Imagine que um mágico, contratado para animar uma festa infantil, comece a dizer que o coelho que sai da cartola, a moeda que desaparece e a carta do baralho que ele adivinha não são truques, mas manifestações reais de um poder paranormal – esta afirmação certamente causaria risadas nas crianças, que a considerariam parte do entretenimento. Mas e se no lugar dos coelhos, moedas e baralhos a mágica fosse entortar colheres? Embora a situação seja completamente análoga, Uri Geller chamou a atenção de celebridades, da grande imprensa e até da revista Nature ao dizer que seus truques eram manifestações do “poder da mente”.
Uri Geller ficou famoso nos anos 1970 e 1980, impulsionado por uma espécie de histeria coletiva que o alçou à posição de superastro internacional. Recentemente, Geller retornou à imprensa graças a um longo artigo publicado em The New York Times, intitulado, em tradução livre, “O fim de 50 anos de rancor do mundo da mágica”. O texto não somente romantiza a trajetória de alguém que ficou famoso por vender a imagem de que detinha poderes que contrariavam as leis da natureza, como desinforma o público, quando diz que os céticos não podiam vencê-lo.
Induzir os leitores a achar que Geller não foi desmascarado, como aparece na linha fina do artigo, é simplesmente negar todas as vezes em que seus truques foram denunciados e reproduzidos por mágicos profissionais – é o análogo de colar um cartaz com máxima “eu quero acreditar” na parede do escritório, imitando o detetive Fox Mulder no seriado Arquivo X. Neste vídeo, por exemplo, é possível ver os truques de Uri Geller serem reproduzidos ao vivo em um programa de TV.
Vale a pena mencionar aqui a máxima da “Navalha de Ockham”, Pluralitas non est ponenda sine neccesitate. A frase em latim diz que a pluralidade não deve ser invocada sem necessidade. Embora William de Ockham tenha vivido no século 14, o termo “Navalha de Ockham” foi utilizado pela primeira vez no século 19 pelo matemático William Rowan Hamilton. De maneira simplificada, se existem várias explicações competindo para dar conta de um mesmo fenômeno, a hipótese mais simples tem maior probabilidade de ser a correta: ou seja, para entender truques com colheres não precisamos recorrer a violações das leis da física, pois o acontecimento pode ser explicado e reproduzido por mágicos profissionais.
Apesar dos vários problemas envolvendo as aparições de Uri Geller, este texto não pretende percorrer sua biografia, apontando os deslizes éticos de sua trajetória, mas questionar a postura da imprensa. Confundir o leitor, relativizando ou eliminando o limite que separa a realidade da ficção, não é função do jornalismo. Apesar de equivocada, a publicação pode servir para apontar alguns erros comuns da mídia.
A narrativa de que há um consenso na comunidade de mágicos pela redenção de Uri Geller é, no mínimo, exagerada. Colocar depoimentos de alguns ilusionistas que no passado criticaram, mas que acabaram se aproximando de Geller, é um recorte tendencioso que desconsidera a veracidade que viria de dar à notícia um contexto mais amplo e representativo. Este é um exemplo de como o jornalista pode ser objetivo e trair o leitor ao mesmo tempo – afinal, as aspas no texto supostamente reproduzem as falas dos personagens, mas a narrativa criada não está correta. Neste caso, em se tratando de opiniões (não fatos) pessoais a respeito de um personagem controverso, é imprescindível mostrar o outro lado, com posicionamentos desfavoráveis.
Apesar de todo o texto ser redigido para lançar uma aura de glamour sobre o protagonista, associando-o a artigos de luxo e celebridades, o artigo do Times não convence o leitor ao embasar a linha narrativa em aspas como: “Acho que o mundo está ciente de que, se ele for fraudulento, existem mentiras e fraudes maiores por aí que são muito mais prejudiciais”.
É surpreendente que esse tipo de argumento estúpido não tenha feito soar um alarme na cabeça do jornalista. A frase não somente é vazia, já que tudo pode piorar (ou melhorar), como a justificativa faz parte do universo da personagem Pollyanna, onde sempre existe um lado bom de tudo – para quem escreveu o texto não deve ser ruim perder um olho, porque ainda restaria outro. O artigo falha em coletar as evidências para defender o auto aclamado paranormal.
Por fim, considerando a necessidade da transparência jornalística, deveríamos nos perguntar por que um jornal do porte de The New York Times aprovaria uma pauta desse tipo. É difícil crer que não existe um assunto/abordagem melhor do que exaltar a vida de uma pessoa que, nas palavras do próprio autor, foi o “precursor analógico das deep fakes digitais”. Oferecer como “moral da história” a ideia de que “o Sr. Geller é um artista, alguém que descobriu que desafiar nosso relacionamento com a verdade e nos desafiar a duvidar de nossos olhos pode inspirar uma espécie de admiração” é realmente preocupante. Quo vadis, jornalismo?
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência