A mídia nacional e internacional divulgou, há alguns dias, a publicação, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), de um novo guia sobre o uso de edulcorantes “não açúcar” – mais especificamente, de substâncias, tanto naturais quanto artificiais, usadas para adoçar alimentos e que contêm menos calorias que o açúcar comum. Já tratei, em detalhe, da segurança desses produtos em outro artigo. Aqui, o assunto é o guia em si, e sua repercussão.
Primeiro, vejamos como o documento foi noticiado: “OMS lança diretriz para que adoçantes sem açúcar não sejam utilizados no controle de peso” e, continua: “Evidências sugerem que esse tipo de adoçante não traz benefício a longo prazo para a redução de gordura corporal e ainda pode provocar efeitos nocivos em adultos”.
A priori, poderíamos pensar que se trata de noticiário sensacionalista onde os culpados são os jornalistas desesperados por audiência (o famoso clickbait). Entretanto, ao ler o documento na íntegra, é possível verificar que o grande culpado pelo sensacionalismo foi a própria organização.
Antes de nos aprofundarmos no documento, é necessário ressaltar que apesar de a OMS ser um órgão sério e respeitabilíssimo, ela está longe de ser perfeita. Existiram outras diretrizes/ações que mereceram o mesmo “puxão de orelha”, como descrito pelo artigo “World Health Organization Endorses Quackery” escrito pelo brilhante Steven Novella – fica a recomendação de leitura.
Pensando nos leitores que não têm tempo hábil para ler este artigo até o fim, adianto que vocês podem ficar tranquilos. Levando em conta o nível de evidência disponível até o momento, o alarde criado pela OMS em torno dos edulcorantes carece de bases sólidas. O que o órgão internacional fez, na verdade, foi uma extrapolação de dados observacionais (ou seja, correlações, que podem ser meras coincidências) e uma abordagem tonta na hora de lidar com a ausência de evidências de longo prazo para perda de peso. Caso você ainda continue com dúvida, sugiro que veja a postagem do nutricionista Igor Eckert, uma voz racional no meio do chorume das redes sociais
Para quem quiser entender o que se passa em mais detalhe, transcreverei a seguir parte das “evidências” citadas pela OMS e explicarei onde a organização erra.
Evidências e recomendação
O novo documento da OMS nasceu com o intuito de fornecer orientações sobre o uso dos adoçantes não calóricos (NSS) para políticos, profissionais da saúde e outros profissionais com a missão de reduzir a ingestão de açúcar, promover alimentações saudáveis e prevenir o ganho de peso não saudável e doenças crônicas não transmissíveis relacionadas à alimentação.
Como evidência, os autores ressaltam uma recente revisão sistemática e meta-análise composta por ensaios clínicos randomizados e controlados (RCTs) e por estudos observacionais prospectivos. Observou-se, em RCTs de baixa duração, que adultos com maior consumo de NSS apresentaram menor peso corporal e índice de massa corporal (IMC) quando comparados àqueles que não consumiam NSS ou que consumiam baixas quantidades. Contudo, ao analisar os estudos observacionais prospectivos de longa duração, o que ocorria era o contrário: indivíduos com alto consumo de NSS estavam associados a maior risco de incidência de obesidade e IMC elevado.
Os pesquisadores ressaltam que os efeitos benéficos encontrados nos RCTs só aparecem quando o consumo de NSS é comparado ao consumo de açúcar, ou seja, a perda de peso é mediada pela redução calórica.
Saindo da perda de peso e adentrando no terreno das patologias, os autores pontuam que estudos de coorte prospectivos (onde grupos similares que diferem na característica de interesse, no caso consumo de adoçantes, são comparados ao longo do tempo) realizados em adultos demonstraram uma associação entre a utilização em longo prazo de NSS e o aumento do risco de diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e mortalidade. Contudo, marcadores intermediários como glicose em jejum, insulina em jejum e perfil lipídio não se apresentam alterados – de maneira significativa – quando aferidos em RCTs.
Uma diferença essencial entre um estudo de coorte prospectivo e um RCT é que no RCT a distribuição dos voluntários entre grupos – essas pessoas vão consumir adoçantes, essas outras não – é aleatória, enquanto no estudo de coorte os cientistas apenas observam o que já existe “na natureza”: os grupos são autosselecionados. Isso aumenta muito o risco de haver fatores extras, para além da variável de interesse, interferindo no resultado.
Os autores do guia da OMS afirmam também que os estudos conduzidos em crianças e mulheres grávidas apresentam mais limitações do que os realizados em adultos e não gestantes e, por conta disso, há evidências contraditórias.
Por exemplo, um RCT conduzido em crianças reportou reduções severas em gordura corporal quando os voluntários trocaram os refrigerantes com açúcar pela opção diet. Contudo, quando esses resultados foram combinados aos de uma segunda investigação, não se encontrou diferença estatística significativa no IMC entre as crianças que consumiam e as que não consumiam adoçante. Além disso, estudos prospectivos observacionais não encontraram nenhuma associação significativa entre a utilização de NSS e medidas de gordura corporal.
Por fim, uma meta-análise composta por três estudos observacionais prospectivos encontrou uma associação entre o alto consumo de NSS durante a gravidez e aumento no risco de nascimentos prematuros.
Por conta desse cenário, o guia recomenda:
“OMS sugere que adoçantes não calóricos não devem ser utilizados para controle de peso e nem para reduzir o risco de doenças crônicas não transmissíveis (recomendação condicional)”.
O que as evidências não mostram
Antes de mais nada, precisamos entender o que seria uma recomendação condicional, de acordo com o próprio documento (pág. 21):
“Recomendações condicionais são aquelas para as quais o grupo de desenvolvimento das diretrizes da OMS tem menos certeza de que a implementação de uma recomendação trará mais consequências positivas do que negativas ou, ainda, quando os benefícios previstos são muito pequenos”. Em outros termos, pode relaxar, essa recomendação não traz nenhuma conclusão essencial.
Com relação às evidências, temos alguns problemas capitais que não foram levados em consideração na análise da organização.
Primeiro, os autores partem do pressuposto que a falta de ensaios clínicos randomizados de longa duração é – de alguma maneira – prova cabal da ineficácia dos NSS. Obviamente, isso é um erro. Não é porque não existem estudos de longo prazo que, automaticamente, os NSS são ineficazes – um caso clássico de “ausência de evidência não é evidência de ausência”.
Segundo, todos os achados considerados “ruins” – maior risco de obesidade, gordura corporal, IMC, diabetes tipo 2 e doenças cardiovasculares – foram encontrados em estudos observacionais prospectivos. Esses são estudos que conseguem, no máximo, traçar uma correlação entre a ingestão dos NSS e algum desfecho. Claro, toda causalidade acaba gerando uma correlação, mas o contrário não é verdade. Por isso, é importante diferenciar coincidências de relações legítimas de causa e efeito. Ou você acredita que refrigerante causa calvície em homens?
Levando isso em conta, o material da OMS apresenta argumentos para defender que as associações encontradas não são fruto de causalidade reversa (se obesos, preocupados em controlar o peso, bebem muito mais refrigerante diet do que pessoas em boa forma física, pode-se dizer que obesidade “causa” consumo de edulcorantes sem açúcar) e nem de fatores de confusão.
Os autores do guia da OMS afirmam que os idealizadores dos estudos utilizados consideraram o potencial da causa reversa e as variáveis de confusão (peso corporal, pré-existência de obesidade ou sobrepeso), realizando esforços para minimizar o impacto de tais fatores nas conclusões. Por exemplo, controlaram fatores de confusão importantes – caso do IMC –, estratificaram os resultados por peso corporal e conduziram diversas análises de sensibilidade, como limitar a análise de indivíduos com peso corporal normal, remover da análise indivíduos que apresentavam risco de alguma doença no começo do estudo, ou aqueles que perderam peso intencionalmente.
As diversas análises de sensibilidade mostraram que alguns resultados foram atenuados, outros fortalecidos, alguns só eram observados em ingestões muito altas, enquanto outros só eram vistos em indivíduos com peso adequado. Porém, mesmo após os ajustes nos modelos, as associações mantiveram-se persistentes na maior parte dos estudos, particularmente as relacionadas ao diabetes tipo 2.
Por fim, os autores concluem que, devido à persistência das associações em indivíduos com peso controlado e a evidência limitada – baseado em dois estudos com diversas limitações, de que tratarei a seguir – do efeito dos NSS na incidência de obesidade, é possível que o ganho de peso seja decorrente do uso crônico de adoçantes não calóricos, que seria um passo intermediário no desenvolvimento da doença.
Acho essa hipótese incrível – literalmente –, e gostaria que estes resultados também pudessem ser encontrados em metodologias capazes de estabelecer causalidade. Vamos ver que os estudos supracitados – que serviram para a “evidência limitada” – têm limitações importantes.
No primeiro, Fowler, S. et al (2012), os autores examinaram a relação do consumo de bebidas adoçadas artificialmente (ASB) com o ganho de peso a longo prazo no San Antonio Heart Study (1979 até 1988). A primeira medição de altura, peso e consumo de ASB contou com 5.158 voluntários e, após 8 anos, 3.682 voluntários foram reexaminados.
Como resultado, os pesquisadores observaram uma relação de dose-resposta significativa entre o consumo de ASB e todos os desfechos analisados (incidência de obesidade/sobrepeso e mudanças no IMC). O consumo de mais de 21 ASB por semana foi associado a quase o dobro de risco de incidência de obesidade e sobrepeso em 1.250 indivíduos com peso normal, e ao dobro de risco de obesidade em 2.571 indivíduos que apresentavam IMC menor que 30 kg/m2.
Curiosamente, “fazer dieta” apresentou uma forte associação com o consumo de adoçantes. Dos indivíduos em dieta, 72%, em comparação com 41% das pessoas que não estavam em dieta, utilizaram adoçantes artificiais. Observou-se que este grupo ganhou mais peso entre os check-ups, em comparação ao outro grupo.
Por fim, os autores traçam hipóteses para os resultados encontrados. Dentre elas, temos efeitos indiretos dos adoçantes não calóricos para o ganho de peso e efeitos diretos.
Exemplo de efeito indireto: “Por adicionarem adoçantes artificiais em suas rotinas alimentares, consumidores de produtos light tendem a superestimar o quanto de calorias estão sendo economizadas, o que os leva a compensar de maneira involuntária”.
Exemplo de efeito direto: “O uso de adoçantes artificiais – ou, melhor, o sabor doce que eles proporcionam – talvez aumente a fome, desejos ou o consumo alimentar”.
Explicação mais crível: “Talvez não haja relação causal entre a utilização de adoçantes e o ganho de peso. Indivíduos que buscam a perda de peso, geralmente, optam pelo uso de adoçantes artificiais como uma maneira de reduzir a ingestão calórica. Tendo isso em mente, o uso de ASB pode ser, apenas, um marcador para indivíduos que se encontram na trajetória de ganho de peso e que, mesmo após a adoção da substância, continuam engordando. Esta talvez seja a explicação mais óbvia dos nossos achados”.
O segundo estudo, por sua vez, foi conduzido por Chia, C. et al. (2016). Esse grupo de pesquisadores realizou 8.268 medidas antropométricas e coletou 3.096 diários alimentares (com detalhes sobre a ingestão de adoçantes não calóricos) de 1.454 voluntários participantes do Baltimore Longitudinal Study of Aging (BLSA) no período de 1984 a 2012, com um acompanhamento médio de 10 anos. Ao final do estudo, observou-se que usuários de adoçantes não calóricos apresentaram um IMC 0,80kg/m2 superior ao dos participantes que não consumiam essas substâncias. Além disso, ao aferir outras medições, verificou-se que o grupo que ingeria edulcorantes apresentou uma maior circunferência da cintura (excesso médio de 2,6 cm em relação aos que não usavam adoçantes), e maior prevalência e incidência de obesidade abdominal.
Com relação às limitações, podemos começar pelo fato de diários alimentares não serem uma boa ferramenta de medição de consumo calórico – pensando em estudos observacionais –, visto que nem sempre retrata a realidade cotidiana dos voluntários.
Igualmente importante, os modelos estudados que explicariam o mecanismo de ação conectando consumo de adoçantes a ganho de peso só foram observados em modelos animais. Ou seja, não há evidências de que também serão vistos em humanos.
Os autores ressaltam também que, mesmo tentando mitigar a ação de variáveis de confusão, não é possível descartar a possibilidade de haver confundidores não mensurados. “Fator de confusão” ou “confundidor” é qualquer coisa diferente do fenômeno pesquisado (no caso, consumo de adoçantes) que possa afetar o resultado de um estudo. Por exemplo, pessoas obesas têm risco elevado de desenvolver diabetes tipo 2, logo obesidade é um fator de confusão quando se tenta avaliar o impacto dos adoçantes sobre o risco de diabetes.
Os pesquisadores reconhecem que os voluntários inscritos no estudo BLSA são, em geral, mais motivados e preocupados com a saúde do que o restante da população adulta dos EUA, visto que enquanto apenas 17% dos participantes desenvolveram obesidade durante o período de acompanhamento, na população em geral viu-se uma prevalência de 38% no ano de 2014.
Por fim, mas não menos importante, deve-se considerar que a população do BLSA é composta por pessoas mais velhas (60 anos, aproximadamente), o que pode ter enviesado os resultados que, obviamente, não podem ser extrapolados para uma população mais jovem.
Entrando no último e, possivelmente, o mais esdrúxulo dos pontos.
Os autores do guia da OMS afirmam, com base nos RCTs revisados, que os efeitos dos adoçantes não calóricos para a perda de peso e redução da adiposidade ocorrem por redução energética, e não por uma propriedade inerente dos NSS que modulariam o peso corporal (independente do consumo calórico).
Além disso, salientam que pesquisas que compararam indivíduos consumindo adoçantes não calóricos com um outro grupo consumindo placebo/nada ou água não apresentaram resultados significativos com relação ao peso corporal e nem com o IMC.
Parem as máquinas, Sherlock Holmes e sua trupe acabaram de aparecer! Quem diria que comparar uma bebida isenta de calorias com água geraria um resultado nulo?
Brincadeiras à parte, isso só demonstra que os adoçantes não calóricos, quando passam pelo escrutínio de metodologias mais controladas, cumprem o seu papel – adoçam sem adicionar calorias.
Conclusão
Apesar da pantomima criada, o documento traz, pelo menos, um ponto interessante e que eu gostaria de compartilhar: “Como o açúcar livre é encontrado em grande parte dos alimentos ultraprocessados, substituí-los por versões com adoçante não afetará, de maneira expressiva, a qualidade da dieta. Tendo isso em mente, opte por fontes alimentares que apresentam, naturalmente, o sabor doce, como as frutas ou, ainda, por alimentos e bebidas minimamente processados que não precisam ser adoçados. Estas mudanças melhoram a qualidade da dieta”.
Uma recomendação muito melhor do que a propagada nas redes – mas que também não precisa ser seguida com fanatismo.
Mauro Proença é nutricionista
Referências
World Health Organization. Use of non-sugar sweeteners. WHO guidelines. 2023. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789240073616.
NOVELLA, S. World Health Organization Endorses Quackery. 2018. Disponível em: World Health Organization Endorses Quackery | Science-Based Medicine (sciencebasedmedicine.org).
KOWALTOSKI, A. Refrigerante causa calvície em homens? 2023. Disponível em: Refrigerante causa calvície em homens? | Questão de Ciência (revistaquestaodeciencia.com.br)
FOWLER, S. et al. Fueling the Obesity Epidemic? Artificially Sweetened Beverage Use and Long-term Weight Gain. ObesityVolume 16, Issue 8 p. 1894-1900. Disponível em: Fueling the Obesity Epidemic? Artificially Sweetened Beverage Use and Long‐term Weight Gain - Fowler - 2008 - Obesity - Wiley Online Library
CHIA, C. et al. Chronic Low-Calorie Sweetener Use and Risk of Abdominal Obesity among Older Adullts: A Cohort Study. PLoS One. 2016; 11(11). Disponível em: Chronic Low-Calorie Sweetener Use and Risk of Abdominal Obesity among Older Adults: A Cohort Study - PMC (nih.gov)