Uma das consequências mais interessantes do lançamento de “Que Bobagem!” foi o número de sugestões que recebemos de temas para compor um hipotético segundo volume dedicado a, parafraseando o subtítulo do livro, “mais pseudociências e ainda outros absurdos que não merecem ser levados a sério”. Um dos campeões de indicação é a prática e doutrina do feng shui, que vem se tornando uma espécie de exigência de mercado imposta por clientes “antenados” (e endinheirados) a arquitetos e decoradores indefesos.
Definir exatamente o que é feng shui não é simples. Autores tão diversos como o filósofo australiano Michael Matthews (autor de “Feng Shui: Teaching About Science and Pseudoscience”) e o consultor profissional de feng shui David Daniel Kennedy (que legou à posteridade o volume “Feng Shui for Dummies”) explicam que, para muitas pessoas na Ásia, o sistema representa uma visão de mundo, um princípio organizador do universo natural e social comparável, em impacto e penetração cultural, ao cristianismo no Ocidente.
E que princípio é esse? A ideia geral é de harmonia, em especial de harmonia com os fluxos de qi, ou chi, a mesma energia vital que, supostamente, justifica a prática da acupuntura e outras formas de terapia baseadas na medicina tradicional chinesa (MTC). Mas enquanto a MTC se ocupa dos fluxos de chi pelo corpo humano, o feng shui cuida das correntes energéticas na escala da paisagem, do tempo e do espaço. Como escreve Matthews:
“Crenças de feng shui se aplicam à maioria dos aspectos da vida cotidiana: o desenho de construções domésticas, comerciais e públicas; a localização e orientação das sepulturas; a utilização de práticas da Medicina Tradicional Chinesa (...) a leitura da sorte e a adivinhação; a escolha dos momentos auspiciosos para o casamento, o início da construção de edifícios, para abrir um restaurante, para o lançamento de uma empresa na bolsa de valores, para sair de férias”.
A aplicação mais disseminada, conhecida (e lucrativa) do feng shui está na arquitetura e na decoração: a disposição de portas, janelas, das plantas no jardim e da mobília e das obras de arte no interior de um edifício podem, supõe-se, facilitar ou dificultar o fluxo de chi, que por sua vez pode ocorrer de forma benéfica ou deletéria. Como diz uma piada encontrada na internet, “troque a psicanálise e o coaching pelo feng shui: pare de culpar seus pais e a si mesmo por seus fracassos, e passe a culpar seus móveis”.
Matthews cita, como exemplo do impacto econômico do feng shui, a influência do sistema na indústria hoteleira asiática. “Decisões sobre localização, layout, mobiliário, decoração e marketing de hotéis, resorts e restaurantes dependem de consultorias sobre o feng shui positivo. Se o feng shui negativo de uma instituição for reconhecido ou anunciado pela concorrência, o resultado será fuga de clientes e prejuízos”, escreve.
O psicólogo especialista em superstições Stuart Vyse discute, em artigo publicado na revista Skeptical Inquirer, os efeitos do feng shui sobre o mercado imobiliário da Ásia. Ali, cita um estudo de economistas de Taipei mostrando que feng shui negativo causa depreciação no valor de imóveis residenciais de luxo em Taiwan (mas não na moradia popular). A expansão econômica da China nas últimas décadas globalizou essa faceta de “superstição de luxo” do feng shui, que passou a encantar celebridades e milionários na Europa e nas Américas, exasperando alguns arquitetos e decoradores e fazendo a fortuna de outros.
Nunca é demais reafirmar que o feng shui, ao fim e ao cabo, reduz-se a mera superstição, às vezes flertando com a pseudociência (quando, por exemplo, proponentes tentam “explicar” o chi apelando para a linguagem do eletromagnetismo).
É verdade que o sistema, se visto como metáfora, oferece uma filosofia de vida que pode ter lá seu mérito, a de que é melhor surfar nas ondas do destino do que tentar furá-las. Também dá para reconhecer que a doutrina até contém algum bom senso; por exemplo, para quem vive no Hemisfério Norte, o princípio feng shui de sempre construir na face sul da colina faz sentido, já que essa é a face que recebe luz do sol o ano todo.
O influenciador feng shui do TikTok (sim, isso existe) Cliff Tan é muito bom em chamar atenção para esses aspectos supostamente racionais e positivos do sistema. Preste atenção nessa amostra da retórica de seu livro “Feng Shui Modern”:
“O Feng Shui trata de compreender e melhorar o seu ambiente, tornando-o o melhor possível para o seu próprio desempenho nos vários aspectos da sua vida. Para aproveitar ao máximo o seu ambiente, você precisa compreendê-lo totalmente”.
Mas acontece que quem compra e vende feng shui não está interessado em metáforas, nem em mero bom senso (que, afinal, não tem grife ou aura de mistério). Na prática, o que se vê são afirmações sem base nenhuma na realidade, a respeito do comportamento de uma energia vital inexistente (para quem quiser saber como podemos afirmar que a tal energia não existe, há material aqui e aqui), e algumas pequenas ilhas de bom senso cercadas de superstição por todos os lados.
A superstição não é difícil de reconhecer: não é porque os princípios vêm de uma cultura diversa da nossa que os sinais deixam de ser claros; basta, na verdade, comparar as “regras” do feng shui às “regras” do pensamento supersticioso presente no mundo ocidental para detectar as enormes semelhanças de família.
Na Europa medieval, uma forma de impedir que vampiros atacassem os vivos era espalhar grãos de arroz na estrada entre a vila e o cemitério: os mortos-vivos seriam compelidos a catar todos os grãos, atividade que os manteria ocupados toda a noite. No feng shui, fantasmas sempre viajam em linha reta, então caminhos em arco ou recurvados, levando até a porta, protegem casas e templos contra maus espíritos e assombrações.
No Ocidente, passar embaixo de uma escada apoiada na parede – “quebrar” um triângulo – dá azar. No feng shui, casas triangulares, ou com muitos ângulos e pontas, dão azar. No feng shui, espelhos nunca devem ser colocados na parede oposta à entrada da sala, porque acabam refletindo o chi de volta para fora. Já na tradição supersticiosa brasileira, ensina Câmara Cascudo, o “reflexo do espelho é força defensiva, repelindo, afastando, contrariando a magia inimiga. Os espelhos espalham-se em trajes, altares, móveis, decorações, como amuletos poderosos”.
Como toda superstição, o feng shui se beneficia de falsas correlações e do viés de confirmação: pessoas já predispostas a acreditar em seus princípios começam a prestar atenção desproporcional a situações em que eles aprecem ter “funcionado”, ignorando exemplos contrários. E, assim como todo sistema totalizante, que se propõe a explicar, numa só chave, uma infinidade de fenômenos disparatados – do sucesso comercial de um empreendimento ao fracasso de uma relação afetiva –, tende a funcionar mais ou menos como uma teoria de conspiração: a partir do momento em que se aceitam os pressupostos do feng shui como reais, ilusões de confirmação começam a saltar diante dos olhos, vindas de toda parte.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)