessoa escancaradamente desqualificada para o cargo de editora tome as rédeas de uma revista – nesta situação é difícil encontrar algum argumento contrário à classificação do periódico como predatório. As revistas selecionadas para o experimento foram retiradas de três bases conhecidas (120 de cada base): Journal Citation Reports (JCR), Directory of Open Access Journals (DOAJ) e a lista de Jeffrey Beall.

Algumas revistas responderam positivamente à candidatura poucas horas após a “inscrição”. Quatro títulos responderam imediatamente, nomeando-a editora-chefe. Nenhuma revista da base JCR aceitou O. Szust, mas 40 da lista de Beall e oito da DOAJ a indicaram como editora. Pelo menos doze periódicos deram o cargo a O. Szust, condicionando-o (ou fortemente recomendando) a algum tipo de pagamento. Em fevereiro de 2017, os autores do artigo escreveram novamente às revistas que haviam aceitado a candidatura, informando sobre o estudo e dando uma chance para as publicações responderem. Seis jornais negaram ter aceitado a falsa editora e vários criticaram a “pegadinha”.

Os disfarces de seriedade que os periódicos picaretas utilizam são diversificados e, muitas vezes, difíceis de penetrar. Desta forma, o conjunto de condições individualmente necessárias e, coletivamente, suficientes para definir a totalidade das publicações predatórias pode se tornar excessivamente extenso e, por isso, inútil. A inclusão de periódicos científicos em listas de publicações predatórias deve ser feita com muito critério e individualmente – presumir, com base em amostragem, que todas as publicações de uma editora são predatórias é leviano e irresponsável.

Definitivamente, não é uma tarefa simples caracterizar o que é uma publicação predatória. Mesmo que se enumerem critérios para identificação de publicações predatórias, ainda é possível apontar contraexemplos para praticamente cada item da lista. Talvez estejamos aqui em uma situação parecida com a que vivenciou Agostinho de Hipona, no seu livro “Confissões”, para definir o que é o tempo: “Que é, pois o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”

 

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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