No início do mês, a mídia de língua inglesa noticiou a morte da britânica Katie Britton-Jordan, de 40 anos, vítima de câncer de mama. Diagnosticada com a doença em 2016, Katie optou por não seguir o curso de tratamento recomendado pela Medicina e decidiu confiar sua vida a uma dieta vegana e a um combo de terapias “naturais”. De acordo com o relato do jornal australiano The Sun:
Ela foi orientada no sentido de que o melhor seria uma mastectomia, seguida de quimioterapia e radioterapia. Médicos disseram que a doença era tratável, mas que sem intervenção médica, ela morreria.
Mas depois de pesquisar por conta própria, ela decidiu recusar isso e adotar uma abordagem alternativa, acrescentando que isso seria “a melhor opção para mim˜.
Essa “abordagem alternativa” incluía, além da dieta vegana, produtos caros e de base científica frágil ou inexistente, como injeções de extrato de visco, cúrcuma e o uso de câmaras hiperbáricas. Os custos estimados chegavam a dezenas de milhares de libras, e um sistema de crowdfunding foi montado para sustentar o “tratamento” (a terapia convencional, se aceita, seria coberta pelo sistema público de saúde inglês).
Postagens em redes sociais deixam claro que Katie queria muito sarar da doença e viver. Mãe de uma menina de dois anos, quando diagnosticada, ela disse que desejava ver a filha crescer. A criança, hoje com cinco anos, é órfã de mãe.
A decisão original de renegar terapias de base científica e buscar uma cura “natural e holística” fez de Katie uma celebridade nos tabloides britânicos, em 2017. Jornais como Daily Mail e Mirror publicaram perfis elogiosos, que punham em evidência o suposto caráter “heroico” da decisão.
Mais exemplos
O caso de Katie está longe de ser único. Em 2015, a australiana Jess Ainscough, de 29 anos, que havia conquistado alguma celebridade como blogueira, usando a alcunha de “Wellness Warrior” (“Guerreira do Bem-Estar”) morreu de um câncer que havia decidido tratar, por meios “naturais”, três anos antes.
Jess chegou a escrever um artigo para a mídia australiana, explicando e defendendo sua decisão de “educadamente recusar as ofertas de cirurgia, quimioterapia e radiação e iniciar a busca por tratamentos naturais de câncer”, argumentando que “a abordagem natural busca tratar o corpo como um todo. Nutrição, meditação e exercícios trabalham juntos para fortalecer o sistema inume e, então nos tornamos mais capazes de combater a doença, sem nenhum efeito colateral danoso”.
Além de vidas perdidas, Katie Britton-Jordan e Jess Ainscough são vítimas de uma ideologia cruel, que causa dor e mortes desnecessárias.
Números publicados agora em 2019, pela Sociedade de Câncer dos Estados Unidos, mostram que, de 1991 a 2016, a mortalidade por câncer caiu 27% no país, taxa que se traduz num número de vidas salvas estimado em mais de 2,5 milhões.
Na contramão desses avanços, estudo publicado no Journal of the National Cancer Institute apontava que pessoas que desistem do tratamento convencional contra o câncer e optam por terapias “naturais”, “holísticas” ou “alternativas” correm risco até seis vezes maior de perder a vida para a doença do que quem segue o curso recomendado pela Medicina. Outro estudo, do mesmo ano, mostrava que o mero uso de terapias alternativas como estratégia “complementar” ao tratamento médico correto aumentava o risco de abandono desse tratamento – e, por consequência, o risco de vida.
Puro e natural
E que ideologia é essa? É algo que une os mais cínicos capitalistas – que esperam convencer a classe-média bem-pensante de que a pegada de carbono da viagem das crianças para Disney pode ser expiada, como antigamente se expiava um pecado com jejum e orações, pagando-se o triplo do preço por alguma bobagem com o rótulo “orgânico” – aos mais sinceros promotores de um estilo de vida genuinamente alternativo.
Trata-se de complexo de ideias que inclui a falácia naturalista (a noção de que decisões éticas devem ser guiadas pelo modo como as coisas acontecem na natureza); a falácia do apelo ao natural (a ideia de que coisas “naturais” são sempre melhores, mais saudáveis, mais seguras); e a boa e velha desconfiança pós-moderna em relação às “grandes narrativas”, que aqui aparece sob a forma de um olhar levemente paranoico sobre o que dizem a ciência e os especialistas ligados ao mainstream (universidades, governo, grandes empresas).
A isso, soma-se uma ênfase forte na chamada “fundação moral de pureza”, como definida na hipótese das fundações da moral de Jonathan Haidt, que dá uma dimensão ética, instintiva, aos conceitos de “limpo” e “sujo”, “puro” e “impuro”, não apenas em sentido literal mas também em diversos desdobramentos metafóricos.
Aqui também entra a observação feita por Sir James George Frazer na virada do século 19 para o 20, de que uma das regras intuitivas da superstição é a “Lei do Contágio” ou “Lei da Homeopatia”: a impressão emocional de que tudo que tem contato com uma substância “contamina-se” com as propriedades (físicas ou morais) daquele material.
Este é um efeito psicológico potente, mesmo nos dias atuais: a maioria das pessoas, por exemplo, tende a se recusar a vestir uma camisa antes usada por um assassino, e muitos temem consumir produtos de plantações tratadas com inseticidas ou herbicidas mesmo depois de o alimento ter sido lavado, fervido, cozido, etc.
Dinheiro sem partido
Não é difícil encontrar o nexo ideológico que une as declarações de Katie Britton-Jordan, de que quimioterapia “envenena o corpo”, às propagandas enganosas que apontam supostos benefícios de produtos “livres de transgênicos” ou “dietas detox”.Politicamente, esse “Complexo Naturalista” tem uma enorme versatilidade, encontrando aderentes ferrenhos tanto à direita quanto à esquerda.
Isso acontece porque a natureza é ampla o suficiente para que se encontre nela exemplos capazes de justificar, caso se queira abraçar a falácia naturalista, qualquer coisa, desde as formas mais desumanas de “meritocracia” (afinal, não é “da ordem natural” que os fortes devorem os fracos?) à mais desbragada liberdade sexual.
Por sua vez, a preocupação exacerbada com pureza e a superstição do contágio servem tanto aos tabus dietéticos de grupos religiosos ultraconservadores quanto aos novos tabus dietéticos pseudocientíficos da New Age e do soi-disant “consumo consciente”.
Num mundo onde a extrema direita se alimenta fundamentalmente de medo, paranoia e ressentimento, o terror do “artificial” é só mais uma arma. E do ponto de vista do marketing, as pessoas que têm esses temores representam só mais um nicho de mercado.
Health Ranger
Desde que comecei a pesquisar este artigo, por exemplo, passei a receber diversos anúncios do Health Ranger (“Patrulheiro da Saúde”), incluindo “algas orgânicas livres de glifosato”, “ricas em clorofila” e “muito usadas em medicina tradicional chinesa e ayurveda”.
O tal Health Ranger também quer me vender pó de lavar roupa e detergente lava-louças livres dos “mais de 60 produtos químicos tóxicos” que, segundo ele, são encontrados nos líquidos e pós de limpeza comuns. O material de sua loja usa “zero abrasivos, lixívia, fosfatos, alvejantes, perfumes ou produtos químicos sintéticos. Checados em laboratório para pureza e limpeza”.
“Health Ranger” é o título que Mike Adams, criador do site Natural News, deu a si mesmo. A página do Natural News no Facebook foi suspensa há alguns dias, e segundo o Gizmodo, o site já havia sido banido pelo Twitter e entrado para a lista negra do Google.
Ali é possível encontrar desde bobagens mais ou menos cômicas, como a afirmação de que “batatas geneticamente modificadas ameaçam a pureza das batatas do mundo” a bobagens perigosas, como a alegação de vacinas causam demência, a propaganda racista (imigrantes do Congo trariam risco de epidemia de ebola para os EUA) e pura paranoia fascista, como exemplificado no título “SE NÃO PROTEGERMOS CRIANÇAS INOCENTES CONTRA O ABORTO E AS MUTILAÇÕES LGBT, DEUS LIBERARÁ FOGO E FÚRIA SOBRE OS ESTADOS UNIDOS”.
Natural, afinal
O problema de fundo desse Complexo Naturalista, que custou as vidas de Katie Britton-Jordan e Jess Ainscough (entre tantas outras), que faz de Mike Adams o dono de um negócio muito bem-sucedido e lhe dá uma influência pública desmedida (três milhões de seguidores no Facebook, no momento em que a página foi suspensa), que leva muita gente a gastos desnecessários para fugir de tecnologias perfeitamente seguras, é a ilusão de que existiria algum tipo de diferença essencial, marcante e inefável entre os produtos da natureza e os da ação humana.
Bobagem: seres humanos são animais que evoluíram na Terra, assim como as plantas e as bactérias. Os produtos da humanidade – pizzas, varas de pescar, cidades – não são menos naturais do que o mel das abelhas, a teia das aranhas ou o ninho dos pássaros.
Natural e artificial são categorias descritivas que, em si, não distinguem características essenciais, valores éticos, compromissos políticos ou propriedades terapêuticas. Se o consumo de certos alimentos ultra-processados pode levar a um aumento no risco de câncer, o consumo de certos alimentos, como a mandioca-brava, em estado natural – nada processados – pode causar morte quase instantânea.
Auréola
Essa confusão entre o meramente descritivo e o essencial aparece, por exemplo, no artigo em que Jess Ainscough define o que via como suas opções de tratamento: “eu poderia confiar no método de cortar, queimar e envenenar que me era oferecido pela profissão médica (...) ou poderia assumir a responsabilidade por minha doença e levar meu corpo a um estado ótimo de saúde, para que pudesse curar a si mesmo”.
“Nossos corpos são projetados para curar a si mesmos”, escreveu ela. “O ambiente a que os submetemos e as comidas com que os alimentamos determinam se irão florescer ou afundar”.
A distinção que ela via (de alimentos, ambientes, tratamentos) era entre “natural” e “tóxico”. Mas esses não são antônimos: não faltam venenos, carcinogênicos, patógenos e alergênicos numa floresta virgem. “Natural” não é sinônimo de bom e seguro, assim como não significa, necessariamente, ruim e perigoso. Produtos, alimentos e propostas terapêuticas devem ser avaliados por seus méritos próprios, não aceitos ou rejeitados automaticamente por causa de um selo de origem.
Seria interessante investigar as raízes dessa rede semântica que envolve a palavra “natural” com uma auréola de santidade, mas é urgente é reconhecer que ela vem sendo abusada pela publicidade, promovida pela ignorância, explorada por charlatões e pondo vidas em perigo.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência