A prefeitura da capital paulista divulgou semana passada, no sistema de matérias pagas do site de O Globo, um press release em que se vangloria de oferecer, no sistema municipal de saúde, boa parte da lista de 29 práticas integrativas e complementares (PICs) aprovadas pelo Ministério da Saúde para uso no Sistema Único de Saúde (SUS). “Matérias pagas” (ou, no eufemismo atual, “conteúdo de marca” ou “publieditorial”) são aquelas publicadas não porque o editor do jornal acha importante, mas porque alguém comprou o espaço.
Deixemos aos analistas políticos a tarefa de decifrar por que o dinheiro do contribuinte paulistano está sendo usado para comprar espaço virtual num periódico carioca. A questão aqui, afinal, é de ciência. A sigla “PICs” serve de guarda-chuva para uma série de propostas terapêuticas e medicamentos que, em comum, têm apenas uma característica: ou nunca tiveram seus riscos e benefícios devidamente avaliados pela ciência, ou foram avaliados – e acabaram rejeitados.
A oferta de PICs pelo poder público é antiética e antieconômica, argumento que tanto o presente autor quanto esta Revista Questão de Ciência desenvolvemos em detalhe em uma série de publicações anteriores (algumas das quais podem ser encontradas aqui, aqui e aqui).
Os exemplos citados na extravagância publicitária da prefeitura paulistana incluem fitoterápicos como valeriana, para os quais alguma evidência de eficácia existe, embora seja fraca e inconclusiva; ou que nem sequer contam ainda com um ensaio clínico concluído, caso da espinheira-santa; passam por modalidades de atividade física de baixo impacto, como ioga e tai-chi, das quais é razoável esperar algum benefício, ainda que inespecífico; e chegam a práticas absurdas e anticientíficas, como a auriculoterapia, e a outras que são claramente placebos, como a acupuntura.
Tapete voador
A matéria paga é exemplar no sentido de que exercita várias das falácias e contradições normalmente mobilizadas para justificar o injustificável – a oferta de terapias infundadas ou de fundamentação duvidosa pelo serviço público. Uma delas é a contraposição entre “tratar o sintoma” (o que, supostamente, é o que a medicina de base científica faz) e “tratar o paciente como um todo” (supostamente, a província das PICs).
O que é falso: a medicina convencional também requer o olhar holístico – se ele não aparece, trata-se de uma falha a ser corrigida, não de uma característica essencial da prática. Citando o médico, jornalista e pesquisador britânico Ben Goldacre, não é porque os aviões são desconfortáveis e às vezes caem que vamos começar a promover o uso de tapetes voadores.
Nesse aspecto, as PICs acabam desempenhando o papel perverso de válvula de escape e de pretexto para a manutenção do caráter industrial, frio e impessoal do atendimento médico típico no sistema público e nos planos privados de saúde: voltando à metáfora aeronáutica, em vez de melhorar os assentos e a qualidade do serviço de bordo, oferecem-se tapetes voadores – que podem ser belos e macios mas, ao fim e ao cabo, não levam ninguém a lugar nenhum.
Falácia do cliente satisfeito
O que não significa que a maciez do tapete não traga algum conforto momentâneo, e que os belos padrões do tecido não ajudem o paciente a se distrair e a se esquecer de que não saiu do lugar. Problemas são a ausência de mudança objetiva – a viagem não aconteceu, a doença real não foi tratada – e a desonestidade intrínseca de se vender ilusão.
Ilusões de causalidade – quando a mente acaba aceitando como verdadeiras relações de causa e efeito que, na realidade, são falsas – são favorecidas quando há alta “densidade de causa” e alta “densidade de efeito”.
No caso de questões de saúde, uma alta densidade de efeito significa que a doença em questão é crônica – os sintomas vêm e vão – ou tem uma alta taxa de remissão espontânea. Em outras palavras, há doenças que tendem a resolver-se sozinhas, ou com sintomas que passam por ciclos de amenização. É por isso que fundamentalmente qualquer remédio para resfriado “funciona”, seja canja de galinha, pílula multivitamínica ou homeopatia: o resfriado ia passar de qualquer jeito.
Alta “densidade de causa”, por sua vez, acontece quando o número de pessoas tentando a pseudocura é elevado, o que aumenta a chance de surgirem, por mero acaso, “resultados positivos”. É excesso de otimismo imaginar que esse mecanismo seja insustentável no longo prazo – que curas ao acaso não possam sustentar a popularidade de um tratamento ineficaz (ou mesmo, ineficaz e altamente perigoso) por anos ou, mesmo, séculos. Basta lembrar o exemplo das sangrias, populares por três milênios.
As duas densidades aparecem muito claramente no material publicitário da prefeitura paulistana publicado em O Globo – ambas, é claro, falaciosamente interpretadas como evidência real de eficácia. O texto cita números enormes de atendimento:
“A auriculoterapia (derivado da acupuntura que consiste na pressão de pontos nervosos da orelha) e a acupuntura são as principais modalidades individuais realizadas. Foram, respectivamente, 192.403 sessões (o equivalente a 51% de todos os atendimentos) e 45.417 procedimentos no primeiro semestre de 2023”.
E, alguns parágrafos adiante:
“De janeiro a 16 de novembro de 2023, a gestão municipal entregou 13.996.700 remédios fitoterápicos nas farmácias da rede municipal de saúde, aumento de 29,78% em comparação ao mesmo período de 2022. Nos últimos nove anos, foram mais de 60 milhões de unidades liberadas”.
Esses dados aparecem entremeados pelos depoimentos de quatro usuários satisfeitos, sendo dois portadores de condições crônicas. Dada a altíssima densidade de causa e a prevalência de casos crônicos, portanto com alta densidade de efeito, provavelmente teria sido possível encontrar centenas ou até milhares de testemunhos positivos. Mas o mesmo pode ser dito da cloroquina ou da ivermectina para COVID-19, e pelos mesmos motivos: um número enorme de pacientes atendidos e uma condição que, na maioria dos casos, tende a resolver-se sozinha.
O uso do brilho da popularidade para ofuscar a falta de evidência concreta de eficácia é estratégia retórica usual no universo das PICs.
Quanto custa?
Uma informação que se torna notável por sua ausência do press release é o tamanho do gasto (ou “investimento”) envolvido na oferta de “mais de um milhão de procedimentos” alternativos em “471 Unidades Básicas de Saúde”. Lemos que a “prefeitura investe na formação e atualização dos profissionais dessa área”, mas não nos dizem quanto é investido.
Por questão de princípio, qualquer centavo da verba pública da saúde gasto em procedimentos e terapias de eficácia nula ou altamente duvidosa é um desperdício; por questão prática, em tempos de aperto fiscal e limitação de verbas, qualquer desperdício é irresponsável.
A perda financeira direta, no entanto, é apenas um dos problemas trazidos pelo endosso de terapias alternativas pelo Poder Público. A ela se somam os perigos muito concretos à saúde dos cidadãos e um profundo efeito deseducador.
O perigo existe, seja porque o perfil de risco da prática oferecida é desconhecido, já que a maioria das PICs nunca foi testada adequadamente para segurança ou eficácia, seja porque a ilusão do tapete voador pode mascarar condições de saúde graves, ou levar o paciente a negligenciar tratamentos de verdade. A deseducação vem da falsa equivalência proposta entre conhecimento científico e mitologias como energia vital e memória da água; entre Engenharia Aeronáutica e magia de conto de fadas. Trata-se de sabotagem contra o letramento científico mais fundamental da população.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)