Morte de bebê por coqueluche evidencia a ameaça antivacina

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12 ago 2024
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Vacinas salvam vidas. Só nos últimos 50 anos, estimativas apontam mais de 154 milhões de mortes evitadas - das quais 146 milhões, de crianças com menos de cinco anos - graças aos esforços do Programa Expandido de Imunização (EPI) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Lançada pela Assembleia Mundial da Saúde de 1974, a iniciativa assumia o compromisso global de levar vacinas contra difteria, poliomielite, coqueluche, tétano, sarampo, tuberculose e varíola para todas as crianças do mundo até 1990.

Apesar de seu objetivo inicial não ter sido alcançado, o EPI foi instrumental na erradicação da varíola e na quase erradicação da pólio, e continua a guiar a luta pelo acesso universal a imunizantes, agora contra 13 de algumas das principais doenças preveníveis com vacinas que atingem seres humanos, incluindo HPV e COVID-19, além de outras 17 doenças, a depender do contexto regional e socioeconômico, como febre amarela, meningite e cólera.

Neste meio tempo, no entanto, o mundo também viu a ascensão de um movimento antivacina, em especial a partir do fim da década de 1990. Então, o ex-médico britânico Andrew Wakefield publicava na prestigiosa revista Lancet um estudo fraudulento em que associava a vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola) a casos de transtorno do espectro autista em crianças.

Apesar de o tempo também ter demonstrado que a preocupação de Wakefield não era a saúde ou o bem-estar das crianças, mas seu bolso - ele supostamente tinha interesses na distribuição de uma vacina exclusiva "mais segura" contra o sarampo, para qual havia apresentado pedidos de patente -, seu estudo, desmascarado e removido da literatura científica e sua licença médica, cassada, a mentira que fez chegar as páginas da Lancet continua a ser citada por muitos pais, mães e pessoas desinformadas e amedrontadas na hora de justificar porque não pretendem vacinar suas crianças ou se vacinarem.

Com isso, também observamos uma acentuada queda das coberturas vacinais nos últimos anos. O Brasil, outrora referência mundial neste sentido, por exemplo, viu as taxas de imunização contra as doenças incluídas originalmente no EPI sair da casa dos 90% a 100% nos anos 1990 e início dos 2000 para preocupantes 70% ou até menos no fim da década de 2010 e início da de 2020. E embora dificuldades de acesso - como os horários restritos de funcionamento dos postos de saúde - continuem a ser um dos principais empecilhos apontados por pais ou responsáveis para a efetiva vacinação das crianças, o medo de efeitos adversos e dúvidas quanto à eficácia ou necessidade das vacinas aparecem cada vez mais como razões para não vaciná-las.

 

Morte por coqueluche

E é justamente sob este contexto que, no fim do mês passado, a Secretaria de Saúde do Paraná confirmou a primeira morte por coqueluche no Brasil nos últimos três anos. A vítima, um bebê de seis meses, morava na cidade de Londrina. O Brasil e o mundo enfrentam um surto de coqueluche, doença causada pela bactéria Bordetella pertussis e que costuma ter um ciclo epidêmico que ocorre em intervalos de três a cinco anos, podendo chegar a sete. O último aumento expressivo de casos no país, no entanto, tinha sido registrado em 2014, quando foram relatados 8.614, numa incidência que chegou a 4,27 casos a cada 100 mil habitantes. Só este ano, até 4 de julho último, o Ministério da Saúde confirmou 339 casos da doença. Em 2021, 2022 e 2023 foram confirmados 159, 245 e 217 casos de coqueluche, respectivamente.

Desta vez, o ciclo epidêmico está coincidindo com um período de retomada das coberturas vacinais, após anos de queda. A coqueluche é uma das doenças cobertas pela vacina pentavalente, disponível gratuitamente no Programa Nacional de Imunizações (PNI) desde 2012 e que também protege contra difteria, tétano, hepatite B e infecções causadas pela bactéria H. influenzae tipo B, e deve ser administrada em três doses, aos dois, quatro e seis meses de idade, com doses de reforço com a vacina DTP (contra difteria, tétano e coqueluche), conhecida como tríplice bacteriana, os 15 meses e 4 anos.

Antes de 2012, a cobertura no Brasil era feita com a vacina tetravalente, que não incluía a hepatite B, e mais antigamente a tríplice bacteriana. Também é recomendada a vacinação das gestantes com uma versão adulta do imunizante, para prevenir a coqueluche em recém-nascidos.

Dados do Ministério da Saúde apontam que a cobertura com a vacina pentavalente no país caiu de 95,89% em 2013 (primeiro ano completo de seu uso no PNI) para um mínimo de 70,76% em 2019, voltando a subir desde então até chegar a 85,15% este ano. Em Londrina, especificamente, a cobertura foi de 98,08% em 2013 ao mínimo de 45,89% em 2018, voltando ao patamar de 80,74% em 2024.

Após a confirmação da morte do bebê no Paraná, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, reforçou a recomendação de que grávidas e crianças sejam vacinadas contra a coqueluche. Segundo ela, embora o caso não ligue "um alerta”, ele pede “uma vigilância permanente em relação a qualquer agravo de saúde”.

 

Pólio e sarampo

Mas não é só a coqueluche que ameaça as crianças brasileiras. Em 2022, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço regional da OMS, colocou o Brasil entre os países com maior risco de reintrodução da poliomielite no continente, lado a lado com República Dominicana, Haiti e Peru, em função da grande queda na cobertura vacinal. O Brasil registrou o último caso de infecção pelo poliovírus selvagem em 1989, e desde 1994 tem certificado de livre da circulação da doença. A poliomielite - ou "pólio" - é atualmente endêmica em apenas dois países - Paquistão e Afeganistão -, mas com casos do vírus selvagem registrados nos últimos dois anos em outros dois - Malawi e Moçambique -, e outros 32 sujeitos a surtos nos 12 meses anteriores a março deste ano, data da última reunião do comitê da OMS que monitora a disseminação da doença no mundo desde 2014.

Tendo como símbolo o personagem do "Zé Gotinha", as amplas campanhas de vacinação contra a pólio a partir dos anos 1980 buscavam erradicar a doença. A imagem, no entanto, está um pouco perdida no tempo. O esquema vacinal atual contra a doença na verdade envolve três aplicações injetáveis que devem ser feita aos 2, 4 e 6 meses de vida, seguidas por duas doses de reforço - agora sim, orais - aos 15 meses e quatro anos. Entre 1998 e 2015, o Brasil sempre ultrapassou a meta de cobertura de pelo menos 95% das crianças com a três doses iniciais, mas a proporção foi caindo nos anos seguintes, chegando à mínima de 71,04% em 2021. Neste ano, ainda está abaixo do ideal, em 82,58%.

Enquanto isso, outra doença que outrora chegou a ser considerada eliminada no Brasil voltou a fazer vítimas: o sarampo (não por acaso, a doença no cerne da fraude de Wakefield). Em 2016, o país havia passado mais de um ano sem casos "importados" e não via nenhum "autóctone" (originado em território brasileiro) desde 2000, recebendo assim da Opas um certificado de eliminação do sarampo.

Naquele ano, a cobertura vacinal da primeira dose da tríplice viral - administrada em um esquema de duas doses entre 12 meses até 29 anos de idade - estava no limite dos 95% recomendados no país: 95,41%. Número que despencou para 86,24% em 2017 e desde então permanece abaixo do ideal, tendo chegado ao mínimo de 74,94% em 2021. Cenário que fica ainda pior se levado em consideração o esquema completo, com a cobertura passando de 92,88% em 2014 para reduzidos 53,2% em 2021.

Assim, quando uma crise de refugiados da Venezuela atingiu o norte do Brasil, especialmente o estado de Roraima, em 2018, o vírus também cruzou a fronteira e encontrou uma população mais suscetível, o que ajudou que se espalhasse pelo país. Naquele ano, o Brasil registrou 9.325 casos de sarampo, quase todos em Roraima (8.791) ou outros estados da Região Norte, com um total de 12 mortes. Em 2019, os casos chegaram ao pico de 20.901 em todo país. Agora a maioria, no entanto, foi no estado de São Paulo (17.816), com 16 mortes totais. Em 2020, o surto arrefeceu, ajudado pelas medidas de isolamento social da pandemia de COVID-19, e o número de casos ficou em 8,1 mil, desta vez com epicentro no Pará (4.906) e um foco significativo no Rio de Janeiro (1.358), e 10 mortes no total.

"Susto" que acabou sendo mais uma prova da importância da vacinação. Diante do aumento de casos de sarampo, foram realizadas amplas campanhas chamando a população para se vacinar, principalmente nas comunidades atingidas por surtos da doença. Com isso, a cobertura vacinal vem crescendo, com a primeira dose da tríplice viral chegando a 89,55% da população-alvo até junho de 2024, e a segunda dose a 71,37%.

Desta forma, o Brasil completou no mesmo mês de junho passado dois anos sem casos autóctones de sarampo, reacendendo a esperança de retomar a classificação pela Opas de país livre da doença perdida em 2019, após a volta da circulação do vírus em território nacional no ano anterior. É também muito graças à retomada da cobertura vacinal que o Brasil, por enquanto, escapa de outro surto de sarampo que se espalha em algumas partes do mundo, como a Europa e algumas regiões dos Estados Unidos, levando a um aumento no número de casos e mortes e objeto de alerta emitido pela OMS em fevereiro passado.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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