Sangue, amor e revolução

Apocalipse Now
23 mar 2024
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Ilustração da abóboda celeste Camile Flammarion

 

Você provavelmente não vai encontrar o nome do médico francês do século 17 Jacques Ferrand em nenhuma história geral da Medicina. Eu mesmo só esbarrei nele graças a uma menção breve, um parágrafo curto, durante uma pesquisa que estava fazendo sobre a história da sangria, ou flebotomia – a remoção de sangue do corpo de uma pessoa para fins terapêuticos, seja por meio de cortes nos vasos sanguíneos ou pela aplicação de sanguessugas na pele.

Hoje em dia, a flebotomia é recomendada apenas para algumas condições específicas, como o acúmulo excessivo de ferro no sangue. Mas, durante quase 3 mil anos, a prática foi recomendada e adotada, tanto no Ocidente quanto no Oriente, para praticamente quase tudo – de depressão a febre amarela. Houve períodos na história europeia em que ser sangrado por um médico (ou barbeiro) era um procedimento periódico, de rotina, procurado até mesmo por pessoas saudáveis; uma forma de “medicina preventiva”.

Importantes figuras históricas como George Washington, Wolfgang Amadeus Mozart e o poeta inglês Lorde Byron provavelmente tiveram a morte, se não causada, ao menos acelerada pela “terapêutica”. Byron, em particular, detestava o procedimento, e relutou até o último minuto antes de aceitar submeter-se a ele; quando morreu, os médicos culparam a teimosia do poeta, que só havia aceitado sangrar “tarde demais”. Maria Antonieta, a rainha francesa de triste memória, desmaiou depois de dar à luz o primeiro filho e foi “revivida” por uma sangria (todas essas histórias aparecem no livro “Quackery”, da médica e escritora Lydia King e do jornalista Nate Pedersen).

 

Loucura de amor

Ferrand entra na história da flebotomia por ter recomendado, num livro publicado em 1623, a sangria – de preferência, até o ponto da falha cardíaca – como uma cura possível para “melancolia de amor”, o que hoje em dia chamaríamos, talvez, de paixão (ou, dependendo da gravidade e das consequências, obsessão): o desequilíbrio mental trazido pelo desejo sexual intenso e não correspondido.

O curioso é que o livro de Ferrand de 1623 representava uma segunda edição – mais comportada e concentrada em soluções cirúrgicas para problemas sexuais – de um tratado anterior, de 1610, que havia sido condenado (e queimado) pela Inquisição.

Artigo publicado pelo crítico e historiador Donald A. Beecher em 1989, no periódico The Sixteenth Century Journal, explica que, para além da linguagem extravagante (não sei o que passava por erotismo quatrocentos anos atrás, mas expressões como “labirinto do amor” e “chiqueiro de Vênus” não me parecem exatamente lúbricas), a primeira edição propunha curas e terapias que soavam muito como magia e astrologia, e era muito agressiva em seu tom polêmico: o (pequeno) valor do livro de Ferrand na história da Medicina reside no fato de que ele representa um lance da disputa entre médicos e teólogos pelo controle do discurso sobre mente e sexualidade. Ferrand vê o desejo sexual como tendo causas físicas e, se inconveniente, tratável por meios físicos (meios que, seguindo a visão dominante na época, incluíam poções, mandingas e a influência dos astros); não como um pecado ou defeito da alma a ser corrigido por oração e batalhas espirituais.

A segunda edição, de 1623, desenfatiza as curas “mágicas” ou “pagãs”, dá maior peso a propostas cirúrgicas (incluindo uma cura da obsessão amorosa via abertura e sangramento das hemorroidas), usa uma linguagem mais sóbria e condena, sem meias-palavras, a ideia de que o recurso ao adultério ou a outras formas “pecaminosas” de sexo possa ser terapêutico. Mas inclui um capítulo inteiro defendendo o caráter científico, não mágico, e materialista da astrologia – os astros agiriam diretamente sobre o corpo e apenas indiretamente sobre o espírito – e mantém a reivindicação de que o tratamento das perturbações emocionais trazidas pelo sexo é da alçada dos médicos, não dos padres.

Ele não negava que os sentimentos existiam na alma, mas afirmava que a alma estava sendo perturbada por alterações físicas. No caso, por um agravamento mórbido da “melancolia”, um dos quatro temperamentos da Medicina clássica, condição causada pelo excesso de um suposto fluido corporal (na realidade, inexistente) chamado bile negra. Sua opinião era de que patologias envolvendo o corpo, mesmo quando tocam a alma, devem ser tratadas por médicos.

Além de discutir os problemas do desejo não consumado, os tratados de 1610 e 1623 incluíam ideias e “tratamentos” para impotência, falta de prazer e outros problemas relacionados ao sexo.

 

Revoluções

A história de Ferrand representa um bom exemplo de como o pensamento científico evolui não por meio de grandes saltos, mas de transições complicadas, em que mesmo os defensores do “moderno” (perturbações sexuais vistas como problemas médicos) seguiam impregnados pelo “arcaico” (astrologia, teoria dos humores, apelo à autoridade).

Se, olhando para o grande panorama dos séculos, parece fácil encontrar pontos de revolução ou saltos súbitos, basta assumir uma visão um pouco mais granular, microscópica, para ver que o que de longe parecia um salto imenso na verdade foi uma sequência de pequenos passos, nem todos na direção certa, e vários tropeços. O mundo não vai dormir alquimista uma noite para acordar químico no dia seguinte.

O mesmo se aplica, aliás, à noção de que sangrias seriam panaceias, que já se encontrava em decadência quando a aplicação de métodos estatísticos à Medicina chegou para desmoralizar a ideia de vez, no século 19. Mesmo assim, a prática sobrevive em nichos: em 2010, o estado da Califórnia, nos EUA, teve de aprovar uma lei para proibir acupunturistas de sangrar seus pacientes.

Em 1816, o médico militar britânico Alexander Hamilton descreveu, em sua tese de doutorado, um experimento supostamente conduzido durante as Guerras Napoleônicas, em que a taxa de mortalidade entre soldados tratados com sangrias teria sido dez vezes maior do que entre soldados não sangrados.  Aparentemente, há dúvidas sobre se o experimento descrito por Hamilton de fato ocorreu, ou se ele teria inventado o caso para ilustrar a tese.

Mas em 1834 o médico francês Pierre Charles Alexandre Louis publicou um livro em que descrevia como a aplicação de um “método numérico” (que, em suas palavras, requer “levar em conta as diferentes circunstâncias de idade, sexo, temperamento, condição física, história natural da doença e erros na aplicação da terapia” de cada paciente) para comparar diferentes desfechos de casos de pneumonia, com e sem sangria, indicava que o tratamento era inútil. E em 1855, o professor de Medicina escocês John Bennett deu uma aula em que atribuía a queda da mortalidade de pacientes de pneumonia, nas décadas anteriores, à perda de popularidade das sangrias.

Os trabalhos de Louis e Bennett foram recebidos com reservas em seu tempo, por médicos aferrados às formas mais tradicionais de tratamento, a modelos teóricos de anatomia, fisiologia, saúde e doença para os quais a flebotomia mais ou menos generalizada “fazia sentido”, ou que tinham “experiência pessoal” com o suposto sucesso dos sangramentos: havia livros-texto de Medicina recomendando sangrias até pelo menos a década de 1920.

Os argumentos falaciosos – experiência pessoal, modelos teóricos compatíveis, tradição –, seja em conjunto, em diferentes combinações ou individualmente, continuam a ser invocados ainda hoje, na defesa de terapias já demonstradas ineficazes ou danosas por testes clínicos controlados, a versão avançada do “método numérico” de Louis. Mais um exemplo de como revoluções do conhecimento nunca prosseguem de modo linear – e podem precisar de séculos, ou mais, para cumprir seu curso.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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