Cálculo errado de probabilidade põe inocentes atrás das grades

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14 mar 2023
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Em 1985, Jane Bolding, uma enfermeira americana, foi acusada de assassinato em série de pacientes internados na unidade de terapia intensiva do Prince George’s Medical Center, em Maryland. A acusação havia sido motivada pelo grande número de mortes por ataque cardíaco no período em que Bolding estava de plantão. Registros do hospital mostravam que Bolding era a enfermeira primária quando ocorreram 57 infartos, algo incomum, dado que a média de mortes, considerando períodos semelhantes e outras enfermeiras, não excedia a cinco.

Outro dado, de cunho estatístico, também foi utilizado pela promotoria para aumentar a suspeita de crime: a probabilidade de ocorrência de mortes em condições similares às de Bolding foi estimada como sendo de uma chance em 100 trilhões – aproximadamente 2.000 vezes menor do que acertar seis números na Mega-Sena. Embora tudo parecesse apontar para uma condenação por múltiplos homicídios, Jane Bolding foi absolvida em 1988 depois de passar por um longo processo judicial.

As informações acima estão no relatório Healthcare serial killer or coincidence? – Statistical issues in investigation of suspected medical misconduct (em tradução livre, “Assassino em série na área da saúde ou coincidência? - Questões estatísticas na investigação de suspeita de má conduta médica”) da Royal Statistical Society britânica. O documento foi produzido com o objetivo de orientar investigadores e promotores na avaliação de casos semelhantes ao descrito acima. Análises superficiais das evidências, afetadas por vieses, podem dar margem a distorções dos resultados estatísticos e à condenação de inocentes.

Um caso semelhante ao de Jane Bolding, mas com conclusão diferente, é o de Harold Shipman. Colegas do médico observaram que havia uma alta taxa de mortos entre os pacientes de Shipman. Uma investigação policial, porém, verificou que, além do dado estatístico, havia alterações suspeitas nos testamentos das vítimas, que incluíam Shipman como herdeiro no lugar dos membros da família. Investigações posteriores mostraram que foram administradas doses letais de sedativos a pacientes saudáveis – Harold Shipman foi condenado à prisão perpétua, em 2000, pelo assassinato de 15 de seus pacientes (existe a suspeita de que o médico tenha matado pelo menos 215 pessoas entre 1975 e 1998).

Os eventos relatados exemplificam como a investigação deve ir além da evidência estatística, e como a argumentação em torno de probabilidades pode induzir o júri, facilmente, a erro. O relatório da Royal Statistical Society não aborda somente a questão matemática, e toca também em vários outros pontos que podem induzir investigadores ao erro.

Do ponto de vista estatístico, um dos problemas frequentes é a confusão entre probabilidades condicionais. A chamada falácia do promotor (ou do advogado de defesa) consiste essencialmente em omitir parte do contexto em que o cálculo estatístico foi feito. Traduzindo em uma linguagem técnica, P(A|B), a probabilidade de acontecer A, dado B, costuma ser diferente da probabilidade de acontecer B, dado A, P(B|A). Por exemplo: a probabilidade de uma pessoa estar grávida, dado que é mulher, é diferente da probabilidade de a pessoa ser mulher, dado que está grávida.

O raciocínio acima pode ser transportado para a análise dos casos de Jane Bolding e Harold Shipman. Nas duas situações o indício inicial, que levantou suspeita dos colegas, foi o mesmo: o número elevado de taxas de óbito relacionado aos personagens. Os contextos, porém, escondem o detalhe crucial de que no caso de Jane, inocentada, não havia nada além do dado estatístico que contribuísse para a suspeita.

Já o caso de Shipman estava associado a vários condicionantes que tornavam mais forte a acusação. Neste caso, a probabilidade de a alta taxa de mortes acontecer, dado que: os testamentos tinham sido modificados de maneira suspeita; os registros médicos foram alterados para retratar condições de saúde falsas (piores do que na realidade); e a evidência da administração de doses letais de sedativos a paciente saudáveis, deve ser calculada e entendida de uma maneira totalmente diferente do caso da enfermeira.

No caso de Jane Bolding, os promotores adotaram a seguinte narrativa: Bolding deveria ser culpada porque a probabilidade de se encontrar uma alta taxa de mortes associada a uma única enfermeira é muito pequena – um raciocínio análogo, e errado, seria concluir que existe trapaça em loterias porque a probabilidade de se ganhar é pequena, mas na maioria das vezes alguém acaba sendo sorteado.

O fato é que coincidências acontecem. E a chance de algo acontecer, mesmo que a probabilidade seja pequena, deve levar em conta a totalidade da amostra que está sendo considerada. Levando em contar o grande número de profissionais de saúde no mundo, não é tão improvável que exista alguém que, num dado momento, esteja associado a uma alta taxa de morte de pacientes sob os seus cuidados. A avaliação muda de figura se, como no caso de Shipman, houver algum fator condicionante extra que faça com que a probabilidade não deva ser avaliada de maneira independente.

Somados a uma má interpretação dos dados estatísticos, existem diversos outros fatores que podem atrapalhar a avaliação correta: a incerteza no registro do horário da morte dos pacientes, a observação de que uma quantidade maior de mortes ocorre pela manhã, a questão de que um bom profissional pode ser mais eficiente na burocracia e registrar mais mortes do que os colegas no sistema, a necessidade de comparação das taxas de mortalidade nos mesmos períodos do dia etc.

Uma maneira eficiente para reduzir a influência de vieses é fazer com que cada profissional que irá avaliar a suspeita tenha acesso a informações diferentes. Toxicologistas precisam, por exemplo, ter acesso às amostras de sangue e informações de como foram colhidas, mas não precisam saber que as amostras foram retiradas de supostas vítimas de um assassino em série. Suprimir algumas informações para os diferentes grupos que conduzirão a investigação é uma maneira eficiente de diminuir vieses que podem induzir a uma conclusão errada.

Nunca é demais também repetir que correlação é diferente de causação – 100% das pessoas consumiram oxigênio antes de fazer qualquer coisa. O O2, porém, apesar da perfeita correlação, não é condição forte o suficiente para justificar ou explicar a maioria das ações que se seguem à inalação. No caso da estatística, é preciso conhecimento e cautela na sua utilização, principalmente em casos relacionados à investigação de crimes, onde pode haver a condenação de inocentes. Às vezes, somente a alta taxa de mortes associada a um profissional de saúde pode não significar nada, além de uma infeliz coincidência.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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