Alguém me disse que alimentação viva era mais saudável do que a tradicional. De início, estranhei: essas pessoas comem animais vivos – algo tão aterrador que estaria presente no “Cego e outros contos atrozes”. Pesquisando, encontrei algo ainda mais problemático.
Como não conhecia nada a respeito dessa temática, foi necessário ingressar em um território, aparentemente, tranquilo. Contudo, esta impressão inicial esvaiu-se com horas de pesquisa que contaram com leitura, vídeo-aulas, relatos e publicações do centro de tratamento de uma das referências da alimentação viva. Ao final, ganhei uma certeza, e uma ressalva.
Certeza: trata-se, de fato, de uma alimentação saudável. Praticantes desse estilo de vida consomem leguminosas secas, sementes germinadas, legumes, frutas e outros alimentos in natura e/ou minimamente processados.
Ressalva: contudo, isto não significa que seja uma alimentação melhor/superior às demais. Há inúmeras formas de construir uma dieta saudável. Se parássemos somente neste problema de qual dieta é “melhor”, este texto nem existiria. Mas o pior está por vir.
Terrapia e Alimentação Viva
A Terrapia é uma iniciativa do Centro de Saúde Escola Germano Sinval, da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), que se insere nas ações de Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica – dois assuntos que já tratamos aqui na revista e que você pode se aprofundar mais clicando aqui e aqui.
Além de ser um espaço de referência em Alimentação Viva – que desenvolve uma culinária brasileira que dispensa o cozimento –, a Terrapia apresenta uma nova maneira de olhar o próprio corpo, enxergando-o como um ecossistema e meio de participação na preservação do meio ambiente.
Entre suas atividades, salientam-se oficinas e cursos, produção de sementes germinadas e brotos, preparo de alimentos na culinária viva e conversas sobre hábitos de vida com compromisso ambiental e (sinais de alerta, por favor) “empoderando o indivíduo a se tornar seu próprio médico”.
E essa tal alimentação?
De acordo com o “Livro Vivo” disponibilizado pela Terrapia, “alimentação viva é aquela que considera a vitalidade dos vegetais como a fonte essencial de alimento e não a matéria mesma, ou seja, as proteínas, carboidratos etc. Considera que o ser humano se alimenta de vida e que pode buscar a fonte dessa energia de várias maneiras: na vitalidade do ar, da água, da terra, do Sol, da alegria e tudo mais que nos mantêm vivos. Essa vitalidade foi chamada de energia vital ou força vital por muitos anos e sempre foi controversa”, e continua: “Alguns tentam explicar que essa energia se traduz sob a forma de enzimas, os hindus chamam de prana, os chineses de chi, os espiritualistas como a Força Maior e, atualmente, os físicos quânticos tentam interpretar os achados sobre a matéria e se aproximar dessa discussão, como Amit Goswami”.
Apesar do apreço que tenho por estas discussões tangenciais à filosofia, podemos observar que esta visão particular é um clichê comum a tantas outras que utilizam, de forma errônea, as noções de física quântica – por ser ignorante neste assunto, nem me atreverei a discuti-lo, convidando o leitor interessado a descobrir mais aqui, aqui e aqui.
História
Deixando claro para os proponentes da Terrapia, não estou criando um espantalho. Todas as “informações” abaixo, infelizmente, estão presentes tanto no site da Terrapia quanto no Instituto Hipócrates (centro terapêutico envolvido em diversos casos de protocolos pseudocientíficos).
No início do século 20, o médico, linguista e educador Edmond Székelli disseminou um estilo de vida atribuído por ele aos essênios – uma seita judaica do início da Era Comum, cuja teologia tem alguns pontos de contato com a pregação de Jesus de Nazaré – e as bases da corrente de pensamento chamada Higiene Natural.
Além disso, ele traduziu (ou, mais exatamente, inventou) o livro “Evangelho Essênio da Paz” – atribuído ao apóstolo João -, onde são descritas supostas orientações de Jesus sobre o processo de germinação das sementes. Pesquisando as origens do texto apresentado por Székelli, o teólogo sueco Per Berkow determinou não só que o livro é uma falsificação, como toda a história contada pelo médico, sobre ter descoberto o original na Biblioteca do Vaticano, é mentirosa.
Por fim, criou uma classificação de alimentos que segundo ele reflete níveis de vitalidade (mas sem base científica, e que na verdade reflete apenas a já conhecida falácia da superioridade do natural):
Biogênicos (que “favorecem a regeneração da vida”): sementes germinadas e brotos.
Bioativos (“ativam a vida”): frutas, legumes, verduras frescas e cruas.
Bioestáticos (“mantêm a vida”): alimentos cozidos, congelados e refinados.
Biocídicos (“consomem a vida”): alimentos com produtos químicos ou radiações, conservantes e aromatizantes.
Continuando nesta jornada, passamos para a década de 1980 e trataremos de um dos maiores nomes do movimento da alimentação viva, a Dra. Ann Wigmore (falecida em 1994), uma senhora romena que ficou extremamente fragilizada por diversas patologias e que buscou, na alimentação, o seu processo de cura.
Após passar anos estudando homeopatia e naturopatia, e realizando “experimentos”, Ann teria recebido um título especial de doutora em teologia, numa modalidade (“Divinity Doctor”) que, nos Estados Unidos, em geral é reservada a ministros religiosos e, por isso, não reflete mérito científico ou acadêmico. Além disso, ela passou a escrever uma coluna chamada “Natural Health Guardian”. Publicou 15 livros, ministrou cursos e, em 1963, abriu o primeiro centro de saúde holístico americano, a “Instituição de Saúde Hipócrates”.
Entre suas inúmeras contribuições, podemos destacar o livro “Be you your own doctor” (“Seja Seu Próprio Médico”). A autora propõe que passemos por uma desintoxicação permanente, utilizando dos preceitos da alimentação viva em todas as refeições, consumindo bebidas fermentadas, realizando atividade física e meditação.
A dieta proposta pela doutora teóloga consiste num conjunto de alimentos que não podem passar por processos de cozimento ou congelamento, que segundo ela diminuem a energia vital. Por isso, consomem-se vegetais frescos, maduros, orgânicos, sementes germinadas e brotos, alimentos desidratados e fermentados. Ainda segundo ela, esta dieta foi analisada e aprovada pela FDA (Food and Drug Administration, órgão que avalia e controla os alimentos e medicamentos nos EUA).
Depois de contar essa história (sem, no entanto, fazer as ressalvas necessárias sobre textos falsificados e doutorados ornamentais sem valor), a “terrapia” conclui e reforça a necessidade de utilizar conhecimentos da Higiene Natural e, em contrapartida, não usar fármacos, produtos químicos de limpeza ou de higiene pessoal.
Um olhar cético
Apesar de beirar o cenário ficcional em diversos aspectos, esta “jornada do herói” é perfeita para elucidar como um discurso raso, mas com roupagem científica, consegue ser levado a sério: há uma infinidade de blogs, vídeos e até mesmo marcas de alimentos que utilizam a linguagem pseudocientífica descrita acima.
Dentre os inúmeros problemas encontrados, podemos abordar a falácia do apelo ao natural – a despeito do que o marketing da casa de sucos diz, nem tudo que vem da natureza é bom ou faz bem –, uma alimentação messiânica receitada pelo próprio Filho de Deus, uma classificação de alimentos retirada do renomado VDMC (Vozes da Minha Cabeça) e, claro, experiências anedóticas, apelo à autoridade e bases esdrúxulas.
Como também é praxe destas abordagens, o texto mente com relação à FDA – o órgão não avalia dietas – e omite que um dos centros terapêuticos fundados pela guru Ann Wigmore esteve envolvido em escândalos escabrosos de protocolos não científicos para o tratamento de diversas doenças, inclusive câncer.
“O que isso tem a ver?”
A disseminação de informações falsas pode levar cidadãos e, infelizmente, profissionais da área da saúde a tomar decisões sem avaliar se as informações recebidas são condizentes com evidências sólidas e confiáveis, ocasionando em tratamentos que mais atrapalham do que auxiliam, vide protocolo Bredesen, fosfoetanolamina, cloroquina para COVID-19 e outras absurdidades.
E, sendo bem sincero, o décimo primeiro capítulo do “Livro Vivo” me leva a questionar o quanto os representantes da terrapia se preocupam com evidências científicas. Ali, encontra-se um compilado de perguntas e respostas destinadas aos iniciantes. Há algumas respostas, no mínimo, peculiares.
Para demonstrar, transcrevo, ipsis litteris, um par representativo de perguntas e respostas. Acrescentei breves comentários para evidenciar alguns pormenores.
1. “Quais as vantagens de comer comida crua?”
“R. Aproveitar a energia da vida dos alimentos! Esse aspecto não tem sido considerado ao se falar em alimentação, mas as evidências são muitas! Atualmente, já estão sendo considerados pela ciência que estuda as energias, especialmente os conhecimentos da física quântica. Na vida prática, observamos em nossas próprias mudanças”.
De fato, a ciência séria da nutrição não aborda a energia vital dos alimentos. E o motivo é simples: não há estudos que mostrem que essa energia existe. Se você passar por uma consulta nutricional e o nutricionista comentar os impactos da física quântica na alimentação, tenha certeza de que é cilada, Bino!
“Na pesquisa que eu fiz, as matérias dizem que a comida crua não tem base científica. Não deu tempo ainda de estudar o assunto? “
“R. Essa é uma discussão política. A 'posse' do conhecimento e da dominação é antiga! Existe ainda hoje uma grande manipulação, especialmente com a ajuda da mídia, fortalecendo grupos em detrimento de outros menos interessantes ao sistema. A ciência mesmo não afirma nada! A ciência é caracterizada pela pergunta. As evidências têm seu valor até que se prove o contrário! Uma das questões mais complexas têm sido os métodos de investigação científica. Aqui o controle ainda é maior. Se não seguir tais princípios, não se considera científico, e assim vai. Mas o novo conhecimento, por exemplo, surge muitas vezes exatamente ao contrariar as evidências. O pensamento dominante vai sempre exercer força maior. Toda a história da medicina mostra isso! Houve tempos em que as medicinas naturais estavam fortes e as intervencionistas fracas. Nos tempos atuais, a intervencionista está em alta e as naturais ficaram em segundo plano. Mas existem muitas pesquisas e métodos incríveis de avaliação que não estão popularizados e que sofrem discriminações fortes. A escola alemã de medicinas naturais é muito forte, por exemplo. E a alimentação crua não é de hoje! Já nos livros dos vedas, na Índia, eram considerados alimentos ideais. Hipócrates referia-se a essa alimentação. Os Manuscritos do Mar Morto ensinam inclusive como germinar e desidratar no Sol. No período das grandes navegações, muitos estudos foram feitos com os brotos e outros experimentos.
O que fazemos com esse conhecimento da Humanidade? O que fazemos com o conhecimento de nosso próprio corpo? O que fazemos com o conhecimento popular?
Existe um grande vácuo entre os resultados de uma pesquisa e a interpretação desses resultados. Aí entra o humano! Portanto, sugerimos que você ouse, seja mais um pesquisador de seu próprio ecossistema corporal! Escute e aprenda consigo mesmo”.
Dada a quantidade de falácias empregadas, posso considerar esta resposta perfeita para elucidar o que seria uma posição enviesada. Neste caso, temos a presença de raciocínio motivado (quando inventamos “razões” para defender uma crença que, na verdade, só tem base emocional), apelo à tradição (ser antigo/tradicional não significa ser válido), crítica ao método científico que não “observa” os benefícios da prática – talvez porque eles não existam, ou porque só aparecem em metodologias menos rigorosas – e, claro, tentativa de vender a ideia de uma conspiração que envolve pesquisadores, mídia e uma elite contrária aos ensinamentos da alimentação viva.
Com base neste cenário, a conclusão é de que as raízes da terrapia alimentam-se de um adubo de ideias e falácias que mereciam estar no ostracismo. E, por incrível que pareça, não me refiro à alimentação viva em si, dado que esta não apresenta o mínimo de bibliografia séria para ser considerada algo além de um estilo de vida que pode até ser saudável, se exercitado de forma cuidadosa e consciente. Mas não pelos motivos que seus defensores mais aguerridos propalam – e muito menos por qualquer afinidade com homeopatia, naturopatia ou por causa de “energias” imaginárias do reino quântico.
Mauro Proença é nutricionista
REFERÊNCIAS
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- GORSKI, D. The Hippocrates Health Institute: Cancer quackery finally under the spotlight, but will it matter? 2015. Disponível em: < https://sciencebasedmedicine.org/brian-clement-and-the-hippocrates-health-institute-finally-under-the-spotlight/>.
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- BELLINGHINI, R. “Saga da fosfo”: teoria da conspiração e ciência ruim. 2019. Disponível em: <https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/resenha/2019/11/01/saga-da-fosfo-mistura-teoria-da-conspiracao-e-ciencia-ruim>.
- PASTERNAK, N. e ORSI, C. Tudo o que você precisa saber sobre cloroquina e COVID-19. 2020. Disponível em: < https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/2020/04/10/tudo-o-que-voce-precisa-saber-sobre-hidroxicloroquina>.